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A sanção de uma lei instituindo piso salarial nacional para a Enfermagem, em 4 de agosto, parecia representar um novo patamar de dignidade para 2,7 milhões de profissionais da categoria. A lei 14.434/22 tinha efeitos imediatos: salário mínimo inicial de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras. Mas uma ação da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), levou à suspensão da medida. Em 4 de setembro, o ministro Luís Roberto Barroso deu 60 dias para o Legislativo apontar fontes de custeio, o que não aconteceu até o fechamento desta edição. O que deveria ser um momento de celebração se transformou em ameaça de demissão em massa, em um imbróglio que revela quão (des)valorizada é a maior força de trabalho da saúde no Brasil.

Abaixo do mínimo

“A política de remuneração dos profissionais de Enfermagem no Brasil está em um patamar muito aquém do ideal, dado o protagonismo que a categoria exerce no andamento dos bons serviços de saúde e as competências que possui”, avalia a presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Betânia Santos.

A pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, realizada em 2016 pelo Cofen em parceria com a Fiocruz, identificou que a maior parte da categoria tinha renda mensal de até R$ 3 mil (62,5% das equipes do setor público, 68,2% do setor privado e 70,1% do setor filantrópico). Mas 2.344 profissionais chegavam a receber menos de R$ 680, e outros 7.971 recebiam entre R$ 680 e R$ 1 mil. Salários iguais ou inferiores a R$ 1 mil foram detectados em todos os setores — eram 1,9% no público, 1,7% no filantrópico, 4,6% no privado e 15,2% no ensino. “Estes valores revelam que uma parcela de enfermeiros, técnicos e auxiliares brasileiros se encontram em clara situação de subemprego”, conclui Betânia.

O enfermeiro Dayvison Amaral não tem dúvidas ao afirmar que nunca se sentiu valorizado ao ver os números impressos no seu contracheque. “Ao contrário, sempre me senti péssimo”, conta à reportagem. Ser profissional da Enfermagem um dia foi sonho. Mas a alegria pela realização se perdeu ao longo de anos de uma rotina exaustiva com pouco reconhecimento. 

“Desejei muito na minha época de vestibular ter um trabalho que estivesse ligado à saúde, gostava do cuidado, do contato com a vida humana”, lembra. Filho de mãe solo cabeleireira, precisou de esforço redobrado para terminar sua graduação na cidade de Arcoverde, no interior de Pernambuco. Assim que se formou, em 2013, pegou seu diploma, botou debaixo do braço e foi atrás de um emprego. Logo estava atuando no bloco cirúrgico de uma escola de Oftalmologia.

“Minhas amigas de profissão dizem que sou um enfermeiro muito coringa, porque trabalhei em Centro de Atenção Psicossocial, hospital de campanha, hospital público regional de grande porte, sala de vacinação e com sistema de informação da saúde indígena”, lista. Logo cedo aprendeu que, para melhorar sua renda, teria que acumular vínculos. “A norma na Enfermagem é ter mais de um vínculo para receber um valor mais justo ao final do mês”, observa Dayvison. “Não é trabalhar dobrado, é trabalhar triplicado, de manhã, de tarde e de noite”.

A rotina de sair de um plantão de 24 horas, passar em casa apenas para tomar banho e ir direto para outro emprego sem descansar acabou tendo um custo pessoal que Dayvison não pôde continuar a arcar. “Desenvolvi questões de saúde mental e física decorrentes de anos de desvalorização da minha profissão, que me levava a pegar um plantão atrás do outro, não fazer exercício, não me alimentar bem, não dormir bem”, relata ele, que mesmo com excesso de trabalho continuou buscando se qualificar — cursou especialização em Saúde Pública e mestrado em Educação Profissional.

A atuação na linha de frente de combate à covid aumentou ainda mais essa carga, e então foi impossível não parar. “Estava exausto e optei por pedir demissão para cuidar de mim, mas muitos colegas não podem fazer o mesmo”, ressalta Dayvison, que destaca que a Enfermagem é cuidado mas também é técnica. “É muito triste que uma categoria receba um valor medíocre para fazer um trabalho tão importante, gigante, que tem impacto sobre a vida e a morte”. 

Betânia também lamenta que enfermeiros, técnicos e auxiliares ainda hoje trabalhem em múltiplas jornadas, mal remunerados e sofrendo com a sobrecarga e o esgotamento físico e mental.

