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Ser um “portinari” — dizia a plaquinha com data de 914 rastreada na Internet — significava encontrar alegria na felicidade do outro, ajudar o próximo, emprestar o ombro. A descoberta pegou o professor João Candido Portinari de surpresa. João é filho único do famoso pintor modernista brasileiro — autor da série “Retirantes” e do icônico painel “Guerra e paz”, erguido na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Aos 81 anos, 40 deles dedicados a catalogar e difundir o legado “pictórico e humanista” de Candido Portinari, João disse à Radis que a “compaixão” é o sentimento que atravessa as telas do artista, a ponto de se tornar uma característica marcante da obra de seu pai.

Nesta entrevista, ele conta curiosidades sobre a vida de um dos mais importantes artistas plásticos do Brasil, faz um percurso por algumas de suas telas e revela preocupação com o futuro do Projeto Portinari — acervo com 30 mil documentos e mais de 5 mil obras — criado e levado adiante por ele, que agora usa a tecnologia para aproximar Portinari de cada um dos brasileiros. João conversou com Radis numa folguinha da agenda de lives que tem lhe tomado boa parte do tempo nestes meses de pandemia — em todas elas, fala com propriedade sobre o sentido de compaixão nas telas do homem que sempre pintou as desigualdades, a injustiça, a fome, os excluídos. Um “Portinari”, sem dúvida nenhuma.

Você já disse que, se fosse usar uma palavra para definir a obra de Portinari, seria: “Compaixão”. Como essa característica aparece para você?

Não sou historiador nem crítico de arte, então, tome essa pesquisa não como a de um intelectual da área, mas como o trabalho de alguém que está há 40 anos convivendo com esse universo. Chamo a atenção para a presença da “compaixão” não no sentido do português que evoca piedade e pena, mas no sentido anglo-saxão (Compassion), de empatia, de se colocar no lugar do outro, de sentir a dor do outro. Certa vez, em um site italiano, me deparei com o significado da palavra “Portinari”, em uma espécie de placa com data de 914, ou seja, na Idade Média. Dizia o seguinte: “Portinari era sinônimo de compaixão. Ser um ‘portinari’ significava encontrar alegria na felicidade do outro, ajudar o próximo em dificuldades, emprestar o ombro sobre o qual chorar a quem tem o coração despedaçado”. Fiquei muito impressionado. Nunca tinha me ocorrido que o nome próprio poderia estar ligado também à compaixão. Pois está. E esse é o sentimento que vai permear toda a obra de Portinari.

De onde vem esse componente tão marcante na obra do pintor?

A partir dos escritos, dos poemas e do diário de infância deixados por ele, eu cheguei à conclusão de que a raiz disso tudo está no meu avô paterno, o pai dele, ‘seu’ Batista. Ele era um homem muito humilde, que veio para o Brasil junto com outros milhares de italianos, ainda no século 19, fugindo da miséria. Eles chegavam aqui pelo Porto de Santos e eram aglomerados no pátio à espera dos trens que os levariam para as fazendas de café do interior paulista. Meu avô foi parar numa região perto de Ribeirão Preto, um povoadozinho, era praticamente uma parada para pegar café. Ali ele se instalou e casou com a minha avó [dona Domingas]. Tiveram 12 filhos, Portinari foi o segundo. ‘Seu’ Batista era um homem de uma ingenuidade e uma boa fé incríveis. Ele rapidamente assimilou o jeito brasileiro, virou um caipira típico da região. Tinha uma pureza e uma bondade enormes. Eu digo isso não só porque convivi com ele até meus 18 anos, mas também pelos escritos que meu pai deixou. Em um desses, ele conta da época em que os leprosos passavam pela cidade do interior a cavalo, levando sinos pendurados no pescoço, e que, quando as pessoas ouviam aqueles sinos, corriam a fechar porta, janela, porteira, porque tinham muito medo. ‘Seu’ Batista, ao contrário, convidava-os a entrar na nossa casa, levava-os para a cozinha e oferecia uma refeição. Meu pai conta isso em poesia e prosa. Tem um momento em seus escritos que ele se refere ao pai assim: “Sinto às vezes carinho imenso por tudo e por todo mundo. É passageiro e me entristeço. Penso às vezes no meu pai em quem esse estado era permanente”.

