Fotografia: Eduardo de Oliveira.

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Agentes comunitários de saúde são legítimos mobilizadores sociais, mas isso ainda não é suficiente para garantir o pleno reconhecimento desses profissionais

Era uma visita domiciliar de rotina. Mas a agente comunitária de saúde Haíla Rangel Pimenta percebeu que o gatinho ao pé da mesa tinha uma grande ferida no olho esquerdo. Durante o café, ela também notou uma lesão no braço da dona da casa, algo como um “pequeno furúnculo” — pelo menos foi assim que a senhora tentou desconversar naquele dia. Háila não se convenceu e marcou uma consulta da moradora com a médica do Posto de Saúde da Família Maria Cristina, em Mesquita, município da Baixada Fluminense, onde atua desde 2010. O atendimento revelou esporotricose — micose que pode afetar homens e animais, especialmente os felinos. “Voltei à comunidade com o enfermeiro, conversei com o restante da equipe, fizemos pesquisas. No dia seguinte, estávamos com uma palestra pronta. Depois, saímos colando cartazes alertando sobre os cuidados e acabamos descobrindo inúmeros outros casos na região”, lembra Háila.

A agilidade da agente comunitária de saúde aliada ao senso coletivo fizeram com que a doença fosse tratada e logo debelada do território. Se quando prestou o concurso Hayla não sabia exatamente o que fazia um ACS (sigla pela qual a categoria é conhecida dentro e fora do Sistema Único de Saúde), hoje ela não tem dúvidas. “Não somos atores coadjuvantes da saúde pública, somos fundamentais. Durante as visitas domiciliares, atuamos para garantir todo o cuidado e a atenção que a nossa comunidade merece. Nosso trabalho preventivo vale muito”, afirma, defendendo que “a melhor coisa da vida” é ser agente comunitária de saúde. “Vivo por minha comunidade e é para ela que eu quero todas as melhorias”.

Oficialmente implantado em 1991 e inicialmente conhecido como Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), o trabalho do ACS funciona hoje como uma espécie de espinha dorsal da Estratégia de Saúde da Família (ESF), a despeito dos constrangimentos e ameaças que a categoria sofre repetidamente (ver matéria mais abaixo). No documento que apresenta a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), publicado pelo Ministério da Saúde em 2012, está escrito com todas as letras: as atribuições do ACS vão desde trabalhar com adscrição de famílias em base geográfica definida, cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadastros atualizados, até orientar as famílias quanto à utilização dos serviços de saúde disponíveis e acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob sua responsabilidade, além de desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e agravos e de vigilância à saúde, com ações educativas individuais. Ao lado do médico, do enfermeiro e do técnico de enfermagem, o ACS integra a equipe mínima da Saúde da Família.

Na prática, como descreveu a pernambucana Tereza Ramos, líder comunitária e uma referência histórica entre os ACS, o agente comunitário de saúde é, antes de tudo, alguém que se identifica em todos os sentidos com a sua própria comunidade, principalmente na cultura, na linguagem e nos costumes. “Precisa gostar do trabalho. Gostar principalmente de aprender e repassar as informações, entender que ninguém nasce com o destino de morrer ainda criança”, disse em uma entrevista que se tornou célebre ao Jornal dos Agentes de Saúde do Brasil, ainda em 2013. Tereza, que morreu em 2016, foi presidente da Confederação dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) por três mandatos e é um dos principais nomes na luta dos ACS pela regulamentação dos direitos da profissão.

