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Temos aqui um mundo de desordem, quem então está pronto para lhe devolver a ordem?

Bertolt Brecht

O ano de 2020 terminou. Mas as sequelas da pandemia persistem e permanecerão ainda por muito tempo, somadas aos problemas reais que continuam: Mais de mil brasileiros morrem por dia, em 2021; a dor das perdas para o vírus num curto período de tempo; muitos sonhos e histórias interrompidos e memórias de pessoas queridas que não voltarão mais; altas taxas de infectados em situações de extrema gravidade; falta de leitos, falta de ar; impactos na economia, aumento do desemprego e da desigualdade; medo e insegurança rondando grupos populacionais mais fragilizados, como os pretos, quilombolas, povos indígenas, mulheres e trabalhadores informais. O roteiro da pandemia se repete no novo ano.

Também é real que Manaus, a capital do estado considerado o pulmão do mundo, ficou sem ar. E não pelas queimadas, pela exploração consentida da madeira, pela mineração ou pelos desrespeitos e agressões ao meio ambiente, como vimos no passado muito recente. Faltou oxigênio e Manaus viu morrer asfixiado seu povo. Uma morte tão cruel como a de quem perde a vida no fogo. Uma morte prevista com 10 dias de antecedência, por profissionais que incansavelmente estão na linha de frente. Rodaram o mundo cenas de famílias e profissionais desesperados, implorando por oxigênio. Atitudes irresponsáveis, incompetência e descaso de governantes remetem à crueldade deliberada. Impossível acreditar que após visitar um estado que clama por oxigênio se ofereça kits de medicamentos, sabidamente ineficazes contra um vírus mortal e ainda desconhecido. Difícil acreditar que o cheiro da morte não tenha chegado ao Planalto Central, e que eclosões da pandemia ainda estejam sendo estimuladas por exemplos que negam o que a ciência recomenda (higiene das mãos, uso de máscaras e não aglomerações).

Chega de ignorância, negacionismo e maus exemplos! O Brasil não pode virar um filme de terror, com covas abertas à espera dos mortos. O Brasil não pode aceitar testemunhar seu povo morrendo, em casa ou no chão dos hospitais, por falta de leitos e de ar. Se há esperança do retorno à normalidade para os anos que virão, é porque ficou claro que a resposta para essas grandes questões passa pela ciência, pelo conhecimento, pela valorização da saúde pública, pelo planejamento responsável e por vacinas. Até mesmo para quem dispõe de tratamentos em hospitais particulares, pagos com os impostos do povo, são as vacinas, com seringas e agulhas suficientes, que representam a esperança de vida.

A Política de Educação Especial e a política de saúde mental – tratadas nesta edição – dão a dimensão do cenário negacionista em que o país está mergulhado, e representam os riscos que correm os direitos da pessoa com deficiência nas escolas e a inserção e livre circulação de quem tem transtornos mentais. A proposta de criação de ambientes especializados de educação para estas pessoas ignora o papel fundamental da inclusão para juntar o “aprender participando” com o direito que todos os estudantes têm de frequentar a sala de aula comum juntos, sem nenhum tipo de discriminação. Escolas inclusivas reconhecem a diversidade, valorizam o convívio com as diferenças e a singularidade do outro e colaboram para transformar culturas, ao estimular transposições de seus próprios muros segregacionistas, que ignoram o direito de cada um ser como é.

O negacionismo que alimenta o retrocesso nefasto também avançou sobre a política de saúde mental, com a revogação de portarias que garantiam o que foi conquistado com a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial. Graças a esta reforma, foram criadas estratégias de desospitalização e se resgataram direitos civis e sociais historicamente negados a dezenas de homens e mulheres, que durante o processo de asilamento eram destituídos da própria identidade, além de privados de seus direitos mais básicos de liberdade. A pergunta que cabe é: A quem interessa o desmantelamento de políticas públicas que vêm dando certo? A leitura da matéria “Manicômios nunca mais”, escrita pela repórter Lisiane Morosini, talvez traga luz para a resposta.

Algumas lições ficarão como legado, apesar de todo sofrimento e retrocessos vividos em 2020. E permanecerão vivas, fortes, como símbolos de resistência. A diversidade na política brasileira, que elegeu transexuais, mulheres negras, quilombolas e indígenas em votação expressiva na última eleição é uma delas. Relatos emocionados e emocionantes foram registrados pelos repórteres da Radis, e traduzem a vontade destes grupos em fazer ecoar vozes que já existem, e mudar as estruturas de poder por dentro, ocupando espaços de decisão. Assim é a representatividade e assim se elaboram políticas públicas que consolidam as democracias e os princípios do Estado Democrático de Direito.

* Justa Helena Franco, Subcoordenadora do Programa Radis
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