E como a compaixão se manifesta na obra de Portinari?

Na tela “Os despejados”, por exemplo, de 1934, é a primeira vez que ele toma uma posição de crítica social, de denúncia contra as injustiças, e que ele se solidariza com os menos favorecidos, os despossuídos, os excluídos. É uma tela até menos conhecida do que a série “Retirantes”, que veio 10 anos depois. Em “Os despejados” você já encontra o drama e o trágico, que é o lado dele mais conhecido, mas tem também o lírico e o poético. Tem coisa mais poética do que colocar um burrinho azul diante de uma tragédia social? E tem também um baú, que depois vai aparecer bastante na iconografia criada por Portinari, ao longo de todo o seu percurso criador. Eu vi esse bauzinho na casa dos meus avós. Todas as famílias pobres tinham um baú como esse, feito de folha de flandres, decorado externamente com flores. Servia para a memória da família, o cacho de cabelo da menina, os óculos do avô, o cachimbo do tio. Era uma espécie de tesouro. E isso representava, para meu pai, a memória dos mais humildes. Uma década mais tarde, quando ele faz “Retirantes”, ele escreve um texto que fala muito sobre a compaixão: “Desde menino, tenho vivido o drama dos retirantes. Como deixar de fixar nos meus quadros aquilo que fez parte da minha infância, de minha vida, e ver uma vida melhor para os homens que trabalham a terra?”

Parece que ele responde a essa pergunta com suas telas…

Sim, ao longo de toda a vida, não apenas em um momento. Isso nunca deixou de ter, no coração de Portinari, o mesmo impacto que teve quando menino ainda. Brodowski [o povoado em que o pintor nasceu e cresceu e virou inclusive tema de muitas telas] estava no itinerário de retirantes. Quando criança, ele via famílias que iam morrendo pela estrada e isso o toca profundamente para o resto da vida. Numa palestra que deu para intelectuais, na França, ele diz isso: “Uma pintura que não fala ao coração não é arte. Porque só ele a entende. Só o coração nos poderá tornar melhores. E é esta a grande função da arte”. O que é isso se não a mais profunda compaixão pelo próximo?

“Eu sou um homem que tem saudade de Deus”. Essa frase foi dita por Portinari e revela um lado menos conhecido do pintor. Qual o lugar da religiosidade em sua vida e obra?

Fiquei muito impactado com essa frase quando ouvi. Isso é de uma força tão grande… Esse aspecto da religiosidade bem menos conhecido em Portinari inclusive levou a muito mal entendido. Quantas vezes ele pintou o Cristo? Pintou todos os santos, pintou duas vias sacras [Portinari é autor da via sacra pintada em 14 painéis na Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, em Belo Horizonte (MG), e de outra, na Igreja Matriz do Senhor do Bom Jesus da Cana Verde, em Batatais (SP)], pintou ainda telas bíblicas. Algumas pessoas diziam: “Como um artista comunista pode pintar pintura sacra com tanto fervor como ele pintou?” Esse paradoxo aparente não é paradoxo algum. Ele era o pintor da compaixão e o que há de mais religioso do que a compaixão? [Nesse momento da entrevista, João exibe um trecho de um depoimento em que ele responde a uma pergunta que lhe fizeram sobre qual é a unidade na obra de seu pai? “Eu respondi sem hesitar”, ele diz. “É o sentimento. É o humanismo, a profunda compaixão pelo ser humano, pela vida humana, pelo sagrado da vida]. Então, o que poderia ser essa compaixão pelo sagrado da vida se não a religiosidade mais autêntica e profunda?

