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Mais do que vencedor do Carnaval do Rio de Janeiro de 2022, o desfile da Grande Rio foi intitulado, com absoluta justiça, um dos maiores do século.

Nunca Exu havia sido protagonista de uma escola de samba. É que esse enredo provavelmente estava aguardando décadas, senão séculos de maturação, para que pudesse ser confeccionado e apresentado em toda sua complexidade. E mesmo que consolidasse uma nova fase conceitual e estética na Marquês de Sapucaí.

Um desfile é uma gigantesca obra musical, cênica, plástica e literária. Esse último aspecto é menos evidente. Mas talvez seja ele que tenha feito dos jovens Leonardo Bora e Gabriel Haddad os mais importantes carnavalescos contemporâneos — ao lado de sua ligação fundamental com a comunidade e com a rede de artistas que faz o maior espetáculo da terra.

Reunindo Conceição Evaristo, Helena Theodoro, Alberto Mussa, Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino, Alexandre Cumino, Wanderson Nascimento, Nei Lopes, Abdias do Nascimento, Jean-Michel Basquiat, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros intelectuais e artistas, Bora e Haddad fizeram uma obra que, no seu aspecto mais evidente, foi um manifesto contra o racismo religioso, dando continuidade ao trabalho de 2020, que homenageou o pai de santo Joãozinho da Goméia.

As religiões de matriz africana são as que mais sofrem do mal da intolerância, cujas estatísticas sobem ano a ano. Opondo exus e pombagiras (ligados à figura do diabo) ao Espírito Santo é que muitos cultos cristãos se realizam.

Os carnavalescos lembram que a associação de Exu com as ideias de mal e pecado remonta aos tempos coloniais escravistas, em que o catolicismo se valia de diversas estratégias para se impor, dentre as quais a depreciação de divindades que não a sua, usando a figura do demônio para mobilizar uma “máquina domesticadora de corpos e mentes”. Em contrapartida, os próprios povos de terreiro se apropriaram desse imaginário como tática de sobrevivência: se Exu é o diabo e o diabo é perigoso, que os outros tenham medo dele!

Mas é (ou deveria ser) evidente, e esse é o cartaz da Grande Rio, que Exu não é o belzebu de doutrinas cristãs. É uma energia complexa, que a Escola colocou na avenida em toda sua exuberância. E não poderia ser diferente, pois Exu é o portador do Axé, da energia vital.

Segundo as cosmogonias iorubás, Exu foi criado por Olorum com uma série de potências, inclusive a de dar movimento a deuses e homens e de fazer a mediação entre eles. Exu é o princípio dinâmico, símbolo de mudança, da comunicação, da liberdade. A rua, a esquina e a encruzilhada são seus templos. É o que cobra e dá. É o que abre os caminhos. “Nunca foi sorte, sempre foi Exu”, assim foi nomeada a fantasia da bateria de Mestre Fafá.

Exu é a energia que dinamiza as trocas, povoando mercados e feiras. Esses intercâmbios, reivindica a Grande Rio, não possuem o sentido da acumulação capitalista, mas estão apoiados na ideia de sociabilidade. São representados no imenso carro “Chão de Terreiro, Axé no Mercado” — mercado e terreiro estão juntos porque Exu transborda a dicotomia entre espaços sagrados e profanos.

A alegoria é composta por bancas, barracas e mais de 2 mil caixotes de madeira, inspirados nas instalações do artista ganense Ibrahim Mahama. Exibe também gigantes padês — oferendas de fartos alimentos e cachaça, que o Exu da comissão de frente comia e bebia com gosto. E na sua frente, luminosos, os sacerdotes que os preparam. Um deles era Luiz Bangbala, ogã vivo mais antigo do Brasil, no auge dos seus impressionantes 102 anos.

Exu expressa as contradições humanas; adquire incontáveis corpos e nomes.

Associado a símbolos de virilidade, potência, fecundidade — e criação —, nesse sentido é comparado ao deus grego Príapo. Nas noites de Exu, povoadas de malandros, damas da noite, trancas-rua, marias padilhas, zés pelintras, as pombagiras levam homens e mulheres ao delírio, à embriaguez e aos jogos de sedução. O carteado, os botequins, os cabarés, a embriaguez, o desvario, os anéis, os batons, os dados, as taças… Todos esses personagens e ícones dos prazeres terrenos foram exaltados no carnaval da Grande Rio… porque Exu é carnaval. Um dos seus títulos é Odará, o Senhor da Felicidade.