20 anos de luta

O Piso da Enfermagem é uma luta encampada pela categoria há mais de 20 anos. Ao longo de todo esse tempo, diversos projetos foram propostos no Congresso Nacional: PL 459/2015, 2982/2019, 1876/2019, 1268/2019, 10553/2018, 9961/2018, 1823/2015, 1477/2015, 729/2015, 597/2015 e 2297/2020. Nenhum chegou a ser votado. “Esse histórico de mais de duas décadas de mobilizações e articulações mostra a persistência da Enfermagem”, diz a presidente do Cofen à Radis.

O Projeto de Lei (PL) 2.564/2020, apresentado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES) em 12 de maio de 2020, escapou desse destino e foi aprovado na Câmara e no Senado com ampla maioria — oposição somente do partido Novo. O Congresso aprovou também a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 11/22, de autoria da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), para permitir a criação do piso via lei federal. Promulgada em 14 de julho, a PEC buscava evitar questionamentos na Justiça sob o argumento de “vício de iniciativa”, ou seja, de que qualquer aumento da remuneração de servidores públicos só poderia ser proposto pelo Executivo. 

Linha de frente

Para Betânia, pesou para o voto dos congressistas o papel fundamental da categoria na pandemia de covid-19: “Pela primeira vez, por meio da mídia, estávamos todos os dias na casa de milhões de famílias brasileiras. A sociedade passou a acompanhar mais de perto a nossa árdua rotina, entendendo que era imprescindível valorizar a Enfermagem”. Ela lembra que, nesse período, foram esses trabalhadores que cuidaram de 34 milhões de pacientes infectados pela covid-19, aplicaram 519 milhões de doses de vacinas contra a doença e deram conforto para 680 mil vítimas e seus familiares.

Segundo pesquisa encomendada ao Lagom Data pela Internacional de Serviços Públicos (PSI), federação que representa mais de 700 sindicatos em 154 países, dos cerca de 4.500 trabalhadores da saúde que morreram em decorrência da covid no Brasil nos primeiros dois anos de pandemia, 70% eram auxiliares e técnicos de enfermagem, 25%, enfermeiros, e 5%, médicos.

A presidente do Cofen ressalta que “a Enfermagem está na linha de frente trabalhando para cuidar das pessoas, tratar doenças, reduzir mortes e promover a saúde” desde Anna Nery, considerada pioneira da Enfermagem no Brasil. Em 1865, aos 29 anos, ela se voluntariou a cuidar de feridos durante a Guerra do Paraguai (1864 a 1870). “Digne-se Vossa Excelência de acolher benigno este meu espontâneo oferecimento, ditado tão somente pela voz do coração”, escreveu em carta ao então presidente da província da Bahia, Manuel Pinto de Sousa Dantas.

Historicamente, observa a presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Shirley Díaz Morales, as pessoas associam a Enfermagem a uma atividade exercida por sacerdócio, com alguém que trabalha por amor, e não por salários. Mas a também conselheira nacional de saúde aponta ser preciso entender que mesmo “atividades que demandam amorosidade” são realizadas por “profissionais que vendem sua prestação de serviço”.

“Somos a força motriz do SUS e estamos ao lado da sociedade prestando assistência nos locais mais longínquos do Brasil e em todos os momentos, desde o nascimento até a morte. Somos cuidado e ciência trabalhando a serviço da vida. Nosso valor é inestimável, pois sem Enfermagem não há saúde. Agradecemos as palmas e as homenagens, mas precisamos urgentemente que todo o protagonismo da categoria seja traduzido em valorização real”, acrescenta Betânia.

O outro lado

A sanção do piso veio em 4 de agosto, último dia do prazo. Na assinatura de Jair Bolsonaro (PL), houve veto ao dispositivo que estabelecia reajuste anual automático dos salários pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), o que garantiria aumento real do poder de compra.

Quatro dias após a sanção, a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), entidade que reúne 90 sindicatos que representam hospitais, clínicas e empresas privadas do setor, ingressou no STF com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.222/22 para suspender a Lei 14.434/22. O texto pintou um cenário devastador, com “efeitos práticos adversos” como precarização dos serviços de saúde (diminuição do quadro pessoal e “juniorização” dos atendimentos), fechamento de hospitais (sobretudo os sem fins lucrativos e aqueles localizados em regiões menos favorecidas do país), diminuição do número de leitos à disposição da população, comprometimento da universalização da saúde no Brasil e até descontinuação de tratamentos essenciais (exemplo das diálises).