Nos momentos finais da vida de Portinari, ele faz o icônico “Guerra e Paz” [Mural gigantesco composto por dois painéis representando a guerra e a paz, do título que está na entrada da sede da ONU, em Nova York, desde sua inauguração em 1956, e acabou se tornando um símbolo da defesa dos direitos humanos]. Qual a atualidade dessa obra?

Para responder a essa pergunta, basta ver as imagens do noticiário. A história do painel é a seguinte: todas as nações membros da ONU foram convidadas a doar uma obra de arte para a nova sede da instituição, em Nova York, que tinha acabado de ser construída. Então, cada país começou a escolher seus artistas e dar a eles os temas. O escolhido no Brasil foi Portinari, que recebeu o elenco de temas. Entre eles, estava o tema de sua vida. Tem maior compaixão do que “Guerra e Paz”? Você vê que no painel da Guerra, ele não coloca tanques, metralhadoras, soldados, uniformes. Não existe isso. Existe só o sofrimento humano. A figura da Pietá, da mãe com o filho morto, aparece oito vezes, em diversas posições. O painel da Guerra tem aqueles tons profundos, de azul escuro, de roxo, aquela coisa trágica, mas muito compassiva, dele abraçando aquele ser humano que sofre. E no painel da Paz, é só ouro, tudo dourado, são amarelos, rosas, azul claro, com crianças brincando, moças dançando, mulheres voltando da colheita. É uma exaltação à felicidade possível, à felicidade que o ser humano poderia ter. Mas “Guerra e Paz” tem acima de tudo um lado político, evidentemente, muito forte. “Guerra e Paz” vale por 500 discursos políticos. Basta olhar. Aliás, quando houve a inauguração de “Guerra e Paz” no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade estava presente. No dia seguinte, ele escreve uma crônica belíssima, em que no final ele diz: “Olha, vê bem, penetra o fundo destas imagens e escolhe”. 

Portinari não chegou a ver o painel montado na sede da ONU…

Por razões políticas, por conta de perseguição política, não lhe deram o visto de entrada nos Estados Unidos. Então, ele morre sem ter a emoção de ver a grande obra da sua vida. Ele nunca viu o painel inteiro erguido. Ele só o viu em pedaços, porque o mural foi pintado em pedaços [cada painel é formado por 14 pedaços, são 28, no total]. Mas há um trecho de um discurso dele que resume tudo isso que a gente vem falando: “As coisas comoventes ferem de morte o artista. E sua única salvação é retransmitir a mensagem que recebe. Eu pergunto: quais as coisas comoventes nesse mundo de hoje? Não são por acaso as tragédias provocadas pelas guerras, as tragédias provocadas pela desigualdade, pelas injustiças e pela fome? Haverá na natureza qualquer coisa que grite mais alto ao coração do que isso?” Acho que se Portinari estivesse vivo, ele estaria pintando tudo isso, porque sua obra sempre foi muito comprometida com o humano da vida.

Como tanto sentimento se manifestava na vida cotidiana, no convívio de seu pai com a família e os amigos?

