Com mais de duas décadas de experiência em pesquisas com doenças infeccionais, Marcus Vinícius de Lacerda percebeu, no início da pandemia de covid-19, que era hora da ciência dar respostas. Porém, jamais poderia imaginar que se tornaria alvo de ameaças de morte e ofensas pessoais por conta de seu estudo. O médico infectologista, especialista em saúde pública da Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazonas), foi presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), entre 2015 e 2017, e coordena desde 2017 o Instituto de Pesquisa Clínica Carlos Borborema, em Manaus. Ele esteve à frente de um estudo pioneiro no país sobre o uso de cloroquina em pacientes com covid-19 (o Clorocovid), ainda no início da pandemia, e precisou andar com escolta armada depois que ele e outros pesquisadores receberam ameaças de morte porque o estudo indicou que o medicamento não apenas era ineficaz como poderia apresentar riscos aos pacientes infectados pelo novo coronavírus.
Em um momento em que a ciência acelerava a busca por vacinas e fármacos, em março de 2020, a cloroquina ou hidroxicloroquina — remédio usado há décadas no tratamento de malária — ganhou repercussão no mundo todo, não exatamente por sua eficácia comprovada contra o novo coronavírus, mas por ser recomendado pelo presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil. O enredo começou quando um pequeno estudo francês, não revisado por pares, indicou que 20 pacientes haviam sido curados do coronavírus pelo uso do medicamento — fato suficiente para que o remédio fosse considerado uma espécie de “cura milagrosa” para a covid-19 e abrisse caminho para medidas contrárias à ciência.
A rede de pesquisadores que Marcus coordena em Manaus — referência internacional nas chamadas doenças tropicais — logo foi acionada e montou o estudo pioneiro no Brasil, com participação da Fiocruz Amazonas, Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), Universidade do Estado do Amazonas (UEAM) e Universidade de São Paulo (USP). Quando os dados preliminares da pesquisa apontaram não apenas a ausência de eficácia, mas alguns riscos no uso da cloroquina no tratamento de covid-19, os pesquisadores de Manaus começaram a enfrentar uma onda de linchamento nas redes sociais, com ameaças e ataques pessoais. “Nunca imaginei na minha vida que alguém ia me acusar de ter matado pessoas só para desmerecer o meu estudo. Nenhum pesquisador está preparado para esse tipo de ameaça”, narra o cientista à Radis.
De um dia para o outro, a vida do pesquisador e de seus colegas virou de ponta a cabeça. O estudo havia ganhado repercussão na imprensa internacional, em meados de abril de 2020, porque chamava atenção para os potenciais riscos do uso de cloroquina em covid-19, principal tratamento defendido pelo então presidente Trump — e por Bolsonaro, no Brasil. Em 17 de abril, o deputado federal Eduardo Bolsonaro publicou, em rede social, o rosto e o nome de alguns dos pesquisadores envolvidos na pesquisa, acusando-os de terem provocado a morte de 11 pessoas e serem “do PT”. “Foi uma avalanche de coisas na nossa vida. Toda aquela onda de ofensas e ameaças em redes sociais foi muito complicada. A gente pensou em parar por algum tempo”, conta, em entrevista à Radis.
A pesquisa liderada por Marcus foi o primeiro estudo com cloroquina usada no tratamento de covid-19 aprovado no Brasil, em 20 de março de 2020, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Pretendia checar mais a segurança do que propriamente a eficácia do medicamento em casos do novo coronavírus. Publicada no Journal of the American Medical Association (Jama), uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo, foi fundamental para que a cloroquina parasse de ser prescrita para covid-19 nos Estados Unidos. Contudo, para algumas crenças, nenhuma evidência científica basta. “Só aqui no Brasil que isso virou um debate, a gente foi xingado de ‘comunista’. O reconhecimento internacional, por outro lado, acaba demonstrando que a gente está certo. Infelizmente, no Brasil, a gente precisa primeiro ser reconhecido lá fora para ser valorizado aqui dentro”, avalia.
