A primeira vítima da covid-19 no Rio de Janeiro era mulher. Tinha 63 anos. Vivia em Miguel Pereira, a 124 quilômetros da capital, onde trabalhava como empregada doméstica. Morreu em 17 de março e foi um dos primeiros casos confirmados da doença por aqui. Três meses depois, a pandemia que mata e desampara vem realçando ainda mais as desigualdades e as diferenças de gênero. No país que tem cerca de 11 milhões de famílias compostas por mães solo, com mais da metade dessas vivendo abaixo da linha da pobreza, segundo dados do IBGE, são elas, as mulheres, as que mais sofrem os impactos provocados pelo novo coronavírus. São também sinônimo de resiliência. Nas próximas páginas, três abordagens dessa pandemia sob um recorte de gênero: a jornada das mulheres que cuidam sozinhas dos filhos e da família; o aumento da violência doméstica; e o papel das políticas públicas nesse cenário.
III. Quem cuida de quem cuida?
Aos 26 anos, Anny Beatriz Antony é enfermeira e estudante de pós-graduação do Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fiocruz-Amazônia, onde integra um grupo de pesquisa sobre a situação de cerca de 860 mulheres na região que foram vítimas do zikavírus e se tornaram mães de crianças com microcefalia. “Com o isolamento social, fica mais difícil fazer o acompanhamento, mas o grupo tenta oferecer algum suporte”, contou à Radis. “A covid-19 já é um segundo surto que essas mulheres estão vivendo, uma nova doença que traz um agravante inclusive para as crianças que apresentam alterações, além da microcefalia”.
Durante a pandemia, Anny decidiu integrar voluntariamente um outro projeto voltado para o atendimento às gestantes e puérperas, o “Fale com a parteira”. Só em Recife, onde surgiu a ideia, são mais de 100 profissionais envolvidos. Em Manaus, juntamente com Anny, 10 enfermeiras obstétricas e quatro residentes revezam-se por meio de chamadas telefônicas e whatsapp, dia e noite, 24 horas por dia, de domingo a domingo, tirando dúvidas e orientando gestantes e profissionais de saúde. Nos mais de 100 atendimentos feitos até o final de maio, os relatos iam desde problemas de continuidade das consultas pré-natal até reclamações sobre as dificuldades de acesso aos exames de rotinas.
“Algumas contam que se deparam com unidades básicas de saúde (UBS) fechadas, sem orientações para onde se dirigir e sobre qual nova unidade de saúde acessar”, diz Anny. Há também queixas sobre a não realização de ultrassonografia. “As gestantes estão buscando as unidades de referência para a realização do exame, conforme o fluxograma de atendimento divulgado pela secretaria de saúde, no entanto, ao chegarem nas unidades, tomam conhecimento de que a realização do ultrassom é destinada apenas a gestantes de alto risco que estejam portando laudo ou documento comprobatório”. Para esse tipo de demanda, além de cobrar respostas dos órgãos responsáveis no estado e no município, o grupo conta com parceria do “Humaniza”, um coletivo de profissionais das áreas jurídica e psicológica, por meio do qual vem acionando o Ministério Público.
“Entendemos o momento de emergência que estamos vivenciando com a infecção de covid-19. No entanto, não é possível abrir mão do acompanhamento de pacientes que em um futuro próximo podem vir a descompensar e agravar ainda mais o cenário da saúde que, no presente momento, revela-se em colapso”, assinala Anny. Ela também relatou à Radis que tem observado a redução da oferta de planejamento reprodutivo na região. “Eles entendem que esses serviços são eletivos, o que não é verdade. A gente precisa ajudar essas mulheres a evitarem a gestação”.
