Duas crianças Yanomami, uma de 4 e outra de 7 anos, brincavam nas águas do Rio Parima, em Roraima, quando foram levadas pela correnteza. Segundo o relato das lideranças indígenas, elas foram sugadas pelas dragas instaladas por garimpeiros ilegais. As duas mortes, ocorridas em outubro, são parte da tragédia vivida pelos indígenas em razão da presença de garimpo ilegal, grileiros e madeireiros, entre outros invasores em suas terras — que trazem um cotidiano de violência e ameaças, além da contaminação da água, do solo e dos alimentos e a entrada de doenças, como a malária e a covid-19. Entre setembro e novembro, pelo menos quatro crianças morreram com sintomas de malária na Terra Indígena Yanomami, segundo relato do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY).
A disseminação de doenças trazidas por invasores é conhecida pelos indígenas do Povo Yanomami desde o início do contato, como o líder Davi Kopenawa relata em seu livro A Queda do Céu [Companhia das Letras, 2015]. “Nossos ancestrais desconheciam a febre ardente dessas fumaças de epidemia. Seus corpos eram frescos como a floresta em que sempre viveram, sem remédio nem vacina”, relata.
A omissão e a conivência do Estado brasileiro com relação a este cenário é uma realidade também conhecida por Ana Lúcia Pontes, desde que ela começou a atuar no Alto Rio Negro, no estado do Amazonas, com a formação técnica de agentes indígenas de saúde. Médica formada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Ana Lúcia tem se dedicado a colaborar com o fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-Sus) e com a luta do movimento indígena por seus direitos — em contraponto ao histórico de negligência e opressão com que o Estado brasileiro tratou os povos originários.
“A história da política indigenista brasileira se baseou na ideia de que eles tinham que sumir enquanto grupos específicos. Tinham que ser integrados”, afirma. A Constituição de 1988 trouxe um novo paradigma, ao garantir o usufruto exclusivo de seus territórios e o direito de permanecerem como grupos diferenciados, com sua organização, línguas e costumes. Contudo, a presença de “uma conjuntura de hegemonia no Congresso Nacional” tem favorecido que alguns setores ligados ao agronegócio e à mineração busquem “atalhos” para mudar os direitos constitucionais, alerta a pesquisadora.
Atual coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Ana Lúcia fez uma escolha pouco comum entre os médicos brasileiros, ao decidir vivenciar a saúde ao lado dos indígenas, estimulando a produção de conhecimento “com eles”, e “não para eles”, como ela gosta de enfatizar. Ser uma das convidadas a participar da 14ª Grande Assembleia Terena, que ocorreu entre 17 e 20 de novembro, na Aldeia Mãe Terra, em Miranda (MS), é uma prova da relação de diálogo e parceria que ela tem construído com os povos originários. “A produção do conhecimento não pode se dar sem a participação dos indígenas, não só no sentido de ‘consultar’ ou ‘ver o que eles precisam’, mas como nossos pares e como povos que têm direito à soberania”, considera.
Em conversa com a Radis, Ana Lúcia vê com preocupação o cenário de calamidade vivido por diversos povos indígenas, não apenas com a desassistência em relação à covid-19, mas também em razão das ameaças colocadas no plano jurídico e legislativo, que retiram um direito que eles consideram vital para a sua existência: a garantia de seus territórios, como Radis abordou na edição 227. “São povos que têm um modo de pensar, de organização social e de manejo dos ambientes que valoriza a diversidade, ao contrário do modelo hegemônico extrativista, baseado na monocultura e na destruição”, reflete. Por outro lado, o avanço do desmatamento e de atividades predatórias podem comprometer o futuro de todo o planeta — como também alertou a comitiva indígena que participou da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), entre 31 de outubro e 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia.
Os povos indígenas têm um histórico de enfrentamento a inúmeras epidemias — o Davi Kopenawa Yanomami, no livro A Queda do Céu, fala sobre as doenças (xawara) trazidas pelos brancos. Ao longo da colonização, doenças foram utilizadas como instrumento de dizimação. Que erros e marcas do passado se repetiram com a pandemia de covid-19?
