Entre 17 a 21 de março de 1986 foi realizada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, considerada um marco histórico para a democracia participativa e para a criação do SUS. De 4 a 7 de agosto de 2019, será realizada a 16ª Conferência Nacional de Saúde (8ª+8), em Brasília, e para lá vão convergir os olhares de quem pensa a saúde como direito amplo, universal e gratuito. Mas, decorridos 33 anos, o que mudou no cenário da saúde? Quais foram as conquistas obtidas a partir da 8ª e quais são os desafios que devem ser vencidos pela 16ª?
Para José Temporão, médico sanitarista, os dois momentos podem ser aproximados já a partir do tema. “A agenda da democracia e saúde norteia essas conferências”, disse, em aula aberta realizada em 21 de maio de 2019, no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). A aula contou com a participação de Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de Lucia Souto, vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).
Temporão lembrou que foi delegado na 8ª, relator-geral da 10ª (1996) e presidiu a 13ª (2007) como ministro da Saúde. Segundo ele, enquanto a 8ª CNS lutava pela reconquista da democracia e pela construção do SUS, agora a luta será contra os ataques à democracia e à destruição do SUS. O pesquisador apontou, por outro lado, que a 16ª pode se distanciar da 8ª ao adotar posições de não enfrentamento. “Será que aqui também seremos surpreendidos?”, perguntou, lembrando que o relatório final da 8ª assumiu a defesa radical da democracia e da Reforma Sanitária. Temporão disse esperar também que a conferência deste ano evite o distanciamento entre gestores, conferências e conselhos de saúde, e pediu uma reflexão sobre a ausência da participação do setor privado, tanto o filantrópico contratado pelo SUS quanto o de planos e seguros, nas conferências de saúde.
8ª Conferência Nacional de Saúde (1986)
Fotografias: Acervo Radis / Ensp
Documento despolitizado
Lígia Bahia observou que percebe despolitização no documento orientador da 16ª. “O tom é diferente do adotado na 8ª. Não há possibilidade de saúde sem democracia no quadro em que estamos enfrentando”, advertiu. A professora notou que ficaram de fora do documento temas como a destinação dos recursos do pré-sal para a saúde, saneamento, farmácia popular, renúncia fiscal e aborto. “Como sair da armadilha de fazermos mais uma conferência sem médicos, sem pesquisadores, sem setor privado e sem polêmicas sobre aborto?”, perguntou. Para ela, o documento não responde também sobre o que está acontecendo com a saúde. “Ele menciona o hiperajuste fiscal e o ataque aos direitos ao sistema de proteção social, mas omite os critérios de escolha de dirigentes do Ministério da Saúde, a destinação de recursos ou subsídios públicos para o setor privado até o ‘estatuto do armamento’”, exemplificou.
A pesquisadora salientou ainda que a conferência se volta em parte para os alicerces estruturantes do sistema de saúde. “O documento cita a reforma da Previdência, seguridade social e saúde, subfinanciamento crônico, privatização, mas nada expõe sobre reforma trabalhista, meio ambiente, complexo econômico industrial da saúde e expansão de grupos econômicos setoriais nacionais e internacionais”, disse. Apesar das lacunas, ela disse ter “a certeza teórica e prática” de que é melhor para a participação social ter conferências e conselhos. “Há uma decisão política na omissão de temas polêmicos. Acho incorreta. Penso que nesse momento a 16ª e o CNS deveriam ser vistos como polos de articulação de debate e mobilização”, salientou.
Para Lúcia Souto, do Cebes , a conferência não é só um momento, mas um processo. “Estamos diante de um momento crucial que pede que a gente se junte ou seremos literalmente esmagados”, alertou. Segundo ela, a 16ª deve se voltar para a 8ª para recuperar o direito à saúde e à cidadania. “É preciso ter esperança porque ela se constrói no dia a dia”, pregou. Já Rodrigo Murtinho, diretor do Icict/Fiocruz, salientou que o debate sobre saúde e democracia precisa ser retomado com força, especialmente no atual contexto enfrentado pelo Brasil. Mediador do debate, o sanitarista José Noronha salientou que a 16ª deve revisitar os fundamentos da constituição do SUS estabelecidos na 8ª CNS neste momento, que considera desafiador. “A 8ª desenvolveu teses que fermentavam no campo da orientação política e resultou em um documento histórico, redigido em 1978 e chamado Saúde é Democracia”, rememorou, indicando que o documento subsidiou as discussões sobre o setor na futura Constituinte, em 1988.
Linha do tempo: Conferências Nacionais de Saúde