O dia amanhece em Araguari, cidade do Triângulo Mineiro com aproximadamente 117 mil habitantes, distante cerca de 570 quilômetros de Belo Horizonte. Fabrício Flávio da Silva, 37 anos, prepara-se para mais um dia de trabalho no Cemitério Municipal Bom Jesus. Tem sido assim desde 20 de janeiro de 2020, quando passou no processo seletivo da prefeitura para a função de sepultador — ou coveiro. De sua residência ao trabalho, ele vai de bicicleta por aproximadamente 1 km, inicia seu expediente às 7h da manhã e permanece até as 13h, em regime de escala.
Fabrício não consegue disfarçar a voz trêmula de emoção quando concede entrevista à Radis, numa tarde de quarta-feira, e revela detalhes de sua rotina de trabalho durante o período de pandemia. “Vai fazer sete meses que eu estou nessa profissão. Meu psicológico fica abalado quando eu faço sepultamento de criança ou de natimortos, os bebês que nasceram mortos. Eu fico muito triste, mexe comigo, ainda mais agora, com a covid-19, que não tem velório”.
Segundo ele, desde que começou a pandemia, os corpos chegam ao cemitério trazidos pelo agente funerário, são colocados em macas e depois transferidos para um caixão. Em nenhum momento as famílias podem acompanhar o processo, feito a portas fechadas, nem mesmo fazer cortejo fúnebre. “Alguns familiares ficam exaltados e xingam a gente”, conta, lamentando que algumas pessoas não entendam que os coveiros estão apenas seguindo o protocolo oficial. “É muito triste a família não entrar e não fazer a despedida do ente querido. É um momento difícil”, ele reconhece, lembrando que em muitos casos os parentes não tiveram como se despedir e nem mesmo acompanhar o doente no hospital.
Fabrício se ressente, por outro lado, que não haja cuidado com a saúde de profissionais que realizam seu trabalho, também expostos ao ambiente de dor e de luto: “Ninguém lembra da gente, da nossa profissão. Não vem um psicólogo conversar com a gente para saber como a gente está”, reclama. Ele relata que, ao chegar ao trabalho, todos os coveiros do turno se reúnem para tomar café. Logo em seguida, ligam para as quatro funerárias que atendem a região — uma delas está localizada na esquina do cemitério, as outras mais longe — para saber quantos óbitos têm naquele dia e se há algum caso confirmado do novo coronavírus. No caso de algum resultado ser positivo, iniciam-se os preparativos para os protocolos de biossegurança. Após a funerária liberar os corpos, os parentes vão ao cemitério marcar o sepultamento. Segundo Fabrício, não há diferença entre as sepulturas destinadas aos mortos por covid-19 e aquelas decorrentes de outras causas. O que muda é que, caso se confirme a morte em virtude do novo coronavírus, há algumas recomendações para preparação do corpo.
Fabrício conta que, em Araguari, os coveiros recebem equipamento de proteção fornecido pelo município. Trata-se de um macacão, dois pares de luvas cirúrgicas, um par de óculos, um capuz e uma máscara de respiração de trocar filtro. A roupa é incinerada após o uso, mas nenhum dos coveiros recebeu nenhum treinamento específico para usar o uniforme de proteção de maneira adequada. Ele conta que veste a roupa seguindo o que ele aprendeu assistindo à televisão.“Tem horas que eu até penso que já peguei a covid-19. Ao nosso ver, deveria, fazer testes quinzenalmente em quem está na linha de frente”, pontua. Segundo ele, também não existe banheiro para banho após os sepultamentos. Entre os companheiros do turno de Fabrício, um já foi afastado das atividades de trabalho: ele e a esposa testaram positivo. Atualmente, ambos estão recuperados.
Após o início da pandemia, o coveiro percebeu que houve um aumento no número de sepultamentos. Ele conta pelo menos 50 casos confirmados, dos quais ele sepultou cerca de 15. Fabrício ressalta que as mortes em virtude de acidentes de trânsito haviam praticamente sumido durante a quarentena, mas após o início da flexibilização na cidade, inclusive para bares que comercializam bebidas alcoólicas, os acidentes voltaram a ocorrer. O boletim epidemiológico de Araguari mostra que, em um mês, os casos positivos mais que dobraram. Em 12 de julho, o número total era de 890, de acordo com o portal da Prefeitura. Até às 15h do dia 12 de agosto de 2020, o município registrou a soma de 1.795 casos confirmados. Em julho, as mortes eram 16; já em agosto haviam subido para 50, ou seja, o número mais que triplicou.
Em seu trabalho, Fabrício explica que é impossível não se envolver. Sempre que uma pessoa não tem condições financeiras para pagar a taxa de sepultamento, por exemplo, ele orienta a família a procurar a assistência social. “Durante o sepultamento fico apreensivo, se alguém passar mal eu ajudo para não desmaiar. Eu volto para casa com toda essa carga, por isso coveiros ou sepultadores deveriam ter psicólogos pelo menos de 15 em 15 dias para por essa carga para fora”.
Fabrício é pai de três filhos, que sempre passam o fim de semana com ele: Júlia, 14 anos; Gustavo, 8; e Pietro com 5. Sua companheira é psicóloga. Ele conta que ela o ajuda muito, principalmente depois de um dia de expediente. “Quando chego em casa após o trabalho, eu passo por fora da casa, deixo minha roupa lá e corro direto para o banheiro para tomar um banho quente”, conta.
Para se manter emocionalmente firme, Fabrício tem sua estratégia. Ele é idealizador de um projeto de inclusão social que, desde 2009, ensina capoeira para crianças carentes na sua cidade. Antes de ser coveiro, ele trabalhava com montagem de pré-moldados. O projeto reúne mais de 40 alunos que pagam apenas pelo uniforme e utilizam o espaço cedido por uma academia. Porém, mesmo com o apoio dos pais dos alunos, as dificuldades financeiras impossibilitam que o projeto seja registrado como associação. Ele declara que a atividade o ajuda emocionalmente. “Acho que meu psicológico não abala muito no serviço porque sempre reponho as minhas energias lá no projeto”.
■ Estágio supervisionado.