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Das águas da Represa Billings, no extremo Sul da cidade de São Paulo, surge a figura de um jovem indígena ao som da profecia narrada na língua guarani: “Existe uma lenda Guarani muito antiga, contada pelos nossos ancestrais. Ela diz que das águas nascerá um guerreiro que levará o seu povo a uma nova existência”. Na sequência, a voz do rapper Owerá — também conhecido como Kunumi MC — descreve a resistência de seu povo aos cinco séculos de colonização e os impactos provocados ainda hoje pela degradação ambiental. Assim começa o clipe da canção “Xondaro Ka’aguy Regua” [em tradução livre: “Guerreiro da floresta”] em que o rapper nativo — como ele mesmo se define — une passado e presente para levar a mensagem de luta dos povos originários.

Da Aldeia Krukutu para o mundo, o rapper Owerá, do povo Guarani Mbya, descobriu na música uma ferramenta de expressão. “Pra mim, o rap é comunicação e resistência. É minha forma de comunicar, de levar a minha mensagem e do meu povo”, contou à Radis, enquanto participava do Acampamento Terra Livre, que aconteceu em Brasília entre os dias 4 e 15 de abril. Em suas canções, que misturam versos em português e guarani, cânticos sagrados e denúncia social, ele fala sobre demarcação de terras, preservação ambiental, preconceito, valorização das culturas indígenas e a presença da espiritualidade no cotidiano. “Filho do sol, também somos da Terra. Ela não é nossa. Nós que somos dela”, diz, na canção “Moradia de Deus” (Assista: https://bit.ly/3jwbsmk). 

A aldeia onde Owerá nasceu fica na Terra Indígena Tenondé Porã, às margens da Represa Billings, na região metropolitana de São Paulo, uma área cercada por Mata Atlântica, que para o povo Guarani é considerada sagrada. Aos 21 anos, o jovem rapper e ativista, cujo nome de nascimento é Werá Jeguaka Mirim, adotou o nome artístico Kunumi MC, que significa “jovem”, na língua de seu povo. Ele é filho do escritor indígena Olívio Jecupé, autor de mais de 20 obras de literatura nativa, em sua maioria para o público infanto-juvenil — dentre elas o livro “O presente de Jaxy Jaterê”, que conta a origem indígena do Saci.

Recentemente, o rapper adotou o seu nome Guarani, Owerá, que significa “raio” — a mudança também foi um passo de amadurecimento em sua carreira. “Quando canto a minha língua, sou um indígena do passado. Ao mesmo tempo, sou um indígena que vive o presente. O rap que a gente canta é de esperança para tentar conseguir no futuro demarcar as nossas terras”, afirma.

Na abertura da Copa do Mundo de 2014, aos 13 anos, Owerá ficou conhecido no mundo todo por quebrar o protocolo ensaiado pela Fifa e levantar a faixa “Demarcação Já”. Ele foi uma das três crianças escolhidas pelo cerimonial do evento — uma branca, uma negra e uma indígena — para representar a paz. “Mas como eu iria representar algo que não temos na aldeia?”, escreveu recentemente sobre o episódio, em sua página no Instagram. “Já faz tanto tempo, e infelizmente a luta não para, ainda lutamos por direitos básicos e pela preservação das nossas terras. Essa luta não é só nossa, é de todos”, completou.

“Devolvam a nossa terra”, diz o verso de uma canção tradicional guarani, que ele gravou no idioma de origem. A ousadia de cantar em guarani é uma forma de preservar sua cultura e lembrar que o idioma português foi imposto pelos colonizadores. “Nosso povo foi oprimido e dizimado/ Por não aceitarmos ser escravizados”, denuncia na canção “Xondaro Ka’aguy Regua”. Em seguida, ele diz, ainda no idioma de seu povo: “E agora vemos na TV alertas de aquecimento da Terra/ Extinções em massa, e continuam destruindo/ Nossos rios e nossas matas/ E pra você sou eu que estou errado por usar internet?”.