Atualmente, Marcus está à frente do estudo CovacManaus, que vai aplicar 10 mil doses da vacina CoronaVac em trabalhadores da educação e segurança pública com comorbidades para verificar se a imunização produziu impacto na prevenção de formas graves da doença. “Para um vírus respiratório como esse, a chance de uma medicação sempre foi muito pequena. Por outro lado, a chance de vacina sempre foi imensa. E é o que está aí hoje”, comenta. Mesmo que sua trajetória de pesquisa tenha cruzado com os efeitos do negacionismo, o cientista não desistiu. É como ele escreveu em 16 de abril de 2020, quando precisava lidar com as ofensas e ameaças de morte apenas por fazer ciência: “Não destruam nossos sonhos, nem o sonho das crianças que querem um dia pesquisar e produzir boa ciência.”
[Leia a entrevista completa de Marcus Lacerda à Radis, que é parte da reportagem de capa da edição de abril sobre negacionismo científico]
Como é fazer ciência no contexto atual, em que há pressa e urgência em responder à pandemia e ao mesmo tempo cresce o negacionismo científico e o desinvestimento na ciência?
A questão do tempo ficou muito clara, pois quem conseguiu responder mais rápido às perguntas foram as pessoas que já tinham entendido que a gente precisa trabalhar em rede. O Brasil tem falado muito sobre essa história de trabalhar em rede, mas ninguém nunca tinha levado a sério. As redes eram feitas temporariamente para conseguir recursos. Mas hoje, por exemplo, quase todas as medicações para covid foram testadas por um grupo inglês chamado Recovery que conseguiu recrutar pacientes no Reino Unido inteiro. Aqui no Brasil, se você olhar quem fez bons trabalhos, foi uma rede de medicina intensiva usando a estrutura já existente. Se esperamos uma coisa acontecer para montar uma rede de colaboração, vamos perder muito tempo. Já passou da hora de o Brasil ter as suas redes, a estrutura pronta para dar a devida resposta. A pandemia mostrou pra gente que individualmente ninguém vai responder nada. Precisamos ter gente unida para responder rapidamente às perguntas. Existe sim a falta do recurso, mas eu acho também que existe uma desorganização dos pesquisadores. Eles estão muito focados apenas em publicar. A Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] pede que o pesquisador publique três artigos ao ano, por exemplo. Ou seja, a gente não está muito preparado para dar resposta ao que precisa. Faz muita diferença quando você tem uma equipe e conhece pessoas que trabalham com o mesmo tema.
O senhor lidera um grupo de pesquisa que foi pioneiro em avaliar a segurança e a eficácia da cloroquina em pacientes com covid-19 e por isso sofreu ataques pessoais. Como foi lidar com esses ataques sem esmorecer o seu trabalho?
Como a gente estava passando pela primeira grande onda da doença em Manaus e tínhamos experiência com cloroquina e um grupo de pesquisa clínica já bem treinado, foi natural que a gente rapidamente fizesse um estudo. A gente foi muito rápido. O Clorocovid foi o primeiro estudo que a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) aprovou para estudar a cloroquina no Brasil. Como havia muitos pacientes graves internados, a gente conseguiu em 15 dias concluir as análises e publicamos. E foi o primeiro estudo no mundo a mostrar que no quinto dia de doença quem tinha usado cloroquina e azitromicina não havia negativado o vírus no nariz. O estudo original, que deu origem a essa celeuma toda, foi um estudo na França que disse que no quinto dia, se usar a cloroquina e a azitromicina, ninguém mais tem vírus no nariz. Aquele resultado tinha sido muito animador e nós fomos o primeiro grupo a fazer exatamente o que o estudo fez e isso não se repetiu. Na verdade, esse é o principal achado do nosso estudo. Só que, além disso, nós tínhamos testado no mesmo estudo uma dose mais alta. Para tentar ofuscar o resultado principal, isso ganhou repercussão. A gente viu que naquele momento a ciência estava totalmente politizada. Eu nunca imaginei na minha vida que alguém ia me denunciar por ter matado pessoas só para desmerecer o meu estudo.
Como os ataques pessoais e ameaças prejudicaram a rotina de pesquisas?
