Não importa se está frio na cidade onde você mora. Ou se você teve condições de viajar para a Europa e fez foto na neve. O aumento da temperatura média do planeta é um consenso científico que independe de pontos de vista e opiniões pessoais. Por trás do negacionismo climático, estão os interesses daqueles que têm a ganhar com a exploração predatória, como ressalta Mercedes Bustamante, professora titular da Universidade de Brasília (UnB) na área de ecologia e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “O quadro do desmonte é muito claro. Na questão do meio ambiente, assim como na pandemia, esse atraso na ação teve um preço muito caro: são vidas que a gente não recupera. A degradação dos ambientes ou o processo de desmatamento não são reversíveis”, analisa.
Mercedes ressalta que o negacionismo climático já é antigo em diversas partes do mundo, principalmente nos Estados Unidos, apoiado por setores políticos e financeiros ligados aos combustíveis fósseis. “Quando se fala em controlar a emissão de CO₂ ou botar imposto de carbono, esses setores liberais que são contra qualquer regulação veem nisso uma forma de controle da economia. Há uma pressão muito forte de um setor economicamente forte que é a indústria de combustíveis fósseis. Tudo isso alimentou essa corrente do negacionismo climático”, explica. Uma das estratégias, ela explica, é estigmatizar a questão do clima como uma pauta de esquerda, quando na realidade o aquecimento global afeta a humanidade como um todo, independente do espectro político.
São muitas as faces da anticiência na área ambiental: vão desde a recusa em cumprir as metas do Acordo de Paris — tratado internacional que visa reduzir os impactos do aquecimento global — até a negação das queimadas na Amazônia e no Pantanal. “O primeiro grande impacto é exatamente a demora na atuação de combate às mudanças climáticas”, pontua. Em tempos de pandemia, ela alerta, o negacionismo tem um custo direto em vidas; porém, em relação ao clima, não é tão simples apontar os seus efeitos nocivos, pois eles ocorrem a longo prazo. “É muito mais difícil perceber esse custo em vidas em uma ação que é pulverizada, globalmente distribuída e que pode atingir as pessoas por múltiplas causas”, comenta.
A ciência também esbarra na dificuldade da maior parte das pessoas em pensar nas consequências de suas ações para gerações futuras. “Evoluímos para pensar na sobrevivência muito próxima. Não temos essa perspectiva de longo prazo”, reflete. Ela também aponta que há um problema na formação educacional, que resulta em um déficit na compreensão de como a ciência atua. “O Galileu [Galilei], talvez o maior exemplo de quem sofreu com o negacionismo na ciência, tem uma frase que diz que ‘a verdade é filha do tempo’. O problema é que para alguns casos, o tempo joga contra, como ocorre precisamente com a pandemia”, ela avalia.
Bióloga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com doutorado em Geobotânica na Universitaet Trier (Alemanha), Mercedes é uma das principais referências em pesquisa no bioma Cerrado. Atua principalmente na área de ecologia de ecossistemas, nos temas relacionados a mudanças no uso da terra e mudanças ambientais globais. Foi co-coordenadora do capítulo sobre agricultura, tecnologias florestais e outros usos da terra no 5º Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e membro do Comitê Científico responsável pela revisão do relatório sobre emissões de óxido nitroso (N2O) do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Ela conversou com Radis sobre o negacionismo das mudanças climáticas e a urgência em priorizar o tema do clima. Também ressaltou a necessidade de dialogar com as populações tradicionais sobre o uso dos recursos naturais e de garantir o direito aos territórios. “Os povos indígenas e populações tradicionais têm um papel central na conservação dos biomas brasileiros, na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado”, avalia.
Muito antes do negacionismo em relação à pandemia, a ciência já lidava com o chamado negacionismo do clima, que se recusa a aceitar as evidências das mudanças climáticas e do aquecimento global. Como surge esse debate e como a ciência lida com essa questão?