Depois de gravar com o DJ Alok em 2021, Owerá subiu no palco com Caetano Veloso para entoar um cântico guarani junto com o clássico do cantor baiano, “Um índio”, no especial “2022” da HBO Max, que celebra o centenário da Semana de Arte Moderna. Um dos grandes nomes da cena musical indígena do país, Owerá é o retrato de um movimento que tem sido chamado de futurismo indígena, por mesclar elementos da ancestralidade com ritmos contemporâneos e tecnológicos, como o rap e o tecno. De encontro ao futuro, mas com as raízes fincadas na Aldeia Krukutu, a imagem que melhor sintetiza o espírito de Owerá são os registros ao lado do filho Christian Tupã e da esposa Camila Retê, às margens da represa, entoando cânticos guaranis e pitando o petyngua (cachimbo sagrado para o povo Mbya).

Como a música te ajuda a falar sobre ancestralidade e a lutar pelos direitos dos povos originários?

A música me ajuda a viver a ancestralidade, principalmente as canções tradicionais guaranis. O rap é uma ferramenta não indígena, que o indígena descobriu. É com muito orgulho que falo que ele não é do indígena, mas é uma ferramenta que o indígena está sabendo usar para lutar: para falar sobre o sistema, sobre a nossa realidade e para alertar sobre pessoas que querem apagar a nossa cultura, a nossa língua, e derrubar os nossos direitos. É isso que a gente fala no rap. Pra mim, o rap é comunicação e resistência. É minha forma de comunicar, de levar a minha mensagem e do meu povo, o que muitas vezes na cidade não é visto. Não existe um olhar sobre a realidade e a cultura indígena, não só sobre aquilo que vivemos, mas também aquilo que não chega até à aldeia. Falo sobre políticas que querem quebrar os nossos direitos e sobre preconceito.

Em suas letras, você fala muito sobre a luta pela demarcação. Qual é a importância para você dessa luta, principalmente nesse contexto de tantas ameaças aos povos originários?

Falo muito sobre a demarcação das terras indígenas, os nossos direitos como cidadãos brasileiros. A gente luta pela demarcação e recebe críticas: “Para que o indígena quer terra?” A minha visão é que nós, indígenas, é que deveríamos estar demarcando as áreas para os não indígenas. Só que hoje o mundo inverteu e está tudo uma bagunça. Hoje o indígena tem que lutar para talvez um dia ter a esperança de demarcar as nossas próprias terras, para nós podermos viver. Meu rap fala muito sobre isso. O indígena quer terra apenas para poder viver. Não é para ganhar lucro com isso. Na cidade se fala muito sobre enriquecimento. Só que o indígena já vive um enriquecimento natural: já é rico porque vive com a natureza.

Suas canções trazem tecnologia e futurismo. Ao mesmo tempo, dialogam com a ancestralidade, ao falar da cultura guarani e da espiritualidade. De onde vem a inspiração?

Meu rap fala sobre ancestralidade. Quando canto a minha língua, sou um indígena do passado. Ao mesmo tempo, sou um indígena que vive o presente. O rap que a gente canta é de esperança para tentar conseguir no futuro demarcar as nossas terras.

Você acredita que sua música traz uma mensagem de conexão com a Mãe Terra? Como você vê o papel dos povos originários como guardiões da natureza?

Nós somos guardiões porque respeitamos a natureza. Não buscamos enriquecer, a gente apenas protege. Seguimos o que a natureza fala.

O jovem Kunumi MC levantou a faixa “Demarcação Já” na abertura da Copa do Mundo de 2014. Essa mensagem continua viva ainda hoje? O que Owerá, nascido na Aldeia Krukutu, tem hoje a dizer ao mundo?

Em 2014, levantei a faixa escrita “Demarcação já”. E hoje, para dar continuidade à minha luta, ou melhor, à nossa luta, porque a luta é de todos, eu descobri o rap como uma forma de resistência. (L.F.S.)

Assista o clipe da música “Xondaro Ka’aguy Regua”: https://bit.ly/3jtb9sa.

“Peme’ẽ jevy
Peme’ẽ jevy
Ore yvy
Peraa va’ekue
Roiko’i haguã

“Devolvam a nossa terra
Devolvam a nossa terra
Que vocês tomaram
Para que a gente continue vivendo”

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