Nenhum pesquisador está preparado para esse tipo de ameaça. E foi o que aconteceu. O deputado Eduardo Bolsonaro tuitou que o estudo de Manaus era de petistas que queriam contradizer o presidente. E foi uma avalanche de coisas na nossa vida. Ninguém está preparado para, de um dia para outro, passar de “pesquisador” a “assassino”. E toda aquela onda de ofensas e ameaças em redes sociais foi muito complicada. A gente pensou em parar por algum tempo. As primeiras semanas foram duras. Eu fiquei com escolta armada, porque havia muita ameaça de morte chegando. A gente pensou em parar tudo, mas aí o grupo falou: “Não, temos que continuar”. Já estamos com vários estudos em andamento. Foi um desafio muito grande e dificilmente alguém que passou pelo que a gente passou aqui seguiria fazendo pesquisa clínica. Foi muito marcante pra nós. Valeu à pena porque quando a gente olha para trás todo mundo enxerga que o nosso estudo foi decisivo sobre não usar cloroquina. Por exemplo, nos Estados Unidos, foi o nosso estudo que fez os americanos pararem de prescrever cloroquina. Só aqui no Brasil que isso virou um debate, a gente foi xingado de “comunista”. Tanto é que o editor da revista, no final do ano passado, publicou os melhores artigos do Jama [Journal of the American Medical Association], e o nosso saiu como o artigo mais importante do ano em covid, porque foi ele que fez os médicos não prescreverem mais cloroquina. O reconhecimento internacional, por outro lado, acaba demonstrando que a gente está certo. Infelizmente, no Brasil, a gente precisa primeiro ser reconhecido lá fora para ser valorizado aqui dentro.
Mesmo contra as evidências científicas, o chamado “tratamento precoce” continua sendo receitado por médicos e autoridades. O que explica que algo que a ciência já provou ser ineficaz e até mesmo inseguro continue sendo utilizado?
Eu acho que o nível do médico brasileiro e da população brasileira explicam isso. O presidente pessoalmente quis que se usasse cloroquina em tratamento precoce. E ele obrigou todo mundo a repetir a mesma história. É aquela história de um único indivíduo que disse para quem ele emprega: “Ou você prescreve o que eu quero ou está fora”. Ele demitiu dois ministros por causa disso. Tirou o primeiro, tirou o segundo, colocou o terceiro que finalmente prescreveu cloroquina para os outros. O brasileiro entendeu o seguinte: se tem alguém dizendo que funciona é porque existe dúvida ainda. Hoje a leitura do brasileiro mediano é que se tem gente a favor e contra, é porque há dúvida. Foi assim que implantaram a dúvida sobre a vacina. No Brasil nunca tinha se discutido sobre vacina. A primeira vez que o brasileiro começou a duvidar da vacina foi agora porque plantaram a ideia de que a vacina poderia não ser segura e eficaz. Quando o brasileiro médio vê que o próprio presidente tem dúvida, é porque deve haver alguma coisa duvidosa. Mas é triste, porque o Brasil acabou sendo o único país que adotou o negacionismo de forma tão frontal. Aqui no Brasil isso virou política pública. O que mais revolta é que isso tenha se tornado política pública e não tenha sido deixado a critério médico. É uma vergonha, uma coisa embaraçosa explicar para um amigo europeu que o brasileiro continua prescrevendo essas medicações.
Depois de um ano de pandemia, que balanço é possível fazer sobre o que a ciência já constatou em relação à covid-19 e que desafios ainda estão colocados hoje?
Desde o início, eu tinha chamado atenção que, para um vírus respiratório como esse, a chance de uma medicação sempre foi muito pequena. Por outro lado, a chance de vacina sempre foi imensa. E é o que está aí hoje. Nós temos mais de dez vacinas em uso no mundo, funcionando muito bem, e medicação nenhuma efetivamente. A única medicação que tem uma eficácia comprovada nas formas graves é o corticoide. Quanto a isso não há dúvidas. Havia uma dúvida no início, algumas pessoas estavam usando e finalmente os ingleses fizeram um estudo testando corticoide por dez dias. Esse estudo saiu imediatamente antes de outro estudo nosso em Manaus, em que a gente testou corticoide por cinco dias, e por cinco dias não funcionou. A gente chegou à conclusão de que tem que ser dez. Isso sim tem muito impactou. Hoje todo o mundo já usa corticoide. Agora, em relação às drogas contra o vírus, os antivirais, efetivamente a gente não avançou. O remdesivir tem dados muito contraditórios, com um artigo que mostra impacto de internação menor, mas sem impacto sobre a morte. Outros artigos com remdesivir não mostraram nenhum impacto sobre internação. Se este efeito existe, ele é tão pequeno que não consegue ser detectado em todos os estudos. Quando o efeito é muito bom, não importa, qualquer estudo vai mostrar que o efeito existe de fato. Então, o remdesivir tem estudos contraditórios. Existe uma outra medicação antiinflamatória, que recentemente se mostrou com um benefício muito pequeno, que é o tocilizumabe, que é uma medicação anti-interleucina-6 (IL-6). Interleucina-6 é uma proteína de inflamação, esse remédio bloqueia essa interleucina e diminui a inflamação. Mas você precisa tratar 25 pessoas graves para ter benefício em uma delas só, ou seja, um benefício muito pequeno. É uma medicação cara, tem muitos outros problemas envolvidos. Hoje, em alguns hospitais privados, algumas famílias têm aceitado pagar pela medicação e têm usado, mas ela não foi incorporada no SUS pelo alto custo e pelo fato de que o efeito é pequeno. Então, o balanço que a gente faz em termos de medicações nesse um ano, é que a gente aprendeu a usar corticoide nas formas graves, e isso salvou 40% das pessoas graves, portanto, é um número muito alto, e medicações antivirais que ainda estão sendo estudadas e que os resultados não são nada animadores.