Se olharmos historicamente, o negacionismo sempre existiu. O que a gente vê hoje é um contorno muito mais organizado e financiado. Isso é um aspecto importante em um ambiente em que a polarização política favorece esse tipo de postura. Quando acompanhamos a história da ciência, a gente teve uma inflexão muito importante na questão da indústria do tabaco. Isso é colocado no livro “Mercadores da Dúvida”, da Naomi Oreskes e outros colaboradores, quando eles destacam a organização da indústria do tabaco para contrapor as evidências científicas de que o tabagismo era prejudicial à saúde e que implicava em custos para o Estado muito maiores do que era arrecadado pela própria indústria em si. Parte dessa estratégia também envolve a presença do que eles chamam de think tanks, que são grupos colocando a dúvida, gerando uma confusão muito grande. A ciência é obrigada a reportar. Faz parte do método científico reportar a incerteza estatística associada aos dados. O ceticismo também é saudável no sentido de estarmos sempre contrapondo, verificando se é isso mesmo. Cada novo estudo verifica os anteriores, tudo é revisado. Mas usar esse procedimento e essa metodologia da ciência para levantar dúvidas não fundamentadas gera a confusão. É como se utilizar desse aspecto de que o debate é importante para a ciência, que a incerteza também é parte daquilo que a gente deve reportar, para provocar uma distorção e dizer: “como há incerteza, não se sabe nada”. Isso não é verdade. Isso vem sendo propagado e entra dentro da política de uma forma muito perniciosa.
Que riscos e consequências surgem quando posturas negacionistas são adotadas como políticas de Estado?
O primeiro grande impacto é exatamente a demora na atuação de combate às mudanças climáticas. Um dos slogans que adotamos na época que surgiu esse debate era que a mudança climática tem um custo em vidas. Só que é muito mais difícil perceber esse custo em vidas em uma ação que é pulverizada, globalmente distribuída e que pode atingir as pessoas por múltiplas causas. Na pandemia, a gente viu exatamente que o preço do negacionismo é pago em vidas. Esse preço ficou realmente evidente muito mais rápido, muito mais próximo e com números assustadores. A gente vive um momento em que é necessário separar ou colocar de forma muito mais clara essa manipulação que existe da metodologia científica por aqueles que negam a ciência, como por exemplo utilizar ferramentas que são corriqueiras da ciência como o debate e o confronto das ideias. É o que sempre digo: a gente confronta ideias, não confronta pessoas. Essa é outra face do negacionismo que está se exacerbando. Agora, não se ataca só as ideias, ataca-se frontalmente as pessoas. Ameaça, pune, restringe espaços, restringe liberdade de expressão em alguns casos, coloca-se a força de instituições do Estado contra pessoas, contra pesquisadores, a gente vê casos preocupantes com relação a isso.
E como lidar com esse problema num momento em que a ciência é pressionada a dar respostas rápidas?
Acho que é um momento que a gente precisa fazer realmente uma inflexão nessa curva. O Galileu [Galilei], talvez o maior exemplo de quem sofreu com o negacionismo na ciência, tem uma frase que diz que “a verdade é filha do tempo”. O problema é que para alguns casos, o tempo joga contra, como ocorre precisamente com a pandemia. Então, precisamos começar a indicar que o fato de não conhecermos 100% — e a gente nunca vai conhecer 100% — não é razão ou justificativa para a inação. Não podemos colocar certas posições como se fossem equivalentes, algo do tipo: “eu penso contra você, acho que você está errado sobre a vacina”. A fundamentação da vacina tem um corpo tão sólido de conhecimentos e o outro lado tem um corpo tão frágil. Porém, muitas vezes eles são tratados como equivalentes. Essa discussão da mudança climática durante muito tempo foi assim. Chega a um ponto que a gente não tem mais que discutir com negacionistas da mudança climática. Quando a gente entra para discutir, acaba dando a eles um status equivalente a todo o conjunto de evidências científicas que apontam para as mudanças do clima. Eu dou um exemplo do nosso cotidiano: todo dia você ouve o jornal na televisão e vem a previsão do tempo. Aquela previsão é dada para amanhã ou o final de semana. Você sabe que tem uma incerteza associada. Por outro lado, você reconhece que tem uma ciência e um conhecimento sólido sobre meteorologia que, se diz que vai chover, você pensa: “Bom, vou botar o guarda-chuva na bolsa”. Então, tomamos essas decisões mesmo que exista uma margem de incerteza; por outro lado, o conhecimento acumulado sobre aquele tema diz que eles acertam em boa parte das vezes e que vale à pena colocar um guarda-chuva e se prevenir, porque o risco é maior se você não tomar nenhuma providência. Então, trabalhamos o nosso dia-a-dia sempre com base nessa avaliação do risco e da incerteza.