A confederação afirmou que as disparidades salariais nas carreiras da saúde são uma “suposição” e argumentou que o PL foi aprovado em tempo exíguo, sem amplitude de amadurecimento legislativo e com “simulacro” de análise de impacto. A autora da ação calculou a possibilidade de demissão de 80 mil profissionais da Enfermagem e fechamento de 20 mil leitos.

O impacto orçamentário do piso foi considerado no processo de tramitação, conforme demonstra relatório do grupo de trabalho especial que analisou a matéria na Câmara. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o impacto adicional para todos os setores (público, privado e instituições filantrópicas) seria de R$ 958,3 milhões mensais ou R$ 15,8 bilhões anuais. “Em linhas gerais, ficou demonstrado que o investimento anual para erradicar os salários miseráveis da categoria representa somente 2,7% do PIB da Saúde, 4% do orçamento do SUS, 2% de acréscimo na massa salarial dos contratantes e 4,8% do faturamento dos planos de saúde em 2020”, indica Betânia.

“Os argumentos da CNSaúde não têm amparo e já foram extensamente refutados”, comenta Shirley. Ela afirma ser enganosa a tese de que o Piso da Enfermagem vai levar ao fechamento de leitos e considera maldosa a ameaça de uma onda de demissões, argumentando que o mercado da saúde já contrata o número mínimo de profissionais e não pode prescindir de nenhum de seus quadros. “A verdade é que nenhum hospital será fechado por este motivo. Muito pelo contrário. Com remuneração digna, o ambiente da saúde ficará mais saudável, terá justiça social e dará reconhecimento àqueles que fazem o sistema verdadeiramente funcionar”, avalia.

Betânia acrescenta ao debate os “lucros estratosféricos” de donos de hospitais e planos de saúde: “Entre os 315 bilionários brasileiros, nove atuam no ramo e oito ficaram multibilionários em plena crise de saúde pública, segundo levantamento da revista Forbes”. Diante desses números, diz ela, não é justo que técnicos de enfermagem recebam R$ 900 por 176 horas de trabalho mensal e que enfermeiros — profissionais de nível superior e que exercem funções de responsabilidade extrema — recebam R$ 1.200. 

“Ao contrário daqueles que ganham com a exploração da força de trabalho da Enfermagem, a sociedade é majoritariamente favorável à nossa valorização, pois entende que é justo e necessário erradicar os salários miseráveis que são pagos a quem exerce a ciência do cuidado”, diz.

Fontes de financiamento

A decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso que sustou os efeitos da Lei 4.434/22, em 4 de setembro, foi aprovada pelo plenário do STF em 16 de setembro, por 7 votos a 4. Os ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Luiz Fux votaram com Barroso, pela suspensão da aplicação do piso por 60 dias; André Mendonça, Nunes Marques, Edson Fachin e Rosa Weber divergiram.

Desde então, o Congresso corre para indicar possíveis fontes de custeio para a medida. Até o fechamento desta edição, faltando 20 dias para o recesso legislativo, ainda não havia definição, o que empurrava a implementação do piso para 2023.

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 44/2022, que autoriza estados e municípios a utilizarem recursos ociosos dos fundos para o combate à pandemia de covid-19 e represados nos fundos regionais de saúde e de assistência social, foi aprovado no Senado, em 4 de outubro, e na Câmara, em 1º de novembro. A tramitação segue em regime de urgência.

O PLP 07/2022, que remaneja R$ 2 bilhões dos fundos de saúde e de assistência social de estados, Distrito Federal e municípios para entidades privadas filantrópicas sem fins lucrativos conveniadas ao SUS, as Santas Casas, para pagar o piso no exercício de 2023 foi aprovado na Câmara, em 11 de outubro, e seguiu para o Senado. Estão em discussão também: desoneração da folha de pagamentos do setor, aumento dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e destinação de royalties do petróleo e de impostos de jogos de apostas.

Outras demandas

Além da implementação do piso, as representantes da categoria afirmam que há diversas demandas históricas pendentes de aprovação. Um exemplo é o PL 2295/2000, que trata da regulamentação da jornada de trabalho de 30 horas semanais, aprovado no Senado e que aguarda há anos votação na Câmara dos Deputados. Outros projetos são descanso digno, a aposentadoria especial, o adequado dimensionamento e a formação continuada dos profissionais.

“As condições de vida e trabalho da Enfermagem brasileira serão melhoradas quando tivermos nossas demandas aprovadas e regulamentadas em leis. A dignidade profissional da Enfermagem está diretamente atrelada a uma carga horária justa, ao direito ao descanso digno e ao correto dimensionamento das equipes nas instituições de saúde”, conclui Betânia.

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