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Luiz Carlos Dias tornou-se voz ativa no combate às fakes news relacionadas ao novo coronavírus. Com um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele desmente informações falsas e medidas que contrariam a ciência em vídeos curtos que podem ser compartilhados nas redes sociais. “Nesse momento, o Brasil é um ambiente muito propício para o espalhamento de mentiras e de narrativas anticiência, particularmente porque falta informação qualificada para a população”, afirma à Radis. Luiz Carlos é professor do Instituto de Química da Unicamp, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e integrante da força-tarefa da universidade no combate à covid-19. Ele defende que as políticas públicas devem se basear em evidências científicas que mostram a eficácia e a segurança de um medicamento ou vacina. “Temos que defender que a ciência dê a resposta e não que questões políticas e ideológicas sejam mais importantes”, completa.

Se a ciência avança, a ignorância também persiste, ressalta o pesquisador. “Estamos observando um crescimento das chamadas pseudociências que defendem alternativas terapêuticas sem evidências científicas”, constata. Para Luiz Carlos, o negacionismo adota estratégias de comunicação que deixam as pessoas desconfiadas e com medo. “Nós realmente precisamos combater essas notícias falsas, mas é um desafio enorme porque não conseguimos distribuir as informações corretas nas mesmas redes que essas pessoas utilizam. É preciso usar dados científicos para confrontar. Esse movimento afronta a ciência e coloca vidas em risco”, avalia. 

O negacionismo científico geralmente é usado como instrumento político para maquiar a realidade e convencer as pessoas. “A ciência não tem lado político nem é uma questão de opinião pessoal”, destaca. Dialogar com a sociedade pode ser um caminho para enfrentar a anticiência, na visão do professor da Unicamp. “A população precisa se identificar com os cientistas. Por isso, precisamos cada vez mais conversar e mostrar que a ciência salva do obscurantismo”, aposta. Em entrevista à Radis, ele falou sobre o papel dos cientistas em esclarecer a sociedade em meio à pandemia de covid-19 e, ao mesmo tempo, desmistificar a onda de desinformação propagada por aqueles que contrariam a ciência e colocam vidas em risco.

[Leia a entrevista completa de Luiz Carlos Dias, que é parte da reportagem de capa da Radis de abril sobre negacionismo científico]

Por que informações falsas e anticientíficas têm conseguido tanto alcance?

Estamos tentando combater notícias falsas que vêm sendo publicadas em aplicativos de redes sociais como se fossem informações reais. Nesse momento, o Brasil é um ambiente muito propício para o espalhamento de mentiras e de narrativas anticiência, particularmente porque falta informação qualificada para a população. Há muita desinformação. Desde o início dessa pandemia, estamos sofrendo com esse enorme descompasso. A gente sabe que a população não tem uma postura mais crítica em relação às evidências científicas e há grupos que se aproveitam disso. Estamos observando um crescimento das chamadas pseudociências que defendem alternativas terapêuticas sem evidências científicas. E essas narrativas da pseudociência afetam muito a vida das pessoas, particularmente em um momento em que observamos a disseminação de notícias falsas sobre tratamentos sem eficácia comprovada, como o kit precoce com ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, e também sobre as vacinas. Consideramos esses atos repugnantes e absolutamente irresponsáveis.

Que riscos e consequências surgem quando posturas negacionistas são adotadas como políticas públicas?

Vemos que os medicamentos utilizados com o kit covid, como hidroxicloroquina e ivermectina, podem causar problemas à saúde, como arritmia cardíaca. São medicações que interferem naquilo que chamamos de intervalo QT: quando o coração bate e vai para o próximo batimento, ele tem um intervalo para “recarregar”. Essas moléculas interferem nesse intervalo QT e há inúmeros relatos clínicos de pessoas que estão tendo problema de arritmia ou até de óbito, em virtude do uso desenfreado desses medicamentos. Não há controle sobre quantos comprimidos as pessoas estão tomando. Existe uma dose de bula, mas a partir do momento em que as pessoas têm acesso livre a eles, ninguém tem ideia do quanto está sendo usado. A ivermectina está sendo responsável por causar hepatites medicamentosas, que podem levar as pessoas a necessitarem de transplantes de fígado. Já têm pessoas que chegam nos hospitais, nas UTIs, sendo tratadas com cloroquina e ivermectina, que pegaram a covid porque esses medicamentos não protegeram. A azitromicina é outro caso muito complicado. Quando usada no ambiente hospitalar para controlar uma infecção bacteriana, ela tem uma ação importante. Mas se as pessoas não têm infecção bacteriana, para que vão usar um antibiótico? Isso vai levar certamente a questões relacionadas à resistência das bactérias, uma das dez maiores ameaças contemporâneas à saúde global. Nós sabemos o quanto infecções bacterianas matam. Existe um risco muito grande com o uso desenfreado desses medicamentos. Nós realmente precisamos combater essas notícias falsas, mas é um desafio enorme porque nós não conseguimos distribuir as informações corretas nas mesmas redes que essas pessoas utilizam. Não temos essa estrutura. E são muitas fake news que a gente tenta combater diariamente, nesse processo de tentar passar para a sociedade informações de qualidade, com dados científicos e de fonte segura, sobre o risco de se adotar determinados medicamentos sem eficácia comprovada e sobre a importância das vacinas. É preciso usar dados científicos para confrontar. Contudo, é certo que esse movimento afronta a ciência e coloca vidas em risco. 

