Quem acessa o campus principal da Fiocruz no Rio de Janeiro pela Avenida Leopoldo Bulhões, em Manguinhos, acaba em algum momento do trajeto fixando o olhar em um edifício composto por três pavimentos, cuja fachada e paredes são tingidas por uma coloração bordô. O prédio sedia, desde 2004, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, criada em 1985, de sigla EPSJV e afetuosamente apelidada de Poli. Cada vez que alguém se refere à unidade de forma abreviada, porém, acaba incorrendo em um apagamento. Quem foi, afinal, Joaquim Venâncio, que dá nome à Escola Politécnica da Fiocruz?
A história deste personagem, ainda pouco conhecido, revela a importância dos trabalhadores de nível técnico na ciência, considerados subalternos no início do século 20. Nascido em 23 de maio de 1895, Joaquim Venâncio Fernandes era negro e possivelmente descendente de escravizados e cresceu em Minas Gerais, na Zona da Mata, em uma fazenda que pertencia à família de Carlos Chagas. Foi por intermédio do cientista que ele teria chegado à Fiocruz, em 1916, onde se tornou um destacado auxiliar de laboratório. A professora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (Lateps) da EPSJV, Renata Reis, é uma das principais pesquisadoras sobre a história de Joaquim Venâncio, tendo dedicado seu doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) à história dos trabalhadores técnicos — assistentes dos cientistas — na Fiocruz durante as primeiras décadas da instituição fundada em 1900.
Joaquim Venâncio foi um dos personagens estudados por Renata, dado seu protagonismo na história do então Instituto Oswaldo Cruz, nome que a Fiocruz teve até a década de 1970 — lugar onde ele passou não só a trabalhar, mas também a residir até o fim de sua vida, em uma casa construída na Fazenda de Manguinhos, terreno da instituição. “Joaquim Venâncio chegou ao Instituto com 21 anos e permaneceu aqui até morrer [aos 60 anos, em agosto de 1955]. Como ele morava no local de trabalho, eram 24 horas dedicadas à instituição diariamente durante muitos anos”, afirma a pesquisadora, ao revelar traços e marcas das relações de trabalho no Brasil de 100 anos atrás.
Para além das atribuições do cargo de servente, no qual ingressou na Fiocruz, Joaquim Venâncio ampliou seu ofício com a prática e diversificou seus saberes. Anos mais tarde, em 1931, foi nomeado auxiliar de laboratório, nomenclatura que na época já conferia importante distinção na hierarquia institucional. Além do trabalho técnico que contribuía com pesquisas, em algumas ocasiões Venâncio fazia até mesmo a segurança do campus em rondas noturnas, segundo texto publicado pelo historiador e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) Jaime Benchimol, publicado na revista História, Ciências, Saúde — Manguinhos. Como também morava nas terras do Instituto, ele acabava participando de sua guarda e aproveitava para estreitar relações no desempenho dessa jornada.
“Um destes vigias foi Joaquim Venâncio. Quando saía à noite, com o rifle às costas, detinha-se sempre para uma prosa com o pessoal que tratava dos cavalos usados na fabricação dos soros e que morava nas próprias cocheiras, ou com os trabalhadores que habitavam o sótão do pavilhão da peste”, detalha o texto. Já perto do fim de sua vida, em julho de 1955, Venâncio passou a exercer a função formalmente, tendo sido nomeado superintendente de Vigilância Noturna da instituição, conforme consta em seus registros funcionais.
De aprendiz dos Lutz a guru e líder comunitário
Relatos de pesquisadores que estudaram a época de Joaquim Venâncio reiteram a afirmação de que o aprendizado profissional ocorria principalmente de forma empírica, em processos informais, pelos quais eram estabelecidas relações de confiança entre auxiliares e cientistas. No currículo de Venâncio, nada menos do que nomes como os principais expoentes da ciência brasileira, como pai e filha Adolpho e Bertha Lutz, pesquisadores com quem ele trabalhou durante muitos anos, e o próprio Carlos Chagas, dentre outros. Em 1988, Wladimir Lobato Paraense (1914-2012), renomado médico parasitologista e pesquisador emérito da Fiocruz, também publicou um texto sobre Joaquim Venâncio na revista Cadernos de Saúde Pública, onde relatou um pouco de sua trajetória.