Esse foi um fato muito reforçado por algumas lideranças indígenas com a pandemia de covid-19. A disseminação dessas epidemias, historicamente, se deu tanto pelos próprios empreendimentos quanto por uma concepção, bastante defendida pelos militares e outros setores econômicos e políticos durante a ditadura, de contato forçado com os povos indígenas, entendendo que eles estariam atrapalhando o desenvolvimento nacional. A história da política indigenista brasileira se baseou na ideia de que eles tinham que sumir enquanto grupos específicos. Tinham que ser integrados. Uma das memórias que tenho e que me marcou muito, quando eu comecei a trabalhar no Alto Rio Negro, foi ouvir relatos de que, ainda na década de 1960, eles haviam recebido roupas contaminadas de hospitais para disseminação de doenças. Essa disseminação ocorria tanto de maneira não intencional, como nesses empreendimentos — como é o caso da malária até hoje com o garimpo —, quanto de maneira tragicamente intencional.
E qual foi o cenário com a covid-19?
Na pandemia, a gente vê que se repete o modelo: a entrada em territórios indígenas, de maneira ilegal e à revelia de suas manifestações contrárias e denúncias. Vimos os discursos da autoridade governamental de alguma forma estimulando as invasões e desqualificando o direito indígena sobre seu território. A gente viu o aumento de episódios de violências em que a covid-19 fez parte, assim como a malária que também aumentou desde 2019. O governo está tentando reverter a política de não contato, particularmente falando dos povos isolados e de contato recente. Existe toda uma tentativa do governo Bolsonaro de mudar a perspectiva da política indigenista. Esse governo retrocede completamente na visão dessa relação e do ponto de vista da saúde também. O que acontecia até 1999 é que o governo brasileiro não tinha uma política clara e específica de saúde para os povos indígenas. A omissão é a marca da resposta governamental. O aprendizado do processo de construção do Sasi-SUS de que as respostas em políticas de saúde para os povos indígenas tinham que ser diferenciadas e baseadas em diálogo foi algo que se perdeu. São populações historicamente invisibilizadas e essas epidemias, as mortes e o próprio genocídio são vistos como consequência ou como parte de um suposto projeto nacional. A sociedade brasileira, infelizmente, não reage a isso e é conivente. É uma repetição de cenas dramáticas vividas pelos próprios indígenas e pelos profissionais de saúde que atuam com essas populações.
A resposta à covid-19 partiu da mobilização dos próprios indígenas, ao reunir dados sobre casos e mortes e organizar arrecadações. Como isso reflete um contexto de desmonte na saúde indígena?
Primeiro, o contexto de desmonte já estava bem claro. Em 2019, quando o ministro [Luiz Henrique] Mandetta assumiu o cargo, já colocou a questão de que iria reestruturar a saúde indígena, tanto que em março ele propõe a extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e isso é revertido com a atuação do movimento indígena no Congresso. Durante 2019, várias medidas já sinalizaram a fragilização do subsistema. Com a reorganização do organograma do Ministério, dentro da Sesai se extinguiu o Departamento de Gestão, e esse é um aspecto estruturante, pois a gestão é federal; vieram várias medidas e notas técnicas da Sesai congelando os gastos com a saúde indígena, com a força de trabalho e com reuniões e controle social. Quando em 2019, aprova-se a lei da Adaps [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, criada com a lei 13.958 de 2019], os 34 Distritos Sanitários de Saúde Indígena (Dsei) são um dos focos da medida. A gente viu a saúde indígena no centro da privatização da atenção primária à saúde, em um cenário que ainda não está muito claro. Quando começa a pandemia, nós pela Abrasco, pesquisadores da Fiocruz e os povos indígenas estávamos muito preocupados por todos esses fatores.
E como você avalia a resposta do governo federal?
A postura e a fala do governo era: “Está tudo sob controle, não precisamos mais de orçamento. Tudo que tinha que ser feito foi feito”. Mas o que era tudo que tinha que ser feito? Eles delegaram para os distritos sanitários a condução da resposta à pandemia. Os distritos não têm autonomia absoluta para a execução financeira e compra de insumos. A postura da gestão federal foi de não dialogar com os parceiros, a academia e o próprio movimento indígena. Muito da resposta foi articulada pelo movimento indígena ativamente, fazendo as barreiras, arrecadando doações, com uma resposta governamental muito passiva e a reboque, diante de um cenário dramático, em que a doença chegava, contaminava todo mundo e começavam os picos de mortes. Não à toa essa primeira onda foi realmente uma calamidade para as populações indígenas. Eram transmissões maciças, não havia testagem e protocolo para os próprios trabalhadores da saúde indígena, que se viram expostos e também vítimas das circunstâncias.
Como a mineração tem afetado a saúde indígena?