PARTE DA FAMÍLIA

De Nova Iguaçu, Ailana Scandian gosta de pensar que já era agente de saúde antes mesmo de prestar concurso para o município, em 2008. Quando o cólera ameaçou voltar ao Rio de Janeiro no início dos anos 2000, ela, de bom grado, foi de porta em porta conversar sobre higiene e distribuir orientações. Formada em Ciências Contábeis, decidiu trocar os números pelas histórias de vida das pessoas com quem convive desde criança no bairro de Cerâmica. “Isso era algo que já gostava de fazer. Agora, durmo e acordo pensando na comunidade. Nós somos ACS 24 horas por dia; ‘366’ dias ao ano. Não temos folga”, conta, exagerando de propósito na matemática, a fim de demonstrar que, para fazer a ponte entre a comunidade e a equipe de saúde, a dedicação extrapola as 40 horas semanais de trabalho.

Nós somos ACS 24 horas por dia; ‘366’ dias ao ano. Não temos folga. Ailana Scandian, ACS

Fotografia: Eduardo de Oliveira.

De acordo com a normatização da profissão, o ACS deve residir na área da comunidade em que atua. “Estou cuidando de pessoas que me viram criança. As casas que hoje visito são casas que eu costumava frequentar na infância onde brincava com os filhos dessas pessoas. Também tô perdendo gente de quem gosto muito, infelizmente”, comenta Ailana que hoje integra a Associação de Agentes Comunitários de Saúde da Baixada Fluminense (AACSBaixada). “Quando um ACS é recebido por uma família, é como se passasse a fazer parte dela. Tudo o que acontece ali nos afeta profundamente”, diz. A agente comunitária acredita que o grande diferencial do seu trabalho é a visita domiciliar e critica uma certa burocratização que, segundo ela, vem ocorrendo na profissão. “A gente tem visto muito ACS dentro da unidade, fazendo trabalho administrativo, digitando coisas, atrás de um balcão, agendando consulta, agora até com blusinhas de ‘Posso Ajudar’”, diz. “Quando isso acontece, cuidar das famílias fica em segundo plano”.

É por isso que, quando fala sobre os agentes comunitários de saúde, a pesquisadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Márcia Valéria Morosini, não consegue apenas tirar uma fotografia do momento atual. Ela faz questão de se referir a uma categoria profissional e a um trabalhador egresso dos movimentos populares que tem uma história anterior às discussões sobre saúde da família e que precede até mesmo a criação do SUS. “A gente está falando de uma história de trabalho que vem dos movimentos populares de saúde, da luta pela democratização, pela Reforma Sanitária”, recorda a pesquisadora. “Os sujeitos que se tornaram agentes comunitários de saúde são homens e mulheres que trouxeram para dentro do SUS essa história que começa na sociedade civil organizada”.

Ao mesmo tempo, lembra Márcia, ele se torna um trabalhador, e não um voluntário, a partir do SUS e de sua inclusão na ESF. “Esses trabalhadores são chamados a ser mediadores do território para os serviços de saúde, a ser intérpretes para as equipes que não compreendem aquele território”, diz. Para ela, a profissão se institucionaliza a partir de uma política pública que avança nos direitos da classe trabalhadora e de uma estratégia que amplia o acesso e o direito à saúde, mas o faz dentro dos limites do contexto neoliberal dos anos 1990. Nesse percurso, o agente comunitário de saúde vai se profissionalizando. “Ele quer uma lei que diga que ele é ACS; que fale sobre os seus vínculos”, acrescenta a pesquisadora, remetendo à origem da Lei 10.507, de julho de 2002, que cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde.

Só é possível conhecer a realidade de uma família quando entramos na casa dela. E é isso que o ACS faz. Entramos na casa das pessoas. Ana Cristina Freitas, ACS

Fotografia: Eduardo de Oliveira.

Ana Cristina Freitas trabalha como ACS há mais tempo do que a promulgação da Lei: 16 anos. Fez o concurso para o município de São Gonçalo (RJ) e, aprovada, aprendeu na prática como fortalecer a integração entre os serviços e a comunidade; descobriu tudo sobre prevenção de doenças e promoção de saúde; e, durante as visitas domiciliares e nas ações individuais e coletivas, percebeu que saúde diz respeito à moradia, educação, condições de trabalho, alimentação ou mesmo ao modo como cada pessoa se diverte. “Só é possível conhecer a realidade de uma família quando entramos na casa dela. E é isso que o ACS faz. Entramos na casa das pessoas”, resume Tininha, como é conhecida. “Isso não é tão simples. Mas aos poucos as pessoas vão abrindo as portas e a gente vai percebendo suas necessidades. Não é só o fato de a pessoa estar com uma doença em si. Saúde é muito maior do que isso”.