O chamado “tratamento precoce” continua tendo a adesão de médicos, mesmo sem nenhuma comprovação de sua eficácia. Onde estaria o gargalo? O que explica que tantas pessoas sejam levadas a acreditar em algo que a ciência já comprovou ser falso ou a duvidar das evidências científicas?

Acredito que tenha um componente político muito forte, porque não foram os médicos inicialmente que defenderam o tratamento precoce. Foi o presidente Trump, nos Estados Unidos, e depois o presidente Bolsonaro no Brasil. E nesse momento polarizado, acredito que isso tenha uma influência política muito grande. Cada vez mais vemos relatos de pessoas que chegaram nos hospitais porque pegaram covid e tomaram ivermectina, azitromicina, hidroxicloroquina. Nós estamos vendo o vírus se espalhar cada vez mais. Esses medicamentos não têm absolutamente nenhum fundamento científico. Todos os estudos randomizados, com duplo cego, com grupo placebo que foram utilizados e publicados nos melhores periódicos de circulação internacional, que podem ser acessados por todos os cientistas, mostram que infelizmente não tem nenhum benefício. E a clínica está mostrando que existem muitos prejuízos. Principalmente porque podem levar as pessoas a terem aquela falsa sensação de segurança, a falsa sensação de que estão protegidas. Então pensam: “Tomei ivermectina, não vou pegar covid”. O que é uma narrativa falsa. E as pessoas acabam relaxando nas medidas não farmacológicas, como o uso de máscara, o distanciamento físico, os hábitos de higiene e contribuem para disseminar ainda mais o vírus.

E em relação a essa parcela da classe médica, o que está acontecendo?

Eu também creio que falta para os médicos entenderem o que é o método científico. Nós cientistas e professores temos que fazer uma reflexão. Porque mesmo parte da classe científica hoje defende, por exemplo, o kit precoce e parte dela é contra a vacina. Eu nunca imaginei, na minha vida, que tivesse que sair para um embate com outros colegas cientistas e outros médicos que são contra a vacina. É inacreditável. Essas pessoas não entendem o método científico. Isso está muito consolidado. A ciência não tem lado político. Não deveria ser uma questão de opinião. Eles usam muito os estudos observacionais: “eu tratei com a cloroquina e a pessoa ficou boa”. Eles se aproveitam daquilo que é a própria resposta do sistema imunológico da pessoa: para cerca de 85% a 90% das pessoas que pegaram covid, o próprio sistema imunológico vai se encarregar de eliminar o vírus. Nenhum desses medicamentos tem capacidade de reduzir carga viral, por exemplo. Pessoas que tomam vão pegar a covid do mesmo jeito, porque nenhum deles é antiviral. Creio que falta para os médicos entenderem que a ciência é baseada em fatos e em evidências e no método científico. Acho que isso é uma falha nossa de comunicação. Nós temos que assumir essa falha, não só uma falha de comunicação com a sociedade. Nós temos uma falha na educação. Temos que passar a ensinar desde cedo para as crianças, desde a educação básica, o que é o pensar científico. É incrível o que nós estamos vendo com pessoas que construíram uma carreira acadêmica e com médicos que passaram por nossas instituições defendendo argumentos e narrativas que vão contra o método científico. 

Qual é o papel da ciência na luta contra o negacionismo?

