Assim como em 1918 e 1929, o mundo se dá conta de que o Estado, visto como intrinsicamente ineficiente e como o grande vilão de desequilíbrios fiscais, é a única tábua de salvação para uma crise mundial que já se fazia presente mesmo antes da eclosão da pandemia de coronavírus.
A Covid-19 tornou evidente que as sociedades não podem abrir mão de sistemas públicos de saúde e de seguridade social. Revelou que a legislação trabalhista é obviamente fundamental para a proteção do trabalhador. Na mesma linha, deixou claro que o mercado jamais substituirá o Estado no provimento do bem-estar social. Mostrou também a fragilidade de uma economia que não inclui. De modo contundente, nos alertou para o fato de que, apesar de nossas diferenças, precisamos nos unir na construção de alternativas solidárias à concentração de renda e a irresponsabilidade ambiental e social que marcam as destrutivas políticas neoliberais.
Diante do desastre, nos demos conta de que é urgente costurar um novo pacto mundial. Um pacto multilateral, reciprocamente responsável, que reduza as assimetrias e estimule os países a adotar estratégias econômicas onde princípios como oportunidades iguais e dignidade para todos ganhem centralidade e participem ativamente dos projetos de desenvolvimento.
No Brasil, assim como em outros países, o governo e a grande mídia vinham justificado a política de austeridade, afirmando que era preciso combater o déficit nas contas públicas e que não haveria recursos para financiar políticas de saúde, educação, assistência social e outras igualmente imprescindíveis como ciência e tecnologia. Sob tal argumento, a reforma trabalhista desamparou trabalhadores. Na mesma linha, a reforma da Previdência condenou a população a um futuro sombrio. E, até a pandemia aportar em nossas terras, estava em curso uma reforma administrativa que tinha por objetivo a construção de um Estado para poucos.
Diante do caos, somos levados a questionar se este seria o melhor caminho, se o equilíbrio das contas públicas seria o fator mais importante e o único a ser perseguido. Se o equilíbrio das contas públicas era o fator mais importante e o único a ser perseguido. De fato, embora não se defenda aqui o desequilíbrio fiscal, vale ressaltar que países do primeiro Mundo, a exemplo do Japão e de outras potências, produzem déficits para financiar o desenvolvimento. Isso porque, em situações de crise, o mercado se defende e para de investir. Em tais momentos, somente o Estado pode socorrer a população e fazer a economia voltar a girar. O problema, portanto, não está na produção de déficits, mas na sua natureza e nas suas formas de reprodução.
A experiência mostra que a produção de déficits pode conviver, de modo funcional, com o conjunto da economia. Déficits produzidos para dinamizar a atividade produtiva podem ser sanados pelo retorno das receitas derivadas do aquecimento do mercado. É o que ocorre em economias de países que têm compromisso com a sua população, com a geração de empregos e com a sua soberania. Países onde a produção de déficits cumpre a função de força motriz.
Por outro lado, déficits, como os nossos, originários de rolagem de dívidas e destinados, quase que exclusivamente, a remunerar o rentismo em detrimento do setor produtivo, podem produzir um ciclo vicioso difícil de controlar e interromper. Uma engrenagem que, em situações críticas como as que experimentamos, expõe a duras provas uma economia deprimida e revela sua face mais cruel, condenando milhares à miséria e à morte pelo abandono e pelo aniquilamento da capacidade de resposta do Estado frente à estagnação do setor produtivo e ao colapso das estruturas de atenção à saúde e à seguridade social.
Na Europa e nos EUA, os governos correram para injetar os recursos necessários para combater a pandemia e os seus efeitos. Recorreu-se à reestatização, à redução drástica dos juros, a programas de renda mínima, à suspensão de pagamento de aluguéis, contas de luz e gás, taxas e impostos.
No Brasil, apesar de acenar com a liberação emergencial de recursos, Guedes e Bolsonaro, defenderam, em meio à rápida evolução da pandemia, o aprofundamento das políticas de redução do Estado e cortes de direitos. Portando-se como um fundamentalista de uma nota só, o “posto Ipiranga” revelou a fragilidade do arsenal neoliberal para lidar com crises. Em um abraço de afogados, o presidente e a sua equipe econômica viram o país rumar para o naufrágio.
Para além do perigo presente, a pandemia deixará sequelas profundas na nossa estrutura econômica e social, afetando de modo negativo e duradouro a qualidade de vida da população. Nessas circunstâncias, o Estado nunca foi tão necessário. Nunca precisamos tanto de um serviço público de qualidade que chegue a todos! É imprescindível banir de vez as políticas econômicas de viés neoliberal. Abandonar este rumo não só nos momentos de crise em que todos recorremos ao Estado. Mudar a rota para reconstruir o país em bases mais sólidas e civilizadas. A emergência que enfrentamos e o país que surgirá ao final da pandemia, vão colocar questões que precisaremos responder a partir uma perspectiva mais solidária e intergeracional. Será que aprendemos?
■ Pesquisador do Observatório de História e Saúde (COC/Fiocruz), Diretor do Cebes e da Asfoc-SN