A destruição física e espacial sempre é um problema em cidades após sofrerem um desastre socioambiental, mas pouco se fala das consequências psicológicas para as vítimas. Um prédio pode ser reconstruído em meses, mas e a saúde mental de uma pessoa? Como auxiliar alguém que perdeu um parente ou um amigo? Ou a família que vê sua casa debaixo de escombros? Ou ainda a pessoa que vive em um local de risco constante? Ou o profissional que esteve muitos dias trabalhando incansavelmente sem suporte?
Para a cientista social e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Simone Oliveira, um desastre socioambiental tem muitas fases, que vão desde a atenção imediata às vítimas até a reconstrução — e essa é a etapa mais demorada e complexa. “Além do processo de recuperação física, no sentido de reconstrução de prédios e reinstalação de serviços, envolve toda a restauração da vida social, familiar e pessoal”, constata.
A ausência de um processo digno de reconstrução, em que as pessoas devem ser ouvidas e acolhidas, é apontada por ela como um dos principais fatores que geram sofrimento. “As pessoas não apenas sofrem com a situação, ao perderem parentes, amigos, pessoas próximas, sua forma de viver, mas, além disso, têm que provar que são vítimas”, constata. Com pós-doutorado em Psicologia do Trabalho pela Universidade do Porto (Portugal) e integrante do GT Saúde do Trabalhador da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), ela afirma ainda que é preciso atenção à saúde dos profissionais que atuam nos desastres socioambientais e que esse cuidado geralmente é negligenciado.
Simone é integrante do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh), da Ensp/Fiocruz, e do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental. Coordenadora de uma pesquisa com populações que vivem em áreas de risco na Região Serrana do Rio de Janeiro, onde ocorrem tragédias frequentes provocadas pelas chuvas, ela defende que o caminho de prevenção dessas ocorrências está no fortalecimento das comunidades — o que pode garantir a construção de redes colaborativas para o enfrentamento dos desastres provocados pelas mudanças climáticas.
Qual é a causa da ocorrência dos desastres socioambientais?
As mudanças climáticas têm aumentado e isso é um fato. Após a tragédia recente no Rio Grande do Sul, parece que há uma surpresa, mas, na verdade, isso tem sido anunciado há muito tempo. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) já existe há 40 anos; porém, ultimamente alguns governos no Brasil brincavam com isso e consideravam que esse não é um problema. As mudanças climáticas têm sua origem no modelo de produção de exploração desenfreada dos recursos naturais, de petróleo e minério, e no alto consumo do próprio modelo de vida. O aquecimento global vem acelerando e tem se tornado mais conhecido. Algumas pessoas estão chamando de Fervura Global, que seriam as emergências climáticas com as quais estamos nos deparando. O problema é que isso tudo gera pânico e, ao mesmo tempo, parece que não sabemos o que fazer. É preciso organização social para essas mudanças, no sentido de responder à pergunta: “Como mudamos o padrão de produção e de consumo?” Isso é um pacto social, é um acordo da sociedade e dos países com os seus blocos. Apesar de termos a COP [Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas] que vem fazendo esses acordos, na verdade eles não são cumpridos. É preciso de fato um comprometimento das partes para que gere mudanças concretas.
Após a ocorrência de um desastre socioambiental, o que é feito para o dano ser reparado?
Os afetados, normalmente, perdem suas casas ou elas ficam interditadas no local de risco. Toda essa situação é muito complexa, porque o desastre tem as suas fases: a fase da resposta, do resgate, da recuperação e da reconstrução, que é a fase mais longa. A fase da resposta é quando se aciona a Defesa Civil, os Bombeiros e a Saúde: o período das primeiras 72 horas até os 30 dias é fundamental. Nesse primeiro momento, acontece a busca dos corpos sem identificação, além de retirar todas as pessoas. Geralmente, existem planos de contingência nos estados e municípios, mas muitos estão defasados. Existe sempre um imediatismo nos desastres, nunca se sabe onde vai afetar. Por exemplo, na Região Serrana do Rio de Janeiro, quando aconteceu em 2011 um grande desastre, Teresópolis tinha feito um plano de contingência para um número de 300 de pessoas atingidas, que seria já uma estimativa maior do que estavam acostumados. Mas no primeiro dia já ultrapassavam 6 mil. Por isso, ao mesmo tempo em que existe um planejamento, ele sempre vai ao encontro da realidade, porque precisa de ajustes.