Na sua visão, o que explica que tantas pessoas sejam levadas a acreditar em algo que a ciência já comprovou ser falso ou a duvidar das evidências científicas?
Quando a gente fala de mudanças climáticas, o clima é um sistema muito complexo. A ciência da climatologia envolve química, física, matemática e modelagem. Estamos falando de projeções que podem acontecer até 2030, 2050, alguns modelos chegam até 2100. Colocamos uma escala de tempo em que para a maioria das pessoas é difícil pensar. Evolutivamente, você pensa nos seus filhos, talvez um pouco nos seus netos, mas já não está pensando nos seus tataranetos. Evoluímos para pensar na sobrevivência muito próxima. Não temos essa perspectiva de longo prazo. Esse é um ponto. Mas quando começamos a ver que essa realidade se aproxima, vemos temperaturas cada vez mais altas — 2021 já está tendo recordes de temperaturas em cento e tantos anos —, começamos então a trazer essa realidade para bem mais próximo de nós. As pessoas sempre colocaram o clima como “as forças da natureza”. De repente, percebemos que a nossa capacidade de transformação da superfície do planeta foi tão forte que começamos a nos contrapor a essa ideia de “forças da natureza”. Por isso, o conceito de antropoceno foi tão difícil de ser colocado. Estamos comparando a ação humana às forças geofísicas que moldaram o planeta? Sim. Reconhecer isso é um processo que exige um tempo de maturação: primeiro, trabalhar com um problema complexo e depois entender qual é a nossa parcela de responsabilidade. Demanda tempo mostrar as relações de causa e efeito. Tudo que acontece em escala global tem mais variabilidade e as pessoas costumam dizer: “ah, mas na minha região não ficou mais quente”. Porém, a gente está falando de mudança climática global, não basta olhar um ponto, temos que olhar o todo. Tudo isso gera essa complexidade, trabalhamos com um volume muito grande de informação. Parte do problema está aí. Sem contar os fortes impactos econômicos para um setor que é muito forte, que é o dos combustíveis fósseis.
E em relação à pandemia, o que acontece? Quando vemos médicos receitando tratamentos sem evidência científica, onde está o gargalo?
No caso da pandemia, em relação ao que afeta diretamente a saúde, existe um certo desespero e as pessoas tendem a acreditar em uma cura milagrosa. Os psiquiatras falam sobre a necessidade de se apegar a alguma solução que esteja prontamente disponível. Apesar de a gente ter conseguido a vacina em tempo recorde, as pessoas pensam que existe um remédio na prateleira como se fosse “algo que está lá e eu vou me curar”. É uma mistura de esperança com desesperança. No caso dos médicos, é até difícil dizer. Eu te confesso que me surpreendi, sim, não só com a posição individual, mas em alguns momentos com a posição de algumas entidades de classe. Apesar de as pessoas terem formação médica, a epidemiologia tem uma condição muito particular que é a de olhar a escala macro, os grandes números, as estatísticas. Muitos dos nossos médicos são formados e vão trabalhar nos seus consultórios, vão fazer as clínicas e não necessariamente tem uma formação em pesquisa científica. Isso passa por entender a importância do tipo de experimento que é feito para a comprovação da eficácia dos medicamentos, como: experimentos padronizados, estudos duplos cegos, com número amostral suficiente, com uma amostragem que seja diversificada de acordo com a sua população. Então, a gente tem que ter um cuidado com isso, porque uma coisa é a formação que a gente dá para o dia a dia da clínica médica e a outra é a formação de quem efetivamente faz pesquisa na área médica. Podem existir alguns casos em que se monta um experimento a partir da prática, mas quando o experimento diz que a prática não levou a lugar nenhum, é preciso parar com a prática.
Nesse contexto em que a ciência ganha visibilidade, que papel podem ter os cientistas em orientar a população e divulgar informações de forma clara?