O colapso visto em Manaus em janeiro se repete agora em todo o país. Na sua avaliação, o que explica que o país esteja em um crescimento vertiginoso no número de casos e mortes, enquanto vários outros países do mundo já vivenciam a perspectiva de controle da pandemia?
Manaus estava chegando em seu período sazonal, em dezembro. Quando começam as chuvas, é o período sazonal de doenças respiratórias. Houve essa coincidência. E houve as festas de fim de ano em que as pessoas infelizmente aglomeraram e houve o aparecimento de uma nova variante que tem entre duas e três vezes mais capacidade de se espalhar. Essa variante aumenta a carga de vírus na respiração. Então é como se, com a nova variante, você estivesse lançando 3 mil ao invés de mil. A capacidade de infectar outras pessoas aumenta muito. O que a gente viu em Manaus foi um excesso de infecções. E como essa variante infecta mais rápido, ela se espalha mais rápido. Hoje essa grande onda que a gente está vendo no Brasil praticamente já é da variante P1. Em quase todos os estados, ela já está predominando, porque ela é muito rápida. Ocorre um aumento da Síndrome Respiratório Aguda Grave (SRAG) desde outubro. A partir de outubro, percebemos que a curva já não é mais de declínio, ela começa a subir. As pessoas também se recusaram a acreditar que haveria uma segunda onda. Depois que de mais ou menos um ano, aquelas pessoas que se infectaram e geraram anticorpos, os anticorpos começam a cair. Então temos agora: anticorpos caindo; variante nova, que já não é mais bloqueada com aqueles anticorpos; festa de fim de ano; período sazonal de chuva; e temos também o fato de que ninguém aguenta ficar mais em casa. O ser humano fica em casa no início, quando tudo é festa, está todo mundo fazendo live, mas não conseguimos manter as pessoas um ano inteiro dentro de casa. Essa fadiga das pessoas não é questão só brasileira. A Europa teve que implorar para as pessoas ficarem em casa no final de ano, porque ninguém aguentava mais. É o que a gente tem chamada de “grande furacão da covid”. A vacina não chega, a imunidade cai, as pessoas estão completamente fadigadas, não conseguem mais fazer isolamento social, essa combinação de coisas, mais uma variante nova que é mais infectante, acaba explodindo em Manaus. Na época, eu tentei advertir a imprensa que não era para focar em Manaus, porque aconteceria o mesmo em outras partes do país.
Em quais as pesquisas sobre vacina que o senhor está envolvido?
Existe um estudo que estamos participando com a BCG [vacina para a tuberculose]. Começou no Rio de Janeiro e em Campo Grande (MS) e já tem mais de 400 pessoas envolvidas. A ideia é que a BCG pudesse diminuir a chance de formas graves de covid-19. Também há um grande estudo com 10 mil doses da CoronaVac do Butantan [o CovacManaus], em que a gente vai vacinar professores e policiais com fator de risco, entre 18 e 49 anos, e vamos avaliar se essas pessoas vão se hospitalizar menos do que as que não receberam a vacina. Esse é um grupo que não é prioritário nesse momento. Então, estamos antecipando a vacina para esse grupo e vamos comparar para ver se a CoronaVac vai diminuir a hospitalização das pessoas com fatores de risco. É um pouco parecido com o que o Butantan está fazendo em Serrana (SP). Com a diferença de que lá estão vacinando 30 mil pessoas de uma mesma cidade. A ideia aqui é tentar ver o impacto da vacina nesse grupo de professores e policiais.