É uma repetição dramática de situações de omissão e conivência do Estado com relação aos impactos ambientais e na saúde. O garimpo ilegal, com condições precárias para todos os trabalhadores, gera diversas outras consequências para a saúde, como a contaminação dos rios e a retirada de áreas de floresta que tem a ver com o equilíbrio e a vida dos animais e de outros seres vivos. Ao causar um dano no território, o garimpo gera prejuízos à saúde pela contaminação, seja da água e do solo, e isso vai impactar nos peixes e na produção alimentar. Outra consequência para a saúde é que essa atividade ilegal gera tensionamentos, disputas e violências diretas, como ameaças e assassinatos para a ocupação dos territórios. Temos várias lideranças indígenas ameaçadas, como a Alessandra Munduruku, por conta do garimpo. Existe uma associação dessa atividade com a malária e a covid, e o desmatamento gera infecções respiratórias agudas. E para além desses impactos, a noção de bem estar e saúde dos povos indígenas está diretamente ligada ao território. São lugares sagrados e são impactos que não conseguimos sequer dimensionar. Território é saúde em um sentido amplo e afeta o ser e o estar no mundo.
Como as lutas indígenas pela preservação ambiental (Radis 227) têm a ver com a maneira desses povos compreenderem a saúde?
Pensar o bem-estar e a conexão com o território é intrínseco aos modos de vida dos povos indígenas. São povos que têm um modo de pensar, de organização social e de manejo dos ambientes que valorizam a diversidade, ao contrário do modelo hegemônico extrativista, baseado na monocultura e na destruição. É um modo de viver que preserva a biodiversidade e pensa em como lidar com os impactos no ambiente. É sempre pensada a garantia para as futuras gerações. A própria identidade e a cultura estão ligadas ao território. Como destruir o que te constrói? Não é à toa que eles há muito tempo falam do risco que o mundo está vivendo. Vários povos têm visto sinais dessa mudança e eles correlacionam a esse outro modo de vida crescente que está batendo nos seus territórios. Cada vez fica mais claro — inclusive nas instâncias internacionais — que a solução para a crise climática está na participação ativa dos povos indígenas e tradicionais nas decisões e na valorização dos modos que eles vêm desenvolvendo há muito tempo. Não é à toa que essa é a maior delegação indígena que foi para a COP, e é importante enfatizar a presença de mulheres indígenas, que estão na linha de frente propondo a “cura da Terra”. É outra noção epistemológica de pensamento: não é só a ideia de lutar por “outro mundo”, é curar “esta” terra.
Que saúde indígena queremos?
Eu sou muito otimista e empolgada com as perspectivas dessa área porque acho que estamos num momento de virada e transformação. E isso é resultado das políticas e ações afirmativas, que possibilitaram a presença de indígenas nas universidades, repensando e reconstruindo o pensamento acadêmico nessa área. A produção de conhecimento não pode se dar sem a participação dos indígenas, não só no sentido de “consultar” ou “ver o que eles precisam”, mas como nossos pares e como povos que têm direito à soberania. A área de saúde indígena tem alguns marcos e alguns desafios ainda não superados, como as iniquidades, pois ainda vemos indicadores de que os indígenas são mais impactados em muitos agravos. Se pegarmos a 1ª Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, de 1986, que contou com a presença do [sanitarista] Sergio Arouca, ali estão pilares que são válidos até hoje e necessitam ser reafirmados: o entendimento de que as condições de saúde dos povos indígenas são impactadas pelas relações de contato; de que necessitam do usufruto e da proteção territorial; de que é necessária a garantia de cidadania e a superação da tutela, para entendê-los como sujeitos que sabem o que precisam e têm que participar em todas as etapas das políticas de saúde. São povos que têm conhecimentos médicos que precisam ser considerados. Seja pela omissão do Estado, seja por práticas que já eram utilizadas, a pandemia retomou o uso desses saberes para o cuidado, a prevenção e a cura dos indígenas em relação a seus próprios problemas. O sistema de saúde precisa avançar nesse diálogo.
Indígenas em movimento
Desde o início da pandemia de covid-19, os povos indígenas têm se mobilizado para denunciar a situação de emergência vivida com a chegada do novo coronavírus. Por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, de julho de 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou o descaso do governo federal com a saúde indígena e exigiu medidas para controlar a disseminação do vírus nas aldeias. Os impactos da pandemia são agravados por um contexto político em que avançam pautas que afetam a vida dos indígenas, como o julgamento sobre o Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) e a tramitação do Projeto de Lei (PL) 490 no Congresso.