No texto, o pesquisador narrou parte de um diálogo seu com Bertha Lutz, no qual falavam sobre as habilidades e vocações do destacado assistente: “Comentando certa vez com Bertha Lutz sua competência e dedicação ao trabalho e também sua espontânea afabilidade, contou-me ela que Venâncio ingressara no Instituto como servente, e uma de suas tarefas era fazer a limpeza do laboratório de Adolpho Lutz. Observador sagaz, apesar de aparentemente desatento às banalidades ao seu redor, Lutz um dia disse a Bertha que procurasse ensinar algumas práticas de laboratório àquele jovem, porque ele deveria tornar-se um técnico de qualidade”.
Um traço marcante da personalidade de Venâncio era sua vocação natural de liderança. Era considerado como uma espécie de líder comunitário para os moradores dos arredores e um guru para seus amigos, outros serventes e auxiliares, que o procuravam com frequência em busca de soluções para o desempenho de suas atividades. “Para a população do morro [área pertencente à Fiocruz, mas habitada por diversos moradores], Joaquim Venâncio era uma espécie de juiz de paz ou patriarca, o que hoje se chama líder comunitário, mas sua influência derivava apenas de sua força moral e de suas qualidades humanas, nunca de qualquer traço de demagogia”, destaca outro trecho da publicação de Paraense.
O médico parasitologista narra ainda uma situação curiosa e atípica e registrada em fotografia cuja guarda é de responsabilidade do Arquivo Nacional: “Nos últimos anos em que Lutz, apesar da idade avançada e das forças diminuídas, ainda realizava trabalhos de campo sobre sapos e rãs, era frequentemente carregado dentro d’água pelos robustos ombros de Venâncio para observar de perto os animais nos habitats naturais”, revela.
A cena é capaz de dividir opiniões, entre os que veem nela uma situação afetiva, de cumplicidade extrema, e outros que entendem haver um comportamento abusivo, que extrapolaria as atribuições funcionais, dada as camadas sociais que diferenciavam o consagrado pesquisador de seu assistente, um homem negro em um país que havia abolido a escravidão há poucos anos. “Essa situação é emblemática por diversos fatores”, pontua Renata, alertando para uma não romantização da cena sem que se reflita acerca das possibilidades de seu real contexto.
À frente do seu tempo
Os anos de investigação também cultivaram na pesquisadora da Poli uma impressão sobre Joaquim Venâncio. Em conversa com a Radis, Renata o descreve da seguinte forma: “Um homem inteligentíssimo, muito firme, pessoa extraordinária. Sabia muito de botânica e de zoologia”. Tido por ela como alguém altivo, muito respeitado e de excelente relacionamento com vizinhos e colegas, detinha um saber técnico apurado por sua vivência laboral, mesmo sem ter tido a oportunidade de avançar no ensino formal. Era especialista especialmente no conhecimento de batráquios, anfíbios como sapos e rãs, amplamente utilizados nas pesquisas em que atuava. Sabia distinguir as espécies até mesmo pelo som produzido por cada uma delas.
“Ele que sabia onde encontrar os animais [utilizados nas pesquisas dos Lutz], conhecia seus hábitos e as formas como se comunicavam. O que ele não sabia era taxonomia [área da biologia dedicada à organização e classificação dos seres vivos] e latim, pois não teve acesso à escolarização formal, mas tinha muitos saberes da vida, saberes vivenciais, ancestrais, que hoje a gente está começando a entender a importância. E ele trouxe isso para cá”, avalia. A tese de Renata relata que a experiência de Venâncio com anfíbios fez com que, a partir de suas observações, ele desenvolvesse um método para diagnóstico de gravidez, por meio da inoculação da urina da mulher em sapos de uma determinada espécie.
Tamanha destreza rendeu-lhe reconhecimento e missões especiais. Certa vez, a própria direção do Instituto recorreu a ele para que fosse atendido um pedido do embaixador da Alemanha no Brasil, que consistia no envio de 12 exemplares de um tipo de perereca estranha e muito rara. Depoimentos contam que ao receber o pedido, Venâncio vestiu suas botas e trajes de pântano, saiu e conseguiu exatamente o tipo solicitado. Enviou tudo especificado: espécie, tipo e habitat, deixando o embaixador maravilhado com o fato de ter conseguido tão rapidamente um tipo de batráquio tão raro. Façanha de quem conhecia muito bem o bioma local.
