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A escola é um dos primeiros ambientes de socialização de uma criança. É lá que ela compartilha os saberes e aprende a conviver com as diferenças — entre elas, a deficiência. Por este motivo foi grande a articulação de ativistas, especialistas e organizações contra o decreto nº 10.502, lançado em setembro (30) pelo governo federal, que instituía a nova Política Nacional de Educação Especial. Na visão de especialistas e militantes pelos direitos das pessoas com deficiência, a medida colocava em xeque a inclusão de estudantes com deficiência e prejudicava o convívio com a diferença nas escolas. O decreto, no entanto, teve vida curta: em julgamento no plenário virtual, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, por nove votos a dois, a decisão liminar do ministro Dias Toffoli que, em 1º de dezembro, suspendera a medida.

Sob a justificativa de que “ambientes especializados” são mais inclusivos para “pessoas especiais”, a proposta abria brechas para a segregação de pessoas com deficiência e, portanto, feria a Constituição, como já havia alertado a nota publicada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 6/10, com o apoio de organizações como o Movimento Down. “Na Educação Inclusiva não se deseja ou espera a separação entre sujeitos ou grupos, ao contrário, compreende-se que todas as pessoas têm a possibilidade de acessar e participar de um modelo de educação em comum, verdadeiramente emancipatório e igualitário”, afirmava a nota, que considerava o decreto um “retrocesso” por retomar perspectivas de segregação das pessoas com deficiência “há décadas superadas nos estudos sobre educação e na legislação internacional”.

A política pretendia implantar programas e ações “com vistas à garantia dos direitos à educação e ao atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. De adesão voluntária por parte de estados e municípios, o decreto previa que fosse oferecido atendimento educacional especializado em classes e escolas regulares inclusivas, bem como em classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos a todos que demandassem esse tipo de serviço. Além disso, propunha priorizar a participação do educando e de sua família no processo de decisão sobre serviços e recursos do atendimento educacional especializado. A questão é que o termo “especializado” escondia a proposta de criar salas de aula específicas para pessoas com deficiência, como crianças com síndrome de Down e autismo, onde elas não teriam um aprendizado partilhado e a convivência com os demais estudantes — o que contraria a luta histórica dessas pessoas e de seus familiares por inclusão.

Ao longo das últimas décadas, o Brasil construiu alguns marcos para a educação inclusiva. O primeiro deles é a própria Constituição Federal de 1988, que afirma que a educação é um direito social de todas as pessoas e que não deve haver qualquer tipo de discriminação. Já em 2008, foi lançada a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Também a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015 (Lei 13.146), afirma que o poder público deve garantir e promover um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida — e também propõe a eliminação de obstáculos ao acesso e à permanência de pessoas com deficiência na escola, com garantia de inclusão e acessibilidade.

Para Martha Moreira, integrante do Comitê pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência da Fiocruz, o decreto 10.502 representaria um retrocesso ao ignorar as convenções internacionais das quais o Brasil participa. “O que os estudos e as pesquisas têm apontado, e não é à toa que a gente tem uma convenção internacional que ratifica isso desde 2006, é que a inclusão faz bem. A interação com a diferença é transformadora da sociedade”, explica. De acordo com ela, ao retomar uma prática que segrega, a proposta desconsiderava a possibilidade de que as pessoas interajam com as diferenças, com o corpo considerado diferente e com as diversidades que comportam a deficiência na sociedade.

Na visão de Martha, quando o decreto assinalava que era preciso “voltar a ter espaços especiais para pessoas especiais”, perdia-se de vista que a pessoa com deficiência tem direitos. Ela também aponta que essa definição de deficiência abarca a ideia de “um corpo que é impedido pelas barreiras da sociedade”. “A mudança desconsidera conquistas importantes, tanto em termos das pesquisas quanto da perspectiva política e da sociedade”, avaliou, ainda antes de o decreto ser suspenso no STF.