Nós realmente precisamos nos reinventar e repensar essa questão. Assim como a gente realmente precisa pensar em outras maneiras de como conversar com a sociedade e levar de forma clara, ética, com transparência, as questões da ciência. A ciência também pode mudar, ela é dinâmica. Hoje existe uma evidência, amanhã podem surgir outras e a ciência pode mudar. Só que isso não tem acontecido no tratamento precoce. Todas as evidências que surgem vão no sentido contrário. Mas o que nós precisamos passar para a população é o seguinte: a opção de tomar o medicamento é do médico que receita e da pessoa que quer tomar. Se a pessoa quer tomar, é uma responsabilidade dele e do médico, mas ela tem que entender o seguinte: não vai proteger da covid, em nenhuma fase, e ela precisa usar máscara, manter o distanciamento físico e os hábitos de higiene, e quando tiver a vacina, ela precisa se vacinar. Penso que precisamos mudar a nossa maneira de abordar esse tópico, porque há um cabo de guerra entre a ciência e a pseudociência. Precisamos deixar claro: “não há nenhuma eficácia e [esses remédios] podem causar sérios problemas à sua saúde e não vão te proteger contra a covid. Você quer usar? É uma decisão sua”. 

Num contexto como esse de pandemia, como o negacionismo prejudica a busca pelo conhecimento por parte da ciência?

Estamos num momento muito difícil. Deixou de ser uma questão de ciência para virar uma questão política. E não: a ciência não é questão de opinião pessoal. Mas infelizmente o que a gente está observando é que a ciência está sendo deixada de lado porque essas pessoas estão se organizando em torno de uma bandeira política e não vão largar essa causa. Tem muitos estudos ruins, que são apenas observacionais. Observacional é quando alguém vai no seu consultório, deu cloroquina e nenhum deles pegou covid. Mas se eles não tivessem tomado, também não teriam pegado. Eles usam técnicas para convencer: pessoas de jaleco, com fala doce e serena, para dar credibilidade às mentiras e às narrativas que eles criam. Esse movimento anticiência é muito bem organizado, infelizmente, e o impacto deles é muito grande. Contam com uma rede de disseminação que já é longa, que vem desde a época da eleição de 2018. Nós precisamos repensar a maneira como vamos comunicar ciência com a sociedade, mas é fundamental deixar claro a defesa de políticas públicas na área de saúde baseadas em evidências científicas. A população tem acompanhado, quer saber mais sobre ciência, nunca teve tanto contato com ciência como nesse último ano. Mas as pessoas não entendem que a ciência avança numa velocidade que não necessariamente é a velocidade que gostariam. A população queria vacinas para ontem, mas as coisas não são assim. Precisamos melhor nossa comunicação com a sociedade.

Que técnicas e estratégias são utilizadas pelo negacionismo para convencer as pessoas?

Muitas vezes eles utilizam a linguagem da ciência para combater a própria ciência. Eles falam em estudos clínicos, mas são estudos observacionais e muito mal feitos. Essa é uma das estratégias do negacionismo científico. O que a gente está observando é que a mediocridade em tempos de pandemia está crescendo e precisamos construir soluções e inspirar os nossos jovens. Precisamos esclarecer quem tem dúvidas sinceras. Para aquelas pessoas polarizadas não adianta, a gente não consegue mudar. Mas tem muitas pessoas que têm dúvidas sinceras e não sabem em quem acreditar, porque eles recebem informações nas mídias sociais cheias de técnicas para manipular a opinião pública. Eles estão apelando para o lado emocional e isso é uma estratégia cruel para criar impacto. É preciso conversar com a população. Nós estamos num momento em que não temos muitas opções. Estamos no meio do vendaval. Temos que lutar com as armas que temos: a comunidade acadêmica se unir e levar informações à população. Para o futuro, imagino que a gente vai ter que fazer estratégias de comunicação com a sociedade desde a formação básica: atividades lúdicas nas escolas, levar a ciência de impacto social para fora dos muros das universidades, para os bairros e periferias, tentar trazer a sociedade para mais próximo das universidades e criar mecanismos de divulgação científica.

Uma das estratégias do negacionismo é politizar o debate científico e tratar a postura anticiência como equivalente às evidências científicas. Quais os perigos em ignorar a ciência para atender interesses políticos?