Em muitos aspectos. Os muitos amigos que ele tinha eram fascinados por ele. Meu pai tinha um olhar extremamente penetrante, eram olhos muito azuis, muito intensos, brilhantes. Parece que ele passava a alma dele pelos olhos. Era muito generoso com os amigos e com a família, que era muito importante para ele. E isso se reflete também na pintura. Aliás, você vai encontrar uma coisa muito curiosa: Portinari não foi um artista sensual, não há sensualidade alguma na sua obra, em momento algum. E é curioso que um artista tão moderno, tão inovador, tivesse um lado que a gente podia chamar de puritano, de uma certa timidez, um certo pudor, com relação a um lado mais libertário que a gente encontra em outros artistas contemporâneos dele, como Di Cavalcanti. Portinari, ao contrário, nesse aspecto, é absolutamente contido. Uma vez perguntaram pra ele: “Por que você não pinta nus?” E ele respondeu: “Mas o que minha avó iria dizer?” Aquela coisa da família matriarcal, humilde, trabalhadora tinha muita presença na vida dele. Por exemplo, ele não admitia que se falasse palavrão perto dele. O Mário de Andrade, que falava muito palavrão, tinha que se controlar perto de meu pai. E como ele amava meu pai, não queria magoá-lo, então, não falava. Tem até um texto de Portinari em que ele conta que tinha um colega bem novinho ainda ali na Escola de Belas Artes, que adorava praguejar e que, quando esse colega começava a praguejar, ele saía correndo porque tinha medo que caísse alguma coisa sobre sua cabeça. A coisa chegava a esse ponto…

Você está há 40 anos à frente do projeto Portinari, que reúne o legado do artista em 30 mil documentos, entre poemas, cartas, conferências. Qual o maior desafio do projeto hoje? 

O maior desafio, de uma forma bem prosaica, é ele continuar existindo. A gente está lutando com uma imensa dificuldade, principalmente agora. Perdi boa parte da minha equipe e estamos sem recursos há 3 anos. Nossa prioridade máxima agora é buscar uma solução para isso e procurar a auto-sustentação do projeto. E também, estou com 81 anos, dediquei mais da metade da minha vida ao projeto, a gente não quer que, quando eu não estiver mais aqui, tudo isso se perca ou seja desvirtuado ou fragmentado. Então, o grande desafio, na verdade, além dessas coisas práticas de que falei, é criar uma rede de relacionamentos grande movida à paixão. Acho que a gente tem que contagiar as pessoas para que compreendam e tenham a curiosidade e o desejo de se aproximar desse legado. Não tenho dúvidas de que a arte salva, como tanta gente já falou. E acho que estamos vivendo um momento em que tudo isso ficou muito claro. As soluções puramente materiais ou mesmo econômicas sem a arte não nos levam a lugar nenhum. O grande antídoto contra o fascismo e contra tudo isso que nos ameaça está no binômio arte e cultura. Portinari nos ajuda com isso.

Como fazer com que o brasileiro conheça Portinari como ele merece? 

Infelizmente, mais de 95% da produção de Portinari está invisível, em coleções particulares, em salas de banco. Agora, felizmente as ferramentas tecnológicas estão se aperfeiçoando a cada dia e podemos aproximar a obra de Portinari de muito mais gente [você pode fazer uma visita guiada pelas 120 obras da célebre exposição “Portinari of Brazil”, que aconteceu no Moma, em 1940, e foi reconstituída nos mínimos detalhes]. Acho que a missão do projeto Portinari é considerar que o artista deixou um legado não somente pictórico, mas também ético e humanista por meio também de seus poemas, cartas, conferências… A gente pode olhar para tudo isso como se fosse uma grande carta que ele escreve ao povo brasileiro — aliás à humanidade, não só ao povo brasileiro — e a constatação de que essa carta não chegou ao seu destino, não foi entregue. Então, a missão do projeto Portinari é colocar essa carta no colo de todo brasileiro onde quer que ele esteja.  

Para conhecer Portinari

Projeto Portinari – Reúne o acervo do pintor com cerca de 30 mil documentos e 5.400 obras http://www.portinari.org.br/ Nas redes sociais: projetoportinari (Facebook) e @projeto_portinari (Instagram)

Portinari of Brazil Visita guiada pelas obras da célebre exposição, que aconteceu no Moma, em 1940, e foi reconstituída minuciosamente nos mínimos detalhes. Acesse aqui: https://vimeo.com/470732824

Google Arts and Culture A plataforma disponibiliza acervos de grandes museus do mundo, entre eles, a vida e a obra do artista brasileiro, numa parceria com o Projeto Portinari  https://artsandculture.google.com/project/portinari

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