No mesmo período, Sônia Gertner, outra integrante do Comitê, destacou que, nesse retrocesso, andava-se muito para trás, considerando-se a história de como eram tratadas as pessoas com deficiência ao longo dos séculos. Ela relembrou períodos de total segregação da sociedade, em que essas pessoas eram totalmente separadas e consideradas incapazes de qualquer atividade social de convivência, trabalho e estudo — e, assim, colocadas em instituições só para a sua contenção, com restrição de liberdade e autonomia. Depois, em dado momento, a proposta passou a ser um tipo de integração em que essas pessoas pudessem ser “ajustadas” ou “consertadas” para voltarem em alguma medida para a sociedade.

Sônia ressaltou que, depois de todo esse histórico, o Brasil teve um avanço com a Constituição de 1988 e a adoção de parâmetros e acordos internacionais sobre inclusão. “Nesse momento, a gente é ‘bombardeado’ com esse decreto que traz um retrocesso de anos ou séculos, dizendo que as pessoas com deficiência não vão poder ficar na escola pública. Se a escola considerar que a deficiência é grave, ‘aqui não pode ficar’”, afirmou, em outubro.

A nova política também é um passo atrás em termos da responsabilização do Estado para a efetivação dos direitos da pessoa com deficiência — dentre eles, o direito humano à educação, afirmou naquele momento Francine Dias, doutoranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fiocruz e integrante do GT de Acessibilidade e Deficiência da Abrasco. Ela explicou à Radis que historicamente houve a emergência de um grande número de instituições no âmbito do Terceiro Setor encarregadas de oferecer “educação especial” para pessoas com deficiências — as chamadas “escolas especiais” —, justamente porque o Estado nunca assumiu plenamente sua responsabilidade. “Quando a gente critica essa política, dizendo que ela é um retrocesso, a gente não está jogando a nossa história no lixo no sentido de falar ‘essas instituições não prestam mais’. O que a gente está querendo dizer é que foi um longo caminho, inclusive para que elas fossem financiadas com dinheiro público, porque, durante muitos anos, não foi o que aconteceu. Eram associações de amigos e familiares, como a maioria, inclusive, é intitulada”, aponta.

A pesquisadora destacou um aspecto presente na política, segundo o qual a escola especial seria “para aquele aluno que não se beneficia da inclusão”. “Ela não diz em nenhum momento quem é o aluno que não se beneficia da inclusão e porque não se beneficia”, analisa. Francine também se refere ao conceito de capacitismo, que é a discriminação contra as pessoas com deficiência. “É uma política capacitista, pois parte do princípio de que uma pessoa com determinadas características, com aquele corpo, não é capaz de estar naquele espaço e se beneficiar dele e que ela também não tem nada a agregar para aquele espaço”, criticou.

Escola, espaço de inclusão

Para Cristiane Zamari, advogada e conselheira do Movimento Down, a tentativa de mudança na política violava os direitos humanos das pessoas com deficiência a partir do momento em que classificava algumas deficiências como uma forma de não se adaptarem e de não conseguirem estar incluídas no ensino regular, falando especificamente da educação. “A educação no Brasil deve ser inclusiva por lei”, afirma. Ela explica que está previsto na legislação que as escolas especiais não podem mais ser a única forma de escolarização dos alunos com deficiência, porque ali não existe a possibilidade dessas pessoas terem um diploma, como em uma escola regular, já que isso não é legalizado pelo Ministério da Educação (MEC). “Hoje, a gente sabe que as escolas especiais podem, sim, ainda servir como subvenção ao município e ao estado, para que sejam, de forma complementar ou suplementar, ofertadas aos alunos que realmente ainda tenham necessidade ou tenham que fazer uso da escolarização especial no contraturno do ensino regular”.