Nós temos que deixar claro que opiniões pessoais e políticas não são mais importantes que a ciência. E infelizmente esse jogo político que estamos vendo hoje só alimenta o movimento antivacina. Ser contra a vacinação contra a covid pode atrapalhar não só essa vacinação, mas a adesão da população nas campanhas de vacinação contra outras doenças, como pólio, sarampo, meningite e outras doenças. Nós temos observando que tem ocorrido uma queda na cobertura vacinal para várias doenças. Não podemos ter políticos decidindo se um medicamento é bom ou se uma vacina é uma boa ou não para a população brasileira. Nós nunca vimos isso em nossa história. O político não entende de ciência, não entende de eficácia de vacinas, não pode sair correndo atrás de uma ema com a caixa de um medicamento. Sabemos que a chance de sairmos da pandemia está sendo mostrada pela ciência. A ciência deu uma resposta extraordinária. Em pouco tempo, temos várias vacinas, seguras e eficazes. O que a gente precisa? Vacinar em massa. Precisamos vacinar 70% da população brasileira. Enquanto não vacina esse quantitativo, nós precisamos conscientizar a população brasileira a manter o distanciamento físico e os hábitos de higiene. Precisamos de um plano. Infelizmente não estamos combatendo a pandemia com ciência. Essa polarização política leva a população a desconfiar dos cientistas, porque ela não sabe se acredita no cientista que está dizendo que o tratamento precoce não funciona ou se acredita no presidente que diz que o kit precoce funciona e as vacinas não funcionam. 

O Brasil sempre foi referência em vacinação com o Programa Nacional de Imunizações (PNI). Contudo, com as quedas nas coberturas vacinais observadas desde 2016, vemos o crescimento de uma postura antivacina, até então inédita em nossa cultura. O que estaria por trás do crescimento desse tipo de posicionamento e quais os perigos do movimento antivacina para a sociedade?

Depois da revolta da vacina em 1904, a gente nunca precisou obrigar ninguém a se vacinar no Brasil. A população brasileira aderiu sempre às campanhas de vacinação em massa para diversas doenças. O Brasil inclusive é modelo para o mundo. O PNI é absolutamente fantástico. Conseguimos vacinar 80 milhões de brasileiros. Agora nós vamos ter que vacinar um número muito maior, cerca de 170 milhões de pessoas. O cenário ideal seria conscientizar a população brasileira sobre a importância de uma autoadesão à vacinação, desde que tenhamos vacinas. Nós precisamos de pelo menos 380 milhões de doses de vacina, porque são duas doses, para vacinar cerca de 170 ou 180 milhões de brasileiros, considerando algumas perdas. A população precisa ser esclarecida sobre a segurança das vacinas contra a covid. As vacinas salvam vidas. Elas são um direito de cada cidadão. Elas ajudaram a erradicar a varíola, que matou 350 milhões de pessoas no século 20, e a controlar doenças como sarampo, caxumba, catapora, poliomielite, rubéola, meningite, difteria. As vacinas são a melhor estratégia de saúde pública, junto com água tratada, saneamento básico e antibióticos, é claro. Elas melhoraram a expectativa e a qualidade de vida. É uma ação de responsabilidade social, empatia e respeito à vida. Quando você está vacinado, você protege não somente a si mesmo, mas as pessoas eventualmente que não podem se vacinar. 

Por que o Brasil se tornou um cenário ideal para a disseminação de narrativas antivacinação?

Esse movimento nunca foi forte no Brasil. Já foi forte nos Estados Unidos, na Europa, mas particularmente nesse momento de muita polarização política, nós estamos vendo um crescimento no Brasil que é muito preocupante. Porque ele pode levar a uma queda na adesão da população não só para a campanha de vacinação da covid-19, mas também para outras doenças. Nós temos observado uma queda na cobertura vacinal para algumas dessas principais doenças. Por exemplo, sarampo. Nós não tínhamos casos de sarampo. Estava controlado no Brasil. E tivemos alguns milhares de casos em 2018 e 2019. Nosso receio é esse: que a população nesse momento fique desconfiada em relação às vacinas por tudo que vem sendo colocado pelo movimento antivacinas e que nós tenhamos uma queda na cobertura vacinal ainda mais acentuada nos próximos anos. Já tivemos uma queda em 2020 devido à própria covid. Esse movimento antivacinas precisa ser combatido com muita veemência. Veja como está o mundo com a covid. Agora imagine o mundo com a covid, o sarampo, a catapora, a meningite, a varíola, a rubéola, a difteria, a poliomielite, sem vacinas. Nós possivelmente não estaríamos aqui. Elas são a nossa melhor estratégia para sair da pandemia.