Ainda compõe a energia de Exu a “linha do lixo”, pois ele circula por espaços associados ao que é rejeitado pela sociedade. A Grande Rio teve uma seção celebrando os marginalizados, os silenciados, os descartados, os “loucos”, os narradores cujas visões desafiam as certezas. Exu é diversidade que desafia qualquer pretensão de razão unificada.

As roupas e a impressionante alegoria do setor — um cenário diatópico — foram idealizadas em parceria com estudantes de Belas Artes da UFRJ, utilizando-se de sobras de material de todo o processo criativo de várias escolas — Exu é a boca que tudo come, e na composição o Carnaval deglute a si mesmo.

A ala foi dedicada à Estamira, catadora de Gramacho — o maior lixão que já existiu na América Latina, e que ficava em Caxias. Ela conversava com Exu via telefone, saudando-o: “Fala, Majeté”, como o samba se inicia.

Exu Caveira, levado ao conhecimento do grande público por João Bosco e Clementina de Jesus em 1979, não faltou ao desfile, na “linha do cemitério” — expresso principalmente no figurino dos intérpretes, com destaque para Evandro Malandro. Em banto, ensina Nei Lopes, “Kalunga” significa “grandeza, imensidão, mar” e… “morte”. O próprio Atlântico era chamado de “Kalunga Grande”, no sentido de “grande cemitério”.

E aí chegamos no que para mim é o ponto nodal de Exu e da proposta da Grande Rio: a encruzilhada, a começar pela grande encruzilhada do Atlântico, pela qual “atravessaram sabedorias de outras terras que vieram inventadas nos corpos, suportes de memórias e de experiências múltiplas que, lançadas na via do não retorno, da desterritorialização e do despedaçamento cognitivo e identitário, reconstruíram-se no próprio curso, no transe, reinventando a si e ao mundo”, na síntese espetacular de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino.

Ao se ler a diáspora africana — sequestro e travessia forçada de seres humanos, quase seis milhões apenas para o Brasil — como encruzilhada, podemos ver nela o “paradoxo incompreensível aos olhos coloniais”: uma fresta de reinvenção. O oceano acolheu o banzo, mas serviu também de esteira para o não esgarçamento de crenças e pensamentos que foram reconstruídos — assentados — nas Américas.

O primeiro carro da escola representa esse assentamento, essa cruzada atlântica, em um poderoso “mar de dendê”, expresso na melodia e em fantasias, pelas quais os carnavalescos criarem um “fantástico cortejo de Exus africanos em direção ao território brasileiro, deslocado do tempo”, atravessando um terreiro aquático onde são riscados pontos e guardados segredos.

A reinvenção é possível pela resistência, catalisada por Exu, porque resistência — e eis aí mais um paradoxo — é movimento de transformação do mundo. E assim uma alegoria é destinada ao Exu-liberdade, ao Exu-luta, que não se deixa amordaçar ou aprisionar por amarras. Representado por Zumbi dos Palmares, foi interpretado pelo professor, advogado defensor de direitos humanos Renato Ferreira. Inclusive há um busto de Zumbi na cidade da Grande Rio. O movimento negro, aliás, já reivindicou a troca do nome de Duque de Caxias — símbolo de repressão de revoltas populares e exaltado como o patrono do Exército brasileiro — para município “Zumbi dos Palmares”.

A alegoria do líder negro se emendou com a ala das baianas, que vestiam o emocionante “fogo no canavial”: fazê-lo era um ato de insubmissão e uma estratégia utilizada nas fugas para os quilombos. Suas saias incendiaram a avenida num senso de justiça e liberdade.

Exu, associado a uma noção não linear de tempo e sua figura caleidoscópica, nas palavras dos carnavalescos, serve de “espelho (estilhaçado) para que pensemos o próprio Brasil — país que se faz terreiro, num desfile de Escola de Samba”.

Parabéns pelo prêmio mais do que merecido. Que com ele aprendamos mais sobre quem somos e sobre quem podemos ser. Laroiê!

* Marina Basso Lacerda é doutora em Ciência Política e autora do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019). Esse texto foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil (27/04).
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