Temos observado uma exposição maior não só da ciência, mas de alguns ramos da ciência, que acho importante. Temos que ter cientistas que são bons comunicadores, bons divulgadores, e não fiquem como aquela figura inacessível. As pessoas têm facilidade de ouvir de alguém que elas conhecem, se acostumaram a ver e identificar o rosto. É importante trazer mais pesquisadores que tenham essa facilidade de comunicação. Tenho discutido muito com colegas que o nosso processo de formação deve incluir treinamento em comunicação e divulgação de ciência. O pesquisador vai ter que ser bom em montar experimento e fazer estatística e vai ter que ser bom para falar com as pessoas, porque a gente tem visto que essa é uma necessidade cada vez maior. A minha geração não teve essa formação. A gente foi aprendendo na medida em que as coisas foram saindo, tenho muitos colegas ainda que não gostam de falar com a imprensa, porque têm medo que isso seja distorcido. Esse media training vai ter que ser uma parte importante da formação dos nossos cientistas. A gente começa a criar uma relação de confiança com o público, para que as pessoas falem com conhecimento, mas ao mesmo tempo com simplicidade, são coisas que são difíceis de conseguir. A imprensa também teve um papel muito importante. Eu não deixo de me surpreender que, todos os dias, as estatísticas da pandemia sejam dadas pelo consórcio de imprensa. Em nenhum momento o governo federal voltou a assumir essa responsabilidade que é dele.
Em relação aos temas climáticos e ambientais, o atual governo tem uma postura de negar a necessidade de medidas de preservação e questionar dados científicos — do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo — a respeito do desmatamento e das queimadas. Essa postura também surge em cenário internacional?
Essa história do negacionismo com relação à mudança climática já está bem instalada. Na verdade, tem um histórico em diversas partes do mundo. Foi muito apoiada por alguns setores políticos norte-americanos, que eram contra uma regulação muito forte do Estado. Quando se fala em controlar a emissão de CO₂ e botar imposto de carbono, esses setores liberais que são contra qualquer regulação veem nisso uma forma de controle da economia. Há uma pressão de um setor economicamente forte que é a indústria de combustíveis fósseis. Tudo isso veio alimentando essa corrente do negacionismo climático. Muita gente pegou carona também ao associar essa questão da proteção ambiental a uma determinada corrente do espectro político. Nos Estados Unidos, uma parte robusta da legislação ambiental americana na verdade foi instituída por governos republicanos. Porém, foi um processo que foi sendo construído de associar a questão ambiental a uma pauta mais à esquerda do espectro político, quando, na verdade, da mesma forma como o vírus não vai perguntar em quem você votou para saber se te infecta ou não, a mudança climática não vai perguntar se você é de esquerda ou de direita para pular a sua casa em uma inundação ou poupar o seu sítio na época de um período seco. São processos que atingem a todos e os governos vão ter que trabalhar com isso. Com relação ao clima, embora ainda não tenha se revertido totalmente em ação, a gente vê que essa questão começa a mudar, muito também por pressão do setor econômico e financeiro. Quando a gente olha as últimas reuniões do Fórum Econômico Mundial, em Davos, eles colocam isso, é o grande capital que está falando, é o dinheiro do mundo que está concentrado ali, colocando como grande fator de risco a questão ambiental e em particular a questão da mudança climática. Então, quem está preocupado com os seus negócios começa a perceber “opa, tem alguma coisa realmente acontecendo que está aumentando o risco da minha atividade econômica”. Isso começa também a pautar os governos, a pressão econômica começa a surgir.
E em relação ao Brasil?
O Brasil, infelizmente, parece que vem atrasado até nessa questão do negacionismo. A gente teve um momento em que estava à frente por colocar a questão da mudança climática como uma política de Estado com todos os programas de controle ao desmatamento. O Brasil foi um dos primeiros países a ter uma política nacional de mudança do clima aprovada pelo Congresso, com o controle nacional de mudança do clima e os planos setoriais. Parece que a gente estava na ponta e o elástico voltou para uma posição bem anterior a que o resto do mundo hoje está. Porém, a janela de tempo para resolver isso está fechando muito rapidamente. Novamente o tempo joga contra a gente. Quanto mais tempo demorar para entrar com ações de mitigação, para entrar com ações de adaptação, mais caro vai ficar, menos efetivo e eficiente vai ser. O que me preocupa nisso tudo, como na questão da pandemia, é o tempo e a energia que a gente gasta para combater isso que, na verdade, deveriam estar sendo direcionados para preparar o Brasil para essa realidade da mudança do clima, que já está aqui presente.
Na área ambiental, a postura negacionista passa também pelo desmonte dos órgãos de fiscalização (como o Ibama), além da perda de investimento para combate a queimadas e preservação. Qual é o panorama hoje da ciência brasileira e das políticas nessa área?