Mais de seis mil indígenas de 173 povos se manifestaram, em Brasília, em agosto de 2021, no acampamento Luta pela Vida. Na visão de Ana Lúcia Pontes, a tramitação do PL 490 foi “uma tentativa violenta e desrespeitosa de mudar de qualquer modo a política indigenista”. “O que está em ataque direto são os direitos constitucionais indígenas e todo o avanço consolidado não só na Constituição brasileira como em tratados internacionais, como a Convenção 169”, aponta.
Com apoio da bancada ruralista e do governo, o PL foi aprovado em junho na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, depois de ser votado às pressas. “Coloca-se uma urgência de pautas que não deveriam ser urgentes no cenário atual, em que os interessados não são ouvidos e, quando se manifestam contrários, são ignorados”, afirma a pesquisadora. Ela explica que o PL tem diversos ataques embutidos, como: a tentativa de mudar o processo demarcatório; a ausência de consulta aos povos, caso exista “prioridade e interesses nacionais”; o rompimento com a ideia de isolamento voluntário e de respeito ao isolamento de povos de recente contato, ao colocar que se houver suposto interesse nacional esse contato pode ser forçado; o ataque ao direito identitário, ao definir que uma demarcação pode ser revertida se um povo deixa de manter as mesmas características culturais, o que, segundo Ana Lúcia, “é uma deturpação da ideia de identidade cultural”. “O que se vê é uma movimentação que quer aproveitar uma conjuntura de hegemonia no Congresso Nacional e achar um atalho para mudar direitos constitucionais”, pontua. Outra decisão que pode impactar o futuro das demarcações de terras indígenas é o julgamento sobre o Marco Temporal, que iniciou em setembro e aguarda retomada no STF (Radis 227 e 228). “Esse julgamento é uma disputa entre a ideia de que o direito dos povos indígenas é originário e anterior à consolidação do Estado brasileiro e, portanto, não tem um marco datado versus a ideia de que só quem ocupava os territórios ou entrou em litígio até o dia 5 de outubro de 1988 teria direito, o que é ignorar que esses povos foram usurpados e expulsos”, explica. Segundo Ana Lúcia, tanto novas demarcações podem deixar de acontecer quanto demarcações que já ocorreram podem ser revistas, o que gera um grau de insegurança na vida das pessoas. “A garantia de autonomia e vida plena para os povos indígenas depende dos territórios”, resume.
Desnutrição nas aldeias
Os recentes episódios de malária entre os Yanomami foram acompanhados por relatos de desnutrição severa. A gravidade do quadro nutricional e a insegurança alimentar já foram documentados em diferentes estudos, como o I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, entre 2008 e 2009. Segundo nota técnica do GT em Saúde Indígena da Abrasco, publicada em maio de 2021, a desnutrição crônica atinge cerca de 80% das crianças Yanomami menores de cinco anos, e a taxa de mortalidade infantil é 3,7 vezes maior do que nos demais grupos indígenas e 7,8 vezes maior que para crianças não indígenas. [Leia mais em: https://bit.ly/3ocAvy0].
De acordo com Ana Lúcia Pontes, a desnutrição acontece principalmente depois do desmame, quando começa a alimentação complementar, e vai se agravar a partir do primeiro ano de vida. “Existe uma associação também com o alto número de episódios de doenças, como infecções respiratórias agudas e a malária, que acabam agravando a situação e gerando maior mortalidade”, explica.
A falta de proteção territorial, com soberania e recursos necessários para a produção de alimentos, contribui para gerar insegurança alimentar. Como lembra Ana Lúcia, mesmo que exista o rio, não significa que haja disponibilidade de peixe o ano inteiro, o que é agravado ainda mais pela contaminação com mercúrio e outros poluentes. “A situação nutricional já vinha num quadro muito precário, o que a pandemia acirrou”, aponta.
“O contato interfere em tudo isso: na proteção territorial necessária para gerar as condições de produção de alimentos, porque uma das dimensões racistas tem a ver com a desqualificação das práticas alimentares indígenas, ao colocar que a alimentação deles é pobre e ruim e que eles precisam comprar alimentos industrializados”, acrescenta. Ela também observa que a situação territorial dos indígenas no Nordeste, Sul e Sudeste é extremamente grave, porque “os territórios são diminutos, a maioria depende da circulação na cidade para trabalhar e vender produto e isso é necessário para garantir a segurança alimentar”, conclui.
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