Antes de ser suspenso, a advogada já alertava para mudanças geradas pela medida. “A gente já vê muitas notícias de escolas regulares que estão se utilizando desse decreto para fazer uma renegociação daqueles alunos que estavam ali incluídos e já impor alguns critérios para que eles permaneçam naquelas instituições de ensino regular”, relatou. Ela também citou casos de pais que estavam sendo convocados para reuniões particulares — “para que eles já entendam que agora as escolas têm uma desculpa, uma escusa, para negar a matrícula, alegando que aquele ambiente não é o mais favorável para aquele aluno”, criticou.

Um dos argumentos de quem defende as escolas especiais é o de que os profissionais não são capacitados para atender as crianças com necessidades específicas. Mas para Vivi Reis, educadora, escritora e conselheira do Movimento Down, não há tempo para esperar que todos se capacitem para só depois começar a incluir. Segundo ela, é preciso capacitar conforme se inclui. “Nós temos uma média de 30 anos de educação especial, talvez um pouco mais. Então nós temos profissionais que realmente trabalham com educação especial há muitos anos. A gente não precisa descartar todos esses saberes e aprendizados e começar do zero, a gente já tem um processo aí”, defende.

Ela explicou à Radis que as escolas e classes especializadas que o decreto cita são as instituições que já existem, mas que a inclusão depende da diversidade. “Elas já existem, elas fazem um trabalho bacana no contraturno, porém elas não devem substituir a escola. A escola é um espaço de todos, de convivência e construção plural. A gente não tem como falar em inclusão, entender como cada um vive e compreender a diversidade humana se não estando juntos”, reflete.

Para Viviane, o decreto 10.502 flexibiliza o direito da pessoa com deficiência a frequentar a escola comum porque traz a perspectiva de que a família poderia escolher entre a escola regular, a escola especializada ou a escola bilíngue para surdos. “Porém, é uma ilusão, porque não existe escolha. Nunca houve um real investimento na inclusão”, avalia.

Ela lembrou ainda que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) reforçou o direito da criança de estar em uma escola regular e inclusiva; por isso, a perspectiva sobre educação precisa sempre partir do pressuposto do “todos juntos”. “Ela precisa partir do pressuposto de que todas as crianças têm capacidade e habilidades para aprender. E usar de todos os recursos e ferramentas para que o desenvolvimento aconteça, no potencial de cada criança. Ele é individual, não tem que haver comparação”, assinala.

Segundo a educadora, ao ver as necessidades da criança e percebendo se ela precisa de um atendimento ainda mais especializado, pode ser feita uma construção multidisciplinar de entendimentos sobre estas necessidades. “Mas não como está no decreto, partindo das crianças com deficiência estarem em escola especializada; e sim, partir de que todas devem estar na inclusão e, só então, a gente pode ter esse olhar individual sobre o atendimento”, ressalta.

Quem vive a inclusão

A inclusão fez parte da vida de Rafael Oliveira Souza, de 29 anos, desde o ensino fundamental. Nascido em Bicas, município da Zona da Mata de Minas Gerais, ele começou o aprendizado em uma escola de educação especial — nos moldes da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Porém, alguns anos depois, ingressou em uma escola regular em que havia inclusão para alunos com síndrome de Down, como ele. “No meu tempo, ainda não era comum que alunos com deficiência frequentarem escolas regulares, não havia tanta inclusão, eu mesmo comecei minha trajetória por uma escola de educação especial”, relembra.

Ele conta que foi com muito apoio e perseverança dos pais que teve seu direito a frequentar uma escola garantido — o que, segundo ele, foi essencial para o seu desenvolvimento e aprendizado. “Sem isso, acho que eu não teria seguido adiante. Meus pais e toda minha família me ajudaram a vencer as barreiras que existiam”. Hoje, formado, ele trabalha na mesma escola em que estudou durante 10 anos de sua vida. “Trabalhar com educação é um desafio constante porque temos que ter muito diálogo com os alunos, estimular o respeito e a convivência”, reflete.