Em outra ocasião, em 1935, Venâncio chegou a ser convidado pela herpetóloga Doris Cochran, do Museu Nacional dos Estados Unidos, para acompanhá-la e trabalhar com ela no país norte-americano após auxiliá-la em expedições por cidades de Minas Gerais e São Paulo. Mas ele declinou do convite para permanecer em solo brasileiro. Renata acredita que apesar de extremamente astuto e de dar nome a uma unidade técnico-científica da Fiocruz, Joaquim Venâncio poderia ter tido mais reconhecimento ainda em vida. Também em sua tese, a pesquisadora faz a seguinte ressalva: “Venâncio soube aliar sua capacidade intelectual e seu saber tácito, obtendo reconhecimento pessoal tanto dos trabalhadores subalternos quanto dos cientistas, entrando para a história da instituição, ao ter uma unidade técnico-científica batizada com seu nome. No entanto, esse reconhecimento não foi suficiente para que ele ascendesse a uma outra classe”.
Sebastião de Oliveira era pesquisador da área de entomologia. Foi o primeiro médico negro da Fiocruz, tendo ingressado na instituição em 1939. Em depoimento oral colhido em 1987, ele fala sobre esse apagamento. O entrevistador pergunta: “Mas e o Joaquim Venâncio, com o conhecimento que ele tinha na área de classificação, ele não poderia por exemplo assinar os trabalhos, também o nome dele não poderia sair nos trabalhos?”. E Sebastião responde: “Poderia. Só que nem o Lutz nem a Bertha Lutz fizeram isso, né. Entende. Não fizeram isso.” O entrevistador prossegue: “Quer dizer, qual era a oportunidade de uma pessoa como o Joaquim Venâncio conseguir ter uma certa autonomia científica também, né?” Sebastião conclui: “Não tinha a menor chance, na época”, revela outro trecho da tese consultada pela reportagem.
Exposição virtual valoriza trabalhadores técnicos
Um dos desdobramentos da pesquisa de doutorado da docente da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Renata Reis, foi a criação da exposição virtual História dos Trabalhadores Técnicos da Fiocruz (saiba mais clicando aqui). A iniciativa consiste em um espaço virtual destinado a marcos históricos que remetem à origem e aos primeiros anos de existência da Fiocruz. Uma das áreas da exposição dedica-se a biografias dos trabalhadores técnicos, dentre eles, o próprio Joaquim Venâncio.
História ainda não contada
Renata agora se dedica a estudar a vida de Joaquim Venâncio antes de sua chegada à Fundação, em um projeto intitulado: Legado de Joaquim Venâncio — Passado e presente dos técnicos da Fiocruz. “Ainda tem muitas lacunas que acho muito importantes, tanto para a memória desse personagem como para a própria história do trabalho em saúde e do campo da educação profissional em saúde. Joaquim Venâncio é como um símbolo e de certa forma a história dele é a história do trabalho no Brasil”, reflete. Algumas dessas lacunas seriam descobrir ao certo as verdadeiras condições e motivações que trouxeram Venâncio ao Rio de Janeiro e conhecer melhor a história de seus antepassados. A própria relação com Carlos Chagas ainda suscita dúvidas. Para Renata, a história comumente contada aparenta não corresponder plenamente à realidade dos fatos.
“Eu sempre desconfiei da história que contavam sobre Joaquim Venâncio. Cheguei à Escola Politécnica no ano de 2000 e em todos os eventos festivos nos contavam a história como se ele fosse um amigo de infância do pesquisador Carlos Chagas e, então, teria vindo a pedido do próprio cientista, que gostava muito dele, que era seu amigo e que tinham uma convivência fraterna desde a infância, na fazenda da família de Chagas”, revela à Radis. Ela alega, porém, que ao checar a documentação começou a perceber inconsistências em relação às datas e idades entre os dois, pois, por exemplo, quando Venâncio nasceu Chagas já estava indo para a faculdade em Ouro Preto, portanto, eles não teriam crescido juntos.
A pesquisadora pondera sobre o tipo de relacionamento que os dois possam ter desenvolvido: “Acho que a história de Joaquim Venâncio é a história do Brasil, que tem toda essa coisa do mito da democracia racial, da ‘cordialidade’. Tem muitas coisas para a gente olhar sobre o que realmente acompanha essas relações”, aponta. Por outro lado, a pesquisa de Renata revela também que Venâncio dispôs de algumas prerrogativas que poderiam ter relação com os vínculos que mantinha com a família Chagas, como por exemplo a permissão para criar um pequeno rebanho de vacas, mais ou menos umas quinze cabeças, nas terras do Instituto, cujo leite era vendido para moradores vizinhos.
Outras versões acerca da origem de Joaquim Venâncio, como a relatada em depoimento oral por Venâncio Bonfim — um de seus sobrinhos —, dizem ainda que ele e seus dois irmãos teriam crescido órfãos na fazenda dos Chagas e que supostamente foram criados pela mãe do próprio Carlos Chagas, Mariana Cândida Ribeiro de