Que perspectivas o senhor vê para a pesquisa científica nos próximos anos?
Tenho um pouco de dúvida sobre o que vai acontecer. Hoje, com o presidente que nós temos, que manda as pessoas para Israel para buscar uma medicação em spray que foi usada em 30 pessoas só, acho muito difícil. A prioridade do governo atual é muito direcionada pelo gosto do presidente. Eu tenho a impressão que nesse ano e no ano seguinte, a ciência não vai mudar nada. A ciência vai continuar nesse obscurantismo. É perigoso isso porque as pessoas acabam se convencendo que esse é o caminho natural. O presidente pessoalmente tem tentado nos ensinar que prevenir não é melhor que remediar. Isso é uma coisa que era implícita em saúde pública. Qualquer pesquisador em saúde pública sabe que o investimento na prevenção é muito menor e mais eficiente do que o investimento no tratamento. A lógica da saúde pública foi totalmente invertida. Não há boas esperanças para os próximos dois anos.
Além das pesquisas sobre vacinas e medicamentos, que outras frentes precisam ter a atenção da ciência? Como podemos imaginar a pesquisa científica nos próximos cinco anos?
Acho que as pessoas ficaram sim com medo de fazer pesquisa clínica. Eu conheço muito pesquisador que não quer se envolver em covid, porque virou um tema politizado. Qualquer coisa que produzimos de ciência é interpretado por grupos extremistas como se tivéssemos um partido ou não. Isso é terrível em todos os aspectos. Israel começou a vacinar a população e hoje já está com quase 60% da população vacinada e publicando a evidência de que a vacina conseguiu diminuir transmissão e mortes. O Brasil tinha que ter feito isso. É o país que mais vacina a população gratuitamente no planeta. Mas as evidências de saúde pública nossas são as piores possíveis. Até em relação a novas variantes, tem que tomar cuidado, porque o governo não sabe interpretar o que isso significa, não sabe fazer a vigilância. O governo deveria hoje estar fazendo sequenciamento genético de variantes no Brasil inteiro. O que apareceu em Manaus pode aparecer daqui a pouco no Rio ou em São Paulo. Não é impossível que as variantes apareçam em outros lugares. Acabei de vir de Santa Catarina, um caos absoluto, um estado caótico com gente sendo transferida para o Rio de Janeiro e para Manaus, porque agora Manaus está recebendo pessoas de outros estados. Essa grande rede de sequenciamento genético do vírus tinha que ter sido montada há muito mais tempo. A gente tem que monitorar isso o tempo todo.
O senhor é referência na luta pela eliminação da malária, além de liderar estudos sobre outras doenças tropicais. Como é o cotidiano de pesquisa e quais as dificuldades de um cientista na Amazônia?
Eu devia ter continuado pesquisando malária (risos). Uma das dificuldades é a formação de pessoal. Tem melhorado, mas com a formação de pessoal é mais difícil. A escassez em recursos humanos é uma dificuldade, sem dúvida. A questão da distância também é um problema. Vocês acompanharam em todo o Brasil, com alguma surpresa, porque em Manaus teve colapso de oxigênio. Isso ocorre pelo isolamento [geográfico]. O oxigênio não tem como chegar em qualquer avião e não tem estrada para cá. Agora imagine que isso acontece com insumos de laboratório e uma série de outras coisas. Existem dificuldades logísticas. Eu tenho uma ideia em um laboratório, para aquilo chegar aqui eu demoro muito mais tempo. Essas são algumas dificuldades que a gente tem. A pesquisa funciona como uma grande cadeia produtiva. Tenho o produtor do freezer, quem dá manutenção no freezer, quem calibra os equipamentos. Isso tudo, pela baixa demanda da Amazônia, acaba seno limitado. Tem muita gente que eu tenho que chamar de São Paulo para dar manutenção num equipamento aqui em Manaus. Isso tudo encarece e dificulta as pesquisas. Tem melhorado nos últimos anos. Mas ainda é uma limitação importante pra gente.
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