A ACS acha gratificante o carinho que recebe dos moradores e ainda se emociona ao falar do trabalho no território. Como no dia em que, durante uma “VD” — como a visita domiciliar é conhecida entre os agentes — conseguiu convencer um morador a cuidar de um problema na perna que por pouco não se transformou em um dano irreversível. “Ele tinha uma ferida enorme em uma das varizes e dizia que não cuidaria mais porque já tinha perdido a esperança de ficar bom”, conta. “Tive dificuldades em convencê-lo mas acessamos a enfermeira e, a partir dali, eu fiquei monitorando. Em seis meses a gente conseguiu fechar aquela ferida. E ele nos agradeceu para sempre”.

“BALDE DE GELO”

Nem sempre é assim. Ano passado, Háila leu algo que a incomodou. Foi mesmo uma das piores coisas que podia ter visto sobre a profissão que abraça com afinco desde que começou a atuar na Estratégia de Saúde da Família. No Facebook, viu o comentário de uma médica: “Por que defender uma categoria que não tem nem formação?” “Aquilo foi como se jogassem um balde de gelo, que é pior que o de água fria”, diz à Radis. “Podemos não ter uma formação clássica mas temos formação de vida e experiência. Quando entramos na casa de alguém, a gente observa, conversa, dialoga. Estamos atentos ao colesterol do hipertenso; à glicose do diabético. A gente olha se o esgoto tá correndo, se a caixa d’água tá tampada”.

Podemos não ter uma formação clássica mas temos formação de vida e experiência. Haila Rangel, ACS

Fotografia: Eduardo de Oliveira.

Tininha concorda: “A gente sabe se eles bebem água filtrada ou não, porque a gente bebe água na casa deles. A gente sabe o que eles comem no dia a dia porque a gente almoça com eles, toma café com eles”. Para Ailana, esse tipo de cerceamento ao trabalho do ACS só tem uma explicação. “Nós somos as famílias, somos o ouvido do povo e a voz do povo. E nós somos o olho do SUS dentro do município. Isso talvez incomode muita gente”. Mas as três ACS ouvidas nesta reportagem consideram a formação profissional de extrema importância. Este ano, Háila, Tininha e Ailana são alunas do curso técnico de agente comunitário de saúde oferecido pela EPSJV/Fiocruz, com aulas duas vezes por semana em tempo integral, totalizando no final mais de 1.300 horas em sala de aula.

A formação ainda é o calcanhar de Aquiles da categoria. Desde 2004, está publicado o referencial curricular para o curso técnico de ACS, mas até agora não foi aprovado na Comissão Intergestores Tripartite o financiamento do Ministério da Saúde e a oferta universal dessa formação. Para a pesquisadora Márcia Valéria, esse é um direito que não deveria ser negligenciado. “Existia um mito de que, para poder ser bom mediador e representar bem a comunidade, o ACS tinha que viver vida igual aqueles que ele atende”, explica. “Era como se, ao se formar em técnico, ele perdesse a capacidade de ouvir, de escutar e de se identificar com aquele território. Mas esse argumento é no mínimo curioso. Ora, em toda profissão, quanto mais qualificado, melhor é o profissional”.

Háila, Ana Cristina e Ailana no intervalo do curso técnico de agente comunitário de saúde da EPSJV/Fiocruz: formação como um direito

Fotografia: Eduardo de Oliveira.