O quadro do desmonte é muito claro. Nessa questão de “passar a boiada”, parte do desmonte é minar e tirar a autoridade desses órgãos. Eles passam a estar lá, mas não tem liberdade para atuar. É interessante a gente olhar como esse desmonte está sendo organizado, porque ele vai em várias frentes. O que a gente precisa hoje é documentar tudo isso, porque é parte desse processo histórico que não deve ser repetido e as pessoas vão ter que ser responsabilizadas, e ao mesmo tempo nos permitir reconstruir daqui para frente. Na questão do meio ambiente, assim como na pandemia, esse atraso na ação teve um preço muito caro: são vidas que a gente não recupera. Na questão ambiental, a degradação dos ambientes ou o processo de desmatamento não são reversíveis. Uma vez que se desmatou uma área, ocupou ou sofreu um processo de grilagem, ou as comunidades indígenas são atacadas e perdem o território, ou são contaminadas com covid, como a gente viu com o garimpo ilegal, esse é um processo que não se reverte. Para recuperar uma área de floresta, vai demorar 70, 80 ou 100 anos, e ainda assim não vai ser em um estágio de floresta madura. É melhor do que não ter floresta — não estou dizendo isso, que a gente não precisa investir em restauração —, mas a gente precisa ter essa percepção sobre aquilo que a gente está perdendo e qual a nossa capacidade de recuperar. Na questão da saúde, a gente vê esse preço pago em vidas. Começa-se a falar agora muito mais nos efeitos prolongados da covid: sobre aqueles que conseguem sobreviver, mas permanecem com sequelas. Na questão ambiental, vão ter danos que a gente não vai conseguir reverter; e aqueles que a gente conseguir reverter vão ter que ser trabalhados no longo prazo, o que implica em um custo muito maior.
Ano passado foi um ano muito difícil para os ecossistemas brasileiros, com as queimadas devastadoras na Amazônia e no Pantanal. Contudo, passados os meses críticos, o assunto “desaparece” da mídia. E há algo que é pouco citado: o protagonismo das populações que vivem nesses ecossistemas, os povos pantaneiros, do Cerrado e da Amazônia. Que alternativas têm sido encontradas por essas populações para conter a destruição?
Os povos indígenas e populações tradicionais têm um papel central na conservação dos biomas brasileiros, na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. Pensando em biodiversidade, o Brasil é um país muito diverso, mas há também uma enorme diversidade social — o tecido social brasileiro é muito diverso. Às vezes a gente esquece isso, porque temos boa parte da população brasileira vivendo em cidades, mas essa conexão com o território é muito forte em todos os biomas. Essas populações se desenvolveram na observação dos ciclos naturais dentro desses biomas e com a utilização dos seus recursos. É até interessante que a Academia Brasileira de Ciências (ABC) recebe agora como membro exatamente um representante de um povo indígena [em dezembro de 2020, Davi Kopenawa, líder e xamã do povo yanomami, foi anunciado como membro da ABC]. O diálogo do conhecimento tradicional com o conhecimento científico é muito importante, porque a gente tem muita coisa para aprender com as práticas, os sistemas de observação, com os arquivos ecológicos dessas populações — a forma de reconstruir ambientes passados através da memória oral desses povos.
E o que é necessário para reconhecer os direitos dessas populações tradicionais?
Está na hora da gente tratar seriamente o reconhecimento dos territórios. Isso é hoje um ponto central. Faz parte também da política de desmonte não haver mais demarcação de terra indígena e processos extremamente morosos de reconhecimento de direito aos territórios quilombolas, sem contar várias outras populações tradicionais, dentro do enorme e diverso tecido social que a gente tem, que não têm seus territórios reconhecidos. Esses grupos sociais se organizaram com base no uso do território. Se não há o reconhecimento do território, nega-se a identidade desses grupos e desmancha-se aquilo que mantém essas comunidades juntas. Então, um ponto importante, além de reconhecer, valorizar, ouvir, divulgar, interagir e trocar informação, é o respeito ao direito ao território. Isso está na berlinda nesse processo de desmonte de forma muito clara. Quando a gente ouve falar em abrir terras indígenas para a mineração, permitir a agricultura dentro de terras indígenas naquele modelo convencional que já se mostrou insustentável, aí começa-se a tirar o direito e o reconhecimento ao uso do território, além do desrespeito geral e do desconhecimento, porque desconhecer também é uma forma de desrespeitar. Isso hoje é uma questão central. Se a gente não tiver isso, a gente não vai conseguir manter essa sociodiversidade.