Nesse contexto em que a ciência ganha visibilidade, que papel podem ter os cientistas em orientar a população e divulgar informações de forma clara?

Precisamos cada vez mais conversar com a população e mostrar que a ciência é que salva do obscurantismo. A ciência salva do negacionismo. Ela é o mais próximo que podemos estar da verdade. As políticas públicas devem ser baseadas em evidências científicas robustas, sólidas, nos melhores estudos clínicos, que mostram a eficácia e a segurança, seja de um tratamento medicamentoso ou de uma vacina. Nós temos que defender que a ciência dê a resposta, não que questões políticas e ideológicas sejam mais importantes do que a ciência. Um político, por exemplo, não pode decidir se uma vacina ou um medicamento é seguro, eficaz ou bom para a população usar. Eles não entendem de ciência. Não entendem de estudos clínicos, duplos cegos, randomizados, com grupo placebo. Nós temos que confiar nos critérios científicos. Essa briga política infelizmente só leva a uma desconfiança da população com relação a quem acreditar. A população está no meio de um cabo de guerra: parece que temos uma guerra entre ciência e pseudociência. É importante também que a população passe a se identificar mais com os cientistas. E nós precisamos agir, todos nós, para que o Brasil tenha sucesso em bloquear esse criminoso movimento antivacina e essa onda de negacionismo que estamos vendo no país.

Qual é o papel do campo científico no qual o senhor atua, a química, em um contexto de emergência como esse de pandemia? Que horizontes se abrem para o desenvolvimento de novos medicamentos?

Eu particularmente atuo na área do desenvolvimento de medicamentos para doenças parasitárias tropicais, aquelas doenças consideradas negligenciadas, e também a malária. São doenças que afetam países de baixa renda e pessoas negligenciadas e consideradas vulneráveis, como doença de Chagas, esquistossomose e leishmaniose. A malária não é considerada uma doença negligenciada, mas afeta pessoas negligenciadas em países de baixa renda. Ela matou, em 2018, 405 mil pessoas, 67% delas crianças. Uma criança morre, segundo a OMS, a cada dois minutos, só de malária no planeta. Aqui eu coordeno um projeto único na América Latina, em colaboração com duas organizações internacionais sem fins lucrativos, que estão salvando milhões de vidas. Nosso objetivo é desenvolver medicamentos baratos, acessíveis, seguros, que possam ser utilizados por crianças, gestantes, com acesso garantido a todas essas populações. Aqui realizamos todas essas etapas, é um trabalho de elevado cunho social. Particularmente para a área de química, existem muitas possibilidades em termos de pesquisa, principalmente no desenvolvimento de antivirais. Temos a possibilidade de preparar bibliotecas de compostos químicos que podem, no futuro, ser transformados em algum antiviral potente contra o Sars-Cov-2. Isso tem sido feito através do reposicionamento de medicamentos, que são medicamentos já disponíveis no mercado. Desenvolver uma nova alternativa terapêutica leva um pouco mais de tempo, embora a pandemia tenha trazido uma mudança nesse cenário. Espero que a gente possa desenvolver novos medicamentos e vacinas em menor tempo, mantendo a segurança e todo o rigor científico.

Por fim, como é fazer pesquisa científica hoje no Brasil?

Realizar pesquisa nesse país é um desafio enorme, particularmente em universidades públicas. Nos últimos anos, nós temos sofrido vários cortes em atividades de pesquisa e bolsas de estudos para os nossos alunos. A universidade pública brasileira nunca foi tão atacada; particularmente nos últimos dois anos, a situação piorou muito. Nunca tivemos tantos cortes na área de ciência e tecnologia. Nunca tivemos tanta falta de interesse por parte de um governo em apoiar atividades de ciência e tecnologia em todas as áreas, das ciências exatas às ciências sociais. Nunca tivemos tanta perseguição ideológica como estamos tendo nos últimos dois anos. Mas seguimos fazendo ciência, procurando apoio, auxílio e colaboração com organizações internacionais, porque muitas vezes não conseguimos esse apoio aqui no Brasil. A ciência feita no Brasil é de altíssimo nível em várias áreas. É um trabalho árduo, muito difícil, mas as universidades públicas estão mostrando o seu valor nesse momento para a sociedade. Vejam a Fiocruz e o Butantan. São instituições que salvam milhões de vidas, porque produzem todas as nossas vacinas. Uma das possibilidades de atuação dos cientistas é essa de conversar com a sociedade. Precisamos nos reinventar nesse sentido. 

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