Ele ainda tem lembranças felizes de seus tempos de escola. “Para mim, não havia muita diferença entre os meus colegas e eu: me sentia incluído na turma e muito feliz. Fiz grandes amizades que levo pela vida toda. Todos os professores e também a equipe da direção gostavam de mim, tanto que fui convidado depois a trabalhar na mesma escola.” Uma memória marcante foi tocar na fanfarra da escola, junto com dezenas de outros estudantes que se apresentavam, no dia 7 de setembro, pelas ruas da cidade de pouco mais de 13 mil habitantes. A ligação com a música permanece até hoje. “Sempre gostei muito de música e de participar das atividades recreativas da escola, como as apresentações culturais”, lembra.

A educação, para ele, é “a base de tudo” e seu caminho foi “uma vitória e grande conquista”. “Por isso, sou contra o decreto 10.502, que volta com as escolas especiais”, contou à Radis. Ele acredita que pessoas com síndrome de Down, como ele, têm o mesmo direito de qualquer criança e adolescente de se desenvolver e ter seu aprendizado.

Ele sabe que sua trajetória foi um exemplo para outras pessoas, já que depois dele outros alunos com síndrome de Down, autismo e outras deficiências passaram a frequentar as escolas regulares de sua cidade. “Isso tem sido muito bom para elas, por causa do aprendizado, e também para os pais, alunos e professores, que convivem com a inclusão e aprendem a respeitar as diferenças”, ressalta.

“Chegar ao ensino médio para mim foi uma vitória e conquistar meu diploma me deixou muito feliz. Na formatura, fui convidado a fazer um discurso, em que falei sobre o carinho que tinha pelos professores e colegas, e eles por mim. Pra mim foi muito gratificante”, relata. Feliz e já formado, graças também ao apoio de professores e colegas, ele tem o sonho de fazer um curso na área de audiovisual, por conta do gosto em trabalhar com vídeos. “Quando me formei, ganhei uma câmera que me permitiu gravar alguns momentos de confraternização da minha família”.

Construção do comum

Cristiane ressalta a importância da acessibilidade atitudinal, segundo ela, “a mãe das acessibilidades” e que foi a que começou a mudar paradigmas. “É aquela que rompe as barreiras do preconceito e do medo do preconceito, de lidar com pessoas com aprendizagem diferente e faz a gente perceber que todos os alunos vão precisar de um plano educacional individualizado e de um atendimento específico, e que nós somos plurais, somos diversos, pois somos seres humanos”, explica. Para ela, falta uma visão governamental sobre os direitos humanos para que os paradigmas sejam mudados. “Enquanto a gente não tiver esse paradigma vindo de cima, dando subsídios e orçamento para que isso aconteça, a gente vai ver ainda muitos casos de insucesso por conta do preconceito”, reflete.

Vivi ressalta que a inclusão gera benefícios a todas as pessoas, inclusive professores e gestores, possibilitando, por exemplo, o aprendizado de novas formas de “ensinagem”. Ela também ressalta outros benefícios. “Quanto mais as crianças estiverem juntas em sua sala de aula, mais essa criança vai ensinar para a família dela o quanto é importante a convivência com o amigo, e aí ela está levando para o adulto também toda a consciência sobre a diversidade e sobre a importância do respeito”, pontua.

Já Martha assinala que as práticas inclusivas passam por todo um sistema que precisa de investimentos, incluindo capacitação dos professores e mudanças arquitetônicas, mas não só isso. “É também a gente acreditar em um movimento que deva se dar em termos das mentalidades. Eu desejo que esteja junto comigo alguém cujo corpo é muito diferente do esperado? Quando essa pessoa está comigo, eu aprendo com ela e aprende-se nessa relação. O que está em questão é exatamente isso”, reflete. Para ela, o que está em jogo é a construção do comum. “O que vai ser comum a todos nós? O comum a todos nós vai ser a construção da diferença e o desejo dela ou o comum vai ser manter as hierarquias entre as pessoas, as classes e os corpos, suas diferenças de cor e também a característica que diz respeito à deficiência”, questiona.

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