MOBILIZADOR SOCIAL

Márcia acrescenta que o instrumental teórico e grande eixo articulador da formação curricular do ACS é a educação popular em saúde. Na opinião da pesquisadora, enfermeiros, médicos e outros profissionais podem e devem fazer educação em saúde. “Mas quem exerce de fato a educação popular em saúde com tudo o que isso significa em termos de intervenção cultural e trabalho político é o ACS”. A pesquisadora chama atenção ainda para o fato de que, nos primeiros documentos, textos legislativos, portarias e normatizações da categoria, era possível ler referências ao papel do ACS como mobilizador social visando a garantia das políticas públicas no território e a conquista de direitos. “Isso foi se perdendo. Desapareceu inclusive dos textos de revisão das PNABs de 2006 e 2012”, lamenta. “Isso não é à toa. Trata-se de uma perspectiva de saúde que ganhou, em detrimento de outra que estava ali mais no início”.

Quem exerce de fato a educação popular em saúde é o agente comunitário de saúde. Márcia Valéria Morosini, pesquisadora e professora.

Vinte e cinco anos depois do surgimento oficial dos ACS, há 240 mil agentes distribuídos em todo o território nacional. Mudaram as comunidades e transformou-se também o perfil dos profissionais. Se no início ele é voltado para as zonas rurais e redutos de difícil acesso, agora os agentes estão no meio urbano, nas grandes metrópoles, atuando principalmente nas favelas. “Ele vai encontrar realidades distintas e deve enfrentá-las. Vai se reinventar enquanto profissão mas continua exercendo um papel fortíssimo nos territórios”, atesta Márcia, para quem o trabalho do ACS passa por mudanças assim como o do médico ou do enfermeiro, a depender do local onde esteja atuando, se no asfalto ou no morro, numa comunidade quilombola ou numa comunidade indígena. “Em uma sociedade dinâmica como a nossa, qualquer trabalho precisa se modificar”, diz. “Agora, nenhum de nós se modifica completamente. Há sempre uma base que permanece. Essa base é dada pela formação técnica”.

ACS e ACE reunidos em junho, em Brasília, durante manifestação em defesa do piso salarial das categorias

Fotografia: Marcelo Camargo / ABR.

ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS

Os Agentes Comunitários de Saúde estão no meio de uma disputa. No final de maio, eles foram a Brasília acompanhar a votação do texto final do projeto de lei 6.437/16, que regulamenta a atividade dos ACS e dos Agentes de Combate a Endemias (ACE). O projeto — que modifica a lei 11.350/2006 e dispõe sobre atribuições, formação, jornada e condições de trabalho dessas categorias — foi aprovado por unanimidade na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Mas nas galerias não havia consenso. De um lado, muitos ACS comemoravam o que consideram ser a garantia jurídica de sua permanência nas Equipes de Saúde da Família. De outro, os mais críticos faziam ressalvas às alterações que o relator fez no texto original gerando lacunas que, de acordo com esse grupo, não favorecem a profissão.

O PL — que vem sendo chamado de Lei Ruth Brilhante, em homenagem à ex-presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) e referência entre os ACS — também já passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em junho, e agora aguarda a votação nas comissões do Senado. A ideia ganhou corpo entre os ACS depois que, em maio de 2016, o Ministério da Saúde baixou duas portarias no mínimo controversas. A portaria 958/2016 modificava a equipe mínima de trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família (ESF) determinando a substituição dos ACS por auxiliares ou técnicos de enfermagem. Na mesma data, a portaria 959 fazia os ajustes financeiros necessários a essa proposta. A repercussão negativa e a intensa mobilização dos agentes levaram à revogação das portarias menos de 30 dias depois da publicação.