O depoimento de Anny coincide com denúncias veiculadas na imprensa nacional relacionadas a dificuldades de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos durante a pandemia. Em colaboração com o portal The Intercept Brasil, repórteres das revistas Gênero e Número e AzMina produziram reportagem (20/4) em que relatam a situação do abastecimento de contraceptivos em muitos estados. Em São Paulo, foram informadas da suspensão temporária de procedimentos considerados urgentes. No Rio de Janeiro, capital do segundo estado mais afetado pelo coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou ter cancelado as laqueaduras e vasectomias. Isso contraria orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda que o direito à contracepção deve ser respeitado “independentemente da epidemia da covid-19, e do próprio Ministério da Saúde, que desde 8 de abril, considera todas as grávidas e mulheres no puerpério como um grupo de risco para a covid-19.
Elaines, Déboras, Alessandras
É função do Estado promover saúde pública, mas nesse contexto de pandemia, como o Estado brasileiro vem olhando para nossas mulheres? Pensando sob um recorte de gênero, o que precisa ser incorporado pelas políticas públicas de saúde a partir desse momento? As perguntas foram direcionadas à Elaine Nascimento, pesquisadora da Fiocruz-Piauí. Ela chama atenção para o fato de que, na atenção primária, as unidades básicas de saúde são frequentadas majoritariamente por mulheres e crianças, que acessam os serviços por uma perspectiva preventiva. “Se não tem nenhum tipo de investimento, você está atingindo diretamente esse segmento populacional”.
Mulher negra, assistente social e professora, Elaine participou da fundação do comitê Gênero e Raça dentro da Fiocruz. Nesse período, reconhecendo que está na posição privilegiada de exercer trabalho remoto, ela tem participado de inúmeros debates online, incontáveis entrevistas, em que faz a defesa de que é preciso incorporar um recorte de gênero às políticas públicas de saúde no Brasil. Mas, para isso, aponta que, antes de mais nada, é necessário um olhar plural. “Não existe a mulher brasileira. Existem as mulheres brasileiras. Nós, mulheres, representando o espectro mais diversificado inter-étnico-cultural, precisamos estar na construção das formulações e da implementação das políticas públicas”. Ao refletir sobre as estruturas desiguais de raça e de gênero, ela explica por que a pandemia de covid-19 causa impactos e desamparos diferentes. “As mulheres, de um modo geral, sofrerão violência pelo fato de serem mulheres, e as mulheres negras sofrerão ainda muito mais violência”.
Na entrevista que concedeu à Radis, Elaine disse que a pandemia, esse evento mundial sem precedentes, vai expor ainda mais as vulnerabilidades. “Esse estilo de vida humano que não respeita a natureza gera impactos ambientais sérios e produz agravos à saúde humana e ecológica de forma geral”. Para ela, talvez seja uma oportunidade para valorizar estratégias de sobrevivência baseadas em outros valores, como tem percebido nas articulações em rede e nos coletivos. “Sem solidariedade, sem cuidado, sem respeito, sem equidade nas relações, a gente dificilmente vai sair dessa pandemia com saldos positivos num cenário tão negativo”.
É também o que vem defendendo Débora Diniz, a antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) que em 2019 precisou deixar o país depois de sofrer ameaças por defender a descriminalização do aborto em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista à Folha de S. Paulo (6/4), ao responder se a pandemia atinge homens e mulheres de forma diferente, ela disse: “Quando o Estado não protege e nos abandona, é aí que a pandemia tem gênero, porque o cuidado cabe às mulheres”. Durante “live” promovida pela Anistia Internacional da qual Radis participou, em 20 de março, ela foi enfática: “Se há alguma esperança, alguma possibilidade de construção de mundo mais justo pós-pandemia, isso passa necessariamente pela circulação de valores feministas”.
Como Débora Diniz, outras mulheres vêm fazendo um convite para o reconhecimento do cuidado como algo fundamental para a proteção social. Em entrevista à Radis, que você pode conferir na página 32, a psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alessandra Xavier, defende que este momento da pandemia pode ser usado para descobrir recursos de como lidar com as dores, por meio da proteção dos vínculos e da solidariedade. “As conexões emocionais e a empatia precisam ser fortalecidas”. Trazer essa pauta à tona e fazer circular essas perguntas pode ser um começo — impreciso ainda, mas um começo.