O Cerrado é alvo da expansão agrícola da monocultura e do cultivo voltado principalmente para o mercado externo, com grandes impactos ambientais. É possível pensar uma bioeconomia a partir da riqueza desse ecossistema? Que vantagens poderiam surgir a partir de mudanças nas práticas agrícolas e na relação com a terra?
O Cerrado é a savana mais diversa do mundo. Só de espécies de plantas, a gente tem mais de 12 mil espécies. Em um sistema tão rico, ficamos dependentes de soja que é uma espécie exótica, do gado que também acaba sendo uma espécie exótica, e o uso dos nossos recursos naturais é completamente desconsiderado. Eu digo que, hoje, no Cerrado, a gente tem três frentes para avançar quando a gente fala de conservação. Naquelas áreas já abertas, é irrealista pensar que onde a agricultura de larga escala já entrou, vai mandar todo mundo embora e agora a gente vai fazer outra coisa. Em parte do território, onde já existe esse uso consolidado, como é que se estimula e incentiva o uso de práticas mais sustentáveis? É complicado porque o modelo de agricultura implementado é um modelo que só vai dar lucro se for em larga escala. Mas onde é possível manter práticas mais sustentáveis? Segundo, existe uma enorme extensão de áreas abertas, mas que já estão degradadas dentro do Cerrado. Como se recupera essas áreas degradadas? Podemos recuperar permitindo que se instalem formas de uso da terra e atividades agropecuárias desde que com melhores práticas, para evitar abertura de novas áreas, e onde for mais adequado, restaurar para garantir a biodiversidade, garantir serviços, ecossistema e conservação de água. E a terceira frente, que na verdade tem que ser a primeira, é parar o desmatamento. Não adianta a gente trabalhar com sustentabilidade na agricultura e com restauração, se a gente não parar o desmatamento e sobretudo o desmatamento ilegal. Não há condições de a gente dar estímulo para atividades legalizadas se a ilegalidade continua graçando, porque ela continua sendo sempre economicamente mais vantajosa. Tem que haver uma sinalização muito clara quando se fala em sustentabilidade. O pessoal diz: “Quando a produção for sustentável, o desmatamento vai parar”. Eu digo que não: forçar a sustentabilidade é indicar “opa, para cá você não tem mais espaço”. É preciso segurar o desmatamento e começar a aplicar, nas áreas já abertas, políticas de estímulo à produção mais sustentável. Então, acho que são três frentes importantes que a gente tem que olhar hoje dentro do bioma Cerrado. Lembro sempre que hoje, quando se fala que a taxa de desmatamento está mais alta na Amazônia, a Amazônia ainda tem 80%, que é ótimo, vamos segurar esses 80% e recuperar parte dos 20% perdidos. No Cerrado, já perdemos 50%. Novamente, aquele reloginho que joga contra a gente é importante, porque os 50% vão ficando fragmentados, têm menos condições de tolerar impactos ambientais com mudanças climáticas, as espécies vão tendo menos áreas de refúgio. Então precisamos olhar essas três frentes, mas para isso a gente precisa ter governança ambiental — que, hoje, infelizmente, a gente não tem.
E como estimular o protagonismo dessas populações em práticas sustentáveis e agroecológicas?