Mas os rumores sobre os retrocessos continuaram. A gota d´água aconteceu em outubro, quando o documento síntese do 7º Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica propunha flexibilizar a composição das equipes nos territórios e defendia a fusão entre os ACS e os ACE como parte da nova revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). De acordo com a presidente da Conacs, Ilda Angélica, o principal objetivo do PL é justamente proteger a categoria contra esse tipo de ameaça. “Nossa intenção é assegurar nossa sobrevivência enquanto profissional de saúde”, disse à Radis, por telefone. “Quando for aprovada, a lei vai oferecer segurança jurídica às duas categorias e garantir que não existirá Estratégia de Saúde da Família ou Atenção Básica sem a presença do profissional ACS”.

Apesar de existir uma legislação anterior que trata dessas profissões, Ilda considera que as atividades das categorias não ficavam explícitas, o que sempre gerou instabilidade. Por isso agora, segundo ela, fizeram questão de garantir as atribuições na letra da lei. Em relação aos ACS, ficou detalhado como atividade “privativa” a realização de visitas domiciliares rotineiras, casa a casa, para a busca ativa de pessoas com sinais ou sintomas de doenças agudas ou crônicas de agravos ou de eventos importantes para saúde pública com consequente encaminhamento pra unidade de saúde de referência.

Entre os pontos positivos do PL, os agentes comunitários de saúde destacam ainda a indenização de custos com transporte durante a realização de suas atividades e a garantia dos equipamentos de proteção individual nos serviços de saúde, além da possibilidade de inclusão do adicional de insalubridade no salário. O projeto reafirma também a contratação por vínculo direto com os órgãos ou entidades de administração direta, autárquica ou fundacional — hoje, em muitos municípios, essa relação é precária. De acordo com o texto, caberá à defensoria pública e ao Ministério Público fiscalizar esses contratos. Outra conquista assegurada pelo PL é que, na hipótese de casa própria adquirida fora da comunidade, os agentes possam permanecer vinculados à mesma equipe de saúde da família onde atuam e já construíram vínculos.

GANHOS E PERDAS

Mesmo reconhecendo os muitos destaques do PL, a pesquisadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Márcia Valéria Morosini, faz uma série de críticas às limitações do texto final. Para ela, a definição das atribuições dos ACS por si só não garante sua presença na Estratégia de Saúde da Família. Ela considera que não existe uma atividade que seja “privativa” do ACS. “Nem mesmo a visita domiciliar rotineira pode ser considerada privativa”, explica. “Por mais que a frequência seja maior entre os ACS, também deve haver uma rotina de visitas domiciliares para o enfermeiro, o médico e o técnico de enfermagem, ainda que a rotina desses profissionais esteja relacionada a outras prioridades”.

Segundo Márcia, ao definir o que é privativo do ACS, o texto do PL acaba reduzindo a atividade ao monitoramento de sinais e sintomas de doenças. “Mas o que caracteriza e diferencia essa profissão é que ela tem por princípio e centralidade a educação em saúde visando a prevenção de doenças e a melhoria da qualidade de vida”. Da forma como foi aprovado na Câmara, ela concorda que o PL pode até oferecer uma garantia jurídica. Mas pondera que, em um contexto como o que o Brasil está vivendo — de restrição da concepção de saúde ampliada, de segmentação do direito à saúde e de transformação da saúde em mercadoria —, definir o trabalho do ACS nesses termos pode ser limitador. “Entendo esse trabalhador como integrante de uma categoria que está ameaçada no seu coletivo, nos seus direitos de uma maneira geral”, diz. “É preciso fortalecer as políticas públicas. E no caso específico dos agentes, é a formação técnica que vai garantir isso”.