Como a demora e a dificuldade da fase de recuperação afeta a saúde mental das pessoas atingidas?
A fase da reconstrução é a mais demorada. Além do processo de recuperação física, no sentido de reconstrução de prédios e da reinstalação de serviços, envolve toda a restauração da vida social, familiar e pessoal. Vamos ver, por exemplo, pessoas que viveram no contexto da barragem de Mariana [em MG] e sofrem até hoje com as consequências, e isso já faz 9 anos [ocorreu em 2015]. O mesmo no desastre da Região Serrana de 2011, em que existem pessoas que não recuperaram suas casas nem sua dignidade. E isso é um fator agravador da saúde mental: as pessoas acabam entrando em depressão, não necessariamente pelo evento, mas pela ausência de um processo de reconstrução digno.
Muitas vezes ocorre o processo de “revitimização” da população: as pessoas não apenas sofrem com a situação, ao perderem parentes, amigos, pessoas próximas, sua forma de viver, mas, além disso, têm que provar que são vítimas.
Como esse processo que deslegitima o sofrimento das vítimas dificulta a sua recuperação?
O processo de revitimização é muito doloroso. São vários formulários que precisam ser preenchidos com o objetivo de que as autoridades tenham o reconhecimento de quem foi atingido. Fazem as vítimas reviverem toda a tragédia e muitas vezes não recebem o reconhecimento. “Quanto mais cedo a volta do funcionamento social, melhor para esse processo de ressignificação das comunidades atingidas.” Seria quando as coisas começam a funcionar, como a volta das crianças para a escola, por exemplo.
Dentro dos cuidados em saúde, a saúde mental é vista como uma prioridade?
Não. Atualmente a gente vê muito se falar disso, mas acho que não se tem um entendimento comum de qual seria a melhor abordagem; ainda fica muito no plano biomédico da patologização. O sofrimento não é patológico, ele pode se transformar numa patologia; mas, antes de ser encarado como doença, é preciso entender primeiro que o sofrimento faz parte da vida. A gente precisa compreender que a nossa sociedade não suporta o sofrimento, por isso vemos muitos jovens se medicalizando e uma indústria que cada vez mais investe em uma sociedade totalmente medicalizada. Se você não dormiu uma noite, você tem que tomar uma medicação para dormir. E nessas situações [dos desastres], isso se exacerba: parece que essas pessoas precisam de medicalização para lidar e ressignificar a sua existência.
E qual seria a abordagem mais correta?
Precisamos sempre pensar que as pessoas e as comunidades são capazes de se reconstruir. É necessário garantir o protagonismo. Devemos apostar, sempre, que as populações são capazes de dar conta, no sentido de que é preciso infraestrutura e recursos, mas as pessoas podem buscar isso coletivamente. Quando a gente pensa na dimensão psicossocial, a gente está abrangendo várias coisas que não somente o biológico, não é somente a questão do adoecimento mental.
Como o atendimento psicossocial pode ajudar a promover melhores condições às vítimas?
O psicossocial é não só pensar em como as condições de vida afetam o indivíduo, mas como o ambiente interage comigo. Se vivo numa situação traumática e me sinto em risco, isso altera ainda mais a capacidade de superação. É necessário também se atentar para as pessoas que já estão em recidiva, ou seja, que viveram situações semelhantes recentemente. No próprio Rio Grande do Sul, houve em setembro um evento importante similar, então essas pessoas estão mais propensas a terem algum tipo de comprometimento ou algum tipo de transtorno. No entanto, é fundamental a gente pensar que o percentual de pessoas que vão ter um estresse pós-traumático é muito baixo. Se a gente tem esse trabalho de acolhimento, de escuta e de orientação, isso tende a minimizar. É claro que existem algumas pessoas que precisamos ficar atentos, pois são perfis que já apresentaram algum comprometimento, e cabe ao setor da Atenção Primária, especialmente aos agentes comunitários de saúde (ACS), que conhecem mais os territórios, contribuir para a identificação desses grupos.
