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Em maio de 2017, após 10 anos de gestão da Dra. Margaret Chan (2007-2017), um novo diretor-geral (DG) da Organização Mundial da Saúde (OMS) será eleito pela Assembleia Mundial da Saúde. Três candidatos estão no páreo, indicados por seus respectivos países: David Nabarro (Reino Unido), Tedros Ghebreyesus (Etiópia) e Sania Nishtar (Paquistão). O novo (ou a nova) líder da diplomacia da saúde mundial vai enfrentar um mundo profundamente desafiador no campo social e sanitário.

Nos últimos 10 anos, ocorreram diversos processos complexos no campo das doenças transmissíveis. Em 2009, a OMS declarou um risco de pandemia mundial de influenza que não se confirmou, mas que levou diversos países a acumular toneladas de um antiviral que acabou não sendo usado, mas gerou lucros astronômicos à indústria farmacêutica. Entre os anos de 2014 e 2016, uma devastadora mas limitada epidemia pelo vírus Ebola se abateu sobre três países da África Ocidental, na qual equívocos importantes foram cometidos pela burocracia da OMS, entre os quais chegar atrasada no processo e declarar sua extinção — curiosamente um dia antes do anúncio de novos casos em um dos países da região afetada.

No mesmo período, verificou-se a emergência de doenças virais oriundas de aves de criação em diversos países da Ásia e do Oriente Médio, como SARS, coronavírus e gripes aviária e suína, reforçando teses de que o trânsito de doenças entre humanos e animais é uma realidade do que vem sendo chamado de “Uma Saúde” (One Health) — onde se situam também doenças infecciosas transmitidas por via alimentar e a crescente resistência dos microrganismos aos antibióticos. As doenças que já representavam ameaças globais, como a tuberculose multirresistente a drogas, a aids e a malária, permanecem como tal, mas a emergência das arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti, como as febres pelos vírus Zika e Chikungunya, vieram somar- -se ao flagelo ‘permanecente’ da dengue.

Simultaneamente, consolidou-se no período a chamada tríplice carga de doenças: às doenças transmissíveis vieram somar-se as doenças não-transmissíveis, como hipertensão, diabetes e as neoplasias, com prevalência jamais vista e que ocasionam milhares de mortes precoces na população; e a violência, os homicídios, suicídios e mortes por acidentes de trânsito, todos em viés de alta. Em adição, as transformações demográficas, como o envelhecimento da população, e as mudanças climáticas — que tendem a exacerbar diversos impactos sobre a saúde — colocam desafios à sociedade e aos sistemas de saúde em todo o mundo.

Além das condições sociais e de saúde da população mundial, os sistemas de saúde também apresentam sérios problemas a serem enfrentados, como a complexidade técnica e os custos financeiros para implementar o conjunto integral de ações sanitárias (promoção da saúde, prevenção de enfermidades, e tratamento, recuperação e reabilitação dos enfermos). A atenção primária de saúde (APS), evocada como uma prioridade, porque resolve cerca de 90% dos problemas de saúde, permanece sufocada por sistemas que privilegiam a alta complexidade, mais lucrativa e prestigiosa.

A saúde, além de uma questão biológica é também resultante de processos sociais. Aqueles que se encontram em posição mais elevada no gradiente social vivem mais e em melhores condições de vida e de saúde, e vice-versa. Neste ‘conceito ampliado de saúde’, os determinantes sociais deveriam ocupar posição central nas prioridades da OMS e de governos e sistemas de saúde: apenas superando a inédita concentração da renda, pobreza e desigualdades, iniquidades de direitos, falta de água e saneamento, moradias totalmente inadequadas à vida, qualidade do ambiente prejudicial à saúde, entre outros, poderão ser produzidos melhores resultados sobre a qualidade de vida e a saúde.

A OMS tem papel de destaque na evocação da responsabilidade dos demais setores pelo efeito de suas políticas sobre a saúde. Em 2011, realizou no Rio de Janeiro a Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, que resultou na Declaração Política do Rio, na qual os cerca de 110 países comprometeram-se a desenvolver políticas e formas de governança intersetorial. Em 2012, no documento resultante da Rio+20, O futuro que queremos, os chefes de Estado e de Governo concordam que “a saúde é uma condição prévia, um resultado e um indicador das três dimensões do desenvolvimento sustentável [econômico, social e ambiental]”. Em junho de 2013, em Helsinque, a OMS realizou a 8ª Conferência Global sobre Promoção da Saúde, cuja declaração final defende a necessidade da estratégia da “saúde em todas as políticas”, chamando governos e sociedade civil para a formulação e implementação de políticas e ações favoráveis e não nocivas à saúde.

Em 2014, uma comissão de alto nível da Universidade de Oslo e da revista Lancet lançou um informe sobre as origens políticas globais das inequidades em saúde, com graves consequências — o que demanda seu enfrentamento por ações concertadas da OMS e seus Estados membros. Entre tais eventos e políticas encontram- -se: crises econômicas, medidas de austeridade, propriedade intelectual, tratados sobre investimentos estrangeiros, segurança alimentar, atividades empresariais transnacionais, migração ilegal e conflitos violentos. As duas primeiras estão hoje presentes de forma duríssima no cotidiano dos brasileiros, como todos sabemos.

Em 2015, as Nações Unidas definem que “assegurar saúde e bem-estar para todos em todas as idades” é o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) na área da saúde, definindo ainda nove metas e quatro meios de implementação, entre as quais a cobertura universal e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais. A questão central é que o alto custo e a feroz proteção patentária, defendida pela indústria farmacêutica e de outros insumos na OMS, OMPI e OMC, excluem do acesso milhares de pessoas dos países pobres e os pobres de todos os países.

Finalmente, em 2016, também na Lancet, um grupo de alto nível clama que a mais alta prioridade do novo DG da OMS deverá ser apresentar e negociar um Tratado Global sobre o Direito Humano à Saúde, com força vinculante por parte de todos os países.

Diante de toda esta complexidade — que inclui a tripla carga de enfermidades; a fragilidade dos sistemas de saúde, como também da própria OMS; as iniquidades sócio-sanitárias; e a dependência da saúde da política de outros setores — a tarefa da nova direção da OMS é imensa. Para manter-se como ‘autoridade sanitária mundial’, deverá passar por profundas transformações nas suas políticas e estruturas, ampliando seu diálogo com as demais agências da ONU em torno da importância da saúde para o desenvolvimento sustentável, reduzir sua centralização e ampliar sua presença nos países, além de dialogar com outros atores globais relevantes, liderando a definição de prioridades para a saúde num mundo complexo e cada vez menos solidário.

■ Paulo Buss é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS), centro colaborador em Saúde Global e Cooperação Sul-Sul da OMS/OPS na Fiocruz