O “X” DA FORMAÇÃO

Segundo a pesquisadora da Fiocruz, o projeto não avança naquele que seria o “x” da questão para os ACS: a qualificação profissional. “Esse trabalhador existe no SUS desde 1991 e até hoje não é profissionalizado”, diz Márcia, acrescentando que o que profissionaliza um trabalhador é uma formação que lhe garanta habilitação profissional e que isso seria fundamental para transformar os agentes comunitários de saúde em uma categoria “mais forte e menos vulnerável às dinâmicas e conflitos de interesse”. Mas, para ela, “o PL dá um passo à frente e um passo atrás ao mesmo tempo, então, quase não sai do lugar”. Ao avaliar o texto final do projeto, Márcia comenta que o PL se refere à formação técnica mas não diz quando vai ser feita, quem deve oferecê-la e qual o prazo para ser implementada. “Ou seja, não amarra os três pilares essenciais quando se faz uma determinação no sentido de habilitar uma profissão”.

Em defesa do projeto, a presidente do Conacs diz que assegurar a realização dos cursos técnicos na letra da lei é um ganho para os ACS e, principalmente para os ACE, uma vez que os primeiros já têm um curso com grade curricular aprovada pelo Ministério da Educação — apesar de apenas uma pequena parte dos agentes em território nacional ter concluído a primeira parte do curso. Ela acredita que, com a lei, isso será resolvido. A presidente do Conacs acrescenta ainda que a elevação do nível de escolaridade desses profissionais abre a possibilidade para a correção de “uma injustiça histórica”: o reajuste do piso salarial da categoria.

Mas para Márcia há um entrave. O PL diz que os ACS e os ACE deverão frequentar cursos bienais de educação continuada e aperfeiçoamento com, no mínimo, 200 horas de duração nas modalidades presencial os semipresencial. “Isto não profissionaliza ninguém, é apenas um curso de atualização ou aperfeiçoamento”, diz, considerando esta a maior perda do PL. “A gente dispõe de uma rede de escolas técnicas do SUS, de uma rede federal de educação profissional cientifica e tecnológica e de redes estaduais técnicas públicas que poderiam oferecer uma formação adequada e gratuita a esses trabalhadores. Mas essa oportunidade infelizmente foi perdida”, lamenta.

SUTILEZAS

Há ainda outras sutilezas apontadas por Márcia Valéria. O texto original previa a presença do ACS nas equipes de saúde da família — mas no texto final a redação garante “a presença do ACS na estrutura de Atenção Básica”. Segundo a pesquisadora, essa pequena diferença dá margem para muitas interpretações. “É como se você admitisse que pode ter equipe sem ACS. Se ele estiver na estrutura da unidade básica, ele pode estar em outra equipe, mas não necessariamente em todas as equipes”.

Para Márcia, o ideal seria garantir a presença de um ACS por equipe observando o número necessário de ACS para cobertura de 100% da população cadastrada com o máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 por Equipes de Saúde da Família. “Essa é uma relação que remete à cobertura universal da AB e a documentos anteriores que regulavam o trabalho do ACS”, justifica. Já o argumento da Conacs é que essa questão não está comprometida. “A gente não especificou ‘equipe de saúde da família’ porque, em muitos municípios, os ACS continuam integrando o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e não constam como parte da equipe de saúde da família. “O texto deveria contemplar todos”, diz Ilda.

Apesar do projeto de lei ter nascido na categoria e como resultado de uma série de oficinas e audiências públicas, Márcia lamenta que muito do que foi discutido nesses espaços tenha sido excluído da redação final do projeto — inclusive os pareceres técnicos produzidos pela Fiocruz a pedido da Comissão Especial da Câmara e do próprio Ministério da Saúde. Ilda reconhece as restrições mas considera que, ainda que não seja o melhor resultado, os avanços compensam as lacunas. Para Márcia, não dá para dizer que o PL não tem pontos positivos. Mas, segundo ela, há aspectos ainda muito limitados. Ela critica o fato de a discussão do PL não ter se vinculado de forma mais orgânica ao que vem sendo proposto na revisão da PNAB em andamento. “Se a PNAB vier em um sentido mais conservador que fortaleça a perspectiva da saúde como mercadoria e não como direito, muita coisa que está no PL pode não ser efetivada”, alerta. (A.C.P.)