Quais medidas devem ser tomadas para a prevenção em casos de áreas de constante risco?
Para prevenção, o que deve ser feito é o fortalecimento das comunidades. Quando acontece um evento, as primeiras pessoas que atuam são da própria comunidade. Até chegar ajuda externa, demora, às vezes mais ainda porque o acesso está difícil. O projeto De Nosso Território Sabemos Nós foi desenvolvido pelo Cesteh Fiocruz na Região Serrana do Rio de Janeiro, fazendo a cartografia para as pessoas conhecerem o seu território. A Defesa Civil cria a rota de fuga e os pontos de apoio, toca o alarme e as pessoas não vão — porque, pelo trajeto que elas têm que fazer para chegar naquele ponto de apoio, elas acham que estarão mais em risco do que se permanecessem em casa. É preciso haver um diálogo entre a população, a comunidade e os profissionais, porque ainda existem o que a gente chama de zonas de incultura: tem conhecimentos que a população não sabe; e por outro lado, tem conhecimentos que os técnicos científicos também não sabem, porque são próprios da população que circula no local. Por isso é preciso haver esse diálogo e essa é a função das áreas de saúde, a promoção desses diálogos.
Como o apoio, as doações e a midiatização ajudam as vítimas psicologicamente?
A solidariedade é fundamental para as vítimas, porque ela realmente traz ajuda não só física, mas apoio e humanidade.
Faz com que as pessoas de fora também sintam, queiram contribuir e de alguma forma participar, surge a comoção. É claro que a gente sabe que muitos voluntários não têm uma compreensão correta ou formação para atuar nessas situações, e muitas vezes atrapalham, mas esse movimento é muito interessante e as pessoas se sentem acolhidas nesse processo. Elas veem como elas importam, e isso traz um sentido para sua vida. Apesar da mídia incomodar por ser, às vezes, muito incisiva, buscando mostrar o sofrimento para gerar uma comoção maior, ela também traz a atenção para o local. Quando a mídia para de reportar o desastre, parece que já está normal; aí as pessoas sofrem muito mais, porque elas deixam de receber a solidariedade que geralmente surge nesses eventos.
Como cuidar da saúde dos trabalhadores nesses contextos de desastres?
A saúde dos trabalhadores da saúde também é muito importante. A maioria, nesses casos, está na atenção primária, atuando na fase de resposta e assim são afetados. Sentem o reflexo do trabalho intenso requerido neste momento da tragédia. É fundamental pensar na identificação dos limites. As pessoas vão se envolvendo e trabalham intensamente, porque não sabem a extensão do tempo de recuperação. Toda a população é atingida, mas existem níveis diferentes. Existem aquelas pessoas que perderam os parentes, familiares e amigos, que perderam seus bens materiais — essas são as primeiras vítimas. Mas também há os profissionais que atuam e a população como um todo. Há relatos dos profissionais de saúde na minha pesquisa na Região Serrana que diziam que se acontecer novamente, eles não vão se disponibilizar para atuar, porque se sentiram muito desgastados com esse processo. Fizeram um grande investimento e não tiveram o reconhecimento. Sentiram que a sociedade e os representantes não discutiram o que deu certo, só o que deu errado. Na realidade, muitas vezes o que deu certo foi devido ao grande investimento dos profissionais em tomar determinadas decisões, ao arriscarem muitas vezes até mesmo a sua vida e, depois, isso não foi um ponto de discussão e de reflexão. Essa ausência de reconhecimento gera muito sofrimento, o que chamamos de sofrimento social. A gente fala que os atingidos, na verdade, não são só aquelas vítimas diretas. Esse é um sofrimento social que precisa ser discutido.
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