Primeiro, é importante garantir mercado para essa produção. A gente tem uma parte importante da população brasileira vivendo em cidades, com pouca conexão com o lugar de onde a comida está vindo — ou aquilo que você compra no supermercado, como está sendo produzido e quais são as consequências disso. Primeiro a gente tem que conectar o consumidor com a realidade de quem produz, e entender quais são os meios de produção e que consequências isso tem para a sua própria saúde e para a saúde ambiental também, no futuro. Essas populações enfrentam dificuldades para colocar os seus produtos no mercado. Como estão em regiões muito isoladas, como você garante transporte e a qualidade do alimento? Dependendo do mercado, as exigências sanitárias também dificultam. Então precisamos começar a pensar como se conecta a produção desses grupos, como valorizar e agregar valor, e ao mesmo tempo garantir acesso a mercados justos. A gente tem que pensar nesse conjunto de políticas. Eu participo de um comitê que avalia pequenos projetos ecossociais. São pequenos, às vezes em que eles montam uma pequena agroindústria, a planta que eles mesmos fizeram da parte de processamento, então você fala: “olha, precisa melhorar o projeto, para o produto ganhar o selo de qualidade e botar no mercado, no supermercado na capital”. Então, é preciso levar a extensão também nesse sentido — ou seja, não impor. Esse é o cuidado que a extensão rural tem que ter. E a extensão rural, no Brasil, ela foi destruída já bem antes, não é? Hoje, tem a assessoria técnica no campo, por exemplo; muitas vezes são extensionistas de empresas. É importante a gente pensar em um sistema público de extensão que considere esses meios de produção e a manutenção dessas comunidades e ao mesmo tempo as conecte com essa realidade urbana do Brasil onde elas possam colocar o seu produto. A gente tem alguns exemplos no Cerrado interessantes: o pessoal da Central do Cerrado, que tem pontos de venda de produtos, com agregação de valor; agora estão vendendo online, por conta da pandemia. Na época sem pandemia, eles ainda faziam, por exemplo, buffet de eventos, esse tipo de coisa com produtos do Cerrado, o biscoitinho que era feito com as nozes do Cerrado, os sucos dos frutos do Cerrado, então, você tem que ir abrindo esses canais. No caso, eles funcionam como uma cooperativa, que é outra ideia interessante: dar condições para que eles possam, efetivamente, ter um retorno econômico. É claro que um dos grandes problemas hoje, especialmente para essas populações, é manter a população jovem no campo. Como dar continuidade se existe dificuldade de acesso à educação, saúde etc? Como levar esses serviços sem que haja uma perda cultural e social significativa? É esse cuidado de intervenção que a gente tem que ter.
Como as mudanças climáticas já impactam e vão continuar impactando o modelo atual de agricultura e a vida das populações rurais e urbanas?
A gente esquece sempre de olhar a questão de como o clima, por exemplo, afeta o preço dos alimentos. Dói no seu bolso a cada estação, quando vem um período mais seco e diminui por exemplo a produtividade na pecuária e vemos isso expresso no preço da carne. “Está caro, está caro, está caro” e você vai fazer a conexão: “bom, tem o clima, mas também tem o fato de a carne ser uma commodity, tem a cotação do dólar etc.”. Mas existe uma relação direta: tudo o que a gente produziu menos no campo, pela lei da oferta e da procura, o preço vai ser pago pelo consumidor. Sempre falo que a agricultura é a atividade econômica mais dependente do clima, porque o fator central para a agricultura é ter estabilidade climática. Precisa haver chuva no tempo e na quantidade certas. Quando parar de chover, no momento correto precisa colocar maquinário no campo para coletar, porque se a estação chuvosa se prolonga, não consegue entrar com máquinas para fazer a colheita e nem escoar a produção. Então, essa questão da estabilidade climática é a que o produtor usa para diminuir o seu risco. Qual é o primeiro indício da mudança climática? A gente pensa no aumento da temperatura média global, mas um dos primeiros sintomas é observar que o clima vai se tornando mais errático, começa a haver mais variabilidade climática, aparecem mais eventos extremos. No caso do Cerrado, em anos em que demora mais a entrar o período chuvoso, a gente tem aquele veranico, que é um período de seca durante o período chuvoso, o veranico se estende e se torna mais intenso. Também há uma seca mais prolongada. Tudo isso vai mudando o calendário do qual o produtor depende para saber o que ele vai poder vender com antecedência. Outro ponto importante que as pessoas se esquecem é que, na produção de grãos, como milho e soja, a temperatura noturna é muito importante, porque é um balanço entre o que a planta assimila de carbono na fotossíntese e o que ela vai perder pela respiração. Se a temperatura à noite aumenta, a respiração também aumenta e ela gasta mais do que tinha incorporado, então ela produz menos grãos. Um dos efeitos da mudança do clima, a gente já sente isso nas cidades, as noites ficam mais quentes. Isso acontece no campo também e diminui a produtividade. A sociedade como um todo paga por isso. Talvez seja na questão do preço dos alimentos que a gente veja muito claramente todos os anos o efeito do clima. Agora imagina isso mais errático, mais variável, e como isso vai determinar a oscilação de preços no Brasil.
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