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Manhãzinha no Recife. Antes das 6 horas, ele já está no local de trabalho. Gosta de chegar cedo, por disciplina. Em fileiras, organiza as mesinhas e alinha as cadeiras por tenda – cada tenda, uma quantidade certa de vacinas para o dia –, passa álcool em tudo, empilha máscaras e capotes para o uso dos profissionais médicos e enfermeiros. Segue para uma segunda etapa: a triagem. Imprime as cartelas com a numeração por ordem de chegada – por precaução, de um a mil. Verifica os documento: RG, ok! comprovante de residência, ok! Distribui as senhas. Aguarda para chamá-los continuamente. “Se for comorbidade, é tenda específica. Se for gestante, o procedimento é diferente”. Um lhe convoca daqui, outro dacolá. “Cristiano, estamos precisando de sua força!” Corre para o tablet, confere agendamentos: “Carteira de identidade, por favor!”

“Meu nome é Cristiano Bezerra da Silva, tenho 45 anos, trabalho num drive thru da vacinação contra a covid, [no bairro da] Macaxeira, aqui em Recife. E, para mim, é uma honra falar com você e contar um pouco da minha história”. É assim que ele orgulhosamente se apresenta, na entrevista por telefone, em julho, que teve de ser adiada porque, no horário marcado, ele precisou participar de uma reunião extra. Servidor municipal, até o ano passado trabalhava no almoxarifado central da prefeitura, quando foi convocado para a linha de frente do combate à pandemia. Conhecido por ser uma pessoa “desenrolada” e pela agilidade e organização, passaria a ajudar na montagem dos hospitais provisórios – estruturas de campanha robustas com UTIs e enfermarias – que receberam pacientes com o novo coronavírus. Cristiano quis recusar, balançou a cabeça como pôde, fincou pé. “Não quero! Não posso!”, arriscou. “Me tire disso aí, eu tenho minha mãe. Eu vou levar doença pra minha casa. Tenho sobrinho, tenho sobrinha. Não quero, não quero, não quero!”.

Cristiano, de camisa azul, à direita, em pausa para o lanche com a sua equipe. — Foto: acervo pessoal.
Cristiano, de camisa azul, à direita, em pausa para o lanche com a sua equipe. — Foto: acervo pessoal.

Mas foi. Achou que seria importante contribuir com as equipes que estavam dando o melhor de si para salvar vidas – e a equipe costuma agradecer a dedicação de Cristiano. “No começo, no hospital, foi muito difícil”, lembra. “Ver o pessoal chegando ali na maca, tudo sem ar, os médicos em cima deles, um traz oxigênio, outro corre pra lá. Eu entrava cedinho, mas tinha dias que saía do hospital 10 horas da noite porque a gente não podia deixar um paciente sozinho, precisava esperar a ambulância. Era um corre-corre”. Cristiano aprendeu na prática. Não dava tempo de ser de outra maneira. Mas teve todo o acolhimento necessário, garante ele, que passou a paramentar-se com os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e a cumprir um ritual diário exaustivo, ainda que necessário: “Tem um canto com os tambores para a gente se desparamentar. A gente passava álcool, tomava banho, já voltava para casa limpo. Quando chegava, colocava a roupa usada num saquinho para ser lavada separadamente. Com todo o cuidado”.

Ele nunca imaginou viver nada parecido. “Pandemia? Já tinha ouvido falar, assim, da epidemia de cólera, do ebola, mas esse vírus é diferente de tudo”, observa. “Minha mãe sempre diz que esse é o fim do mundo. Parece o fim do mundo mesmo!” Depois de um ano no hospital de campanha, ele voltou para sua função no almoxarifado. Mas veio a segunda onda da covid-19, as novas variantes, os números de casos sempre alarmantes, e mais uma vez lhe chamaram para a linha de frente. Agora, a vacina havia chegado e Cristiano passou a trabalhar no apoio à vacinação. “Ainda bem que temos a vacina. Mas já presenciei as mais absurdas mentiras. E o pior é que tem gente com a cabeça dura que ainda hoje não quer se vacinar, acreditando em fake news”, espanta-se ele que teve um exemplo assim, dentro de casa.

Dona Maria, mãe de Cristiano: registro da segunda dose. — Foto: acervo pessoal.
Dona Maria, mãe de Cristiano: registro da segunda dose. — Foto: acervo pessoal.

Cristiano usou todos os argumentos da ciência para convencer sua mãe, dona Maria Carneiro Bezerra, de 74 anos, a ir ao posto de vacinação. “Tem que tomar. Chegou a sua idade, não escolha vacina. É ela que vai salvar a sua vida”. Infelizmente, a vacina não chegou a tempo de proteger o irmão de Cristiano, que faleceu em abril, vítima de covid. Tinha 36 anos. “Ele saiu para trabalhar como fazia todos os dias e não voltou mais. Quando a gente recebeu a ligação do hospital, ele já estava internado. Foi de surpresa e ainda estamos todos chocados”.

Mas chegou para o braço de dona Maria – depois da entrevista, fez questão de enviar a foto registrada por ele no momento da segunda dose da mãe. “No dia que chegou a vez dela, eu estava de folga no trabalho. Então, pude levá-la. Foi muito emocionante”. Ele também se emociona com cada pessoa imunizada no drive thru da Macaxeira e agradece por ter sido destacado para essa função. “Vou para o meu trabalho todos os dias com a maior satisfação. Se perguntarem minha profissão, pode dizer: ajudar o próximo”, conclui Cristiano, trabalhador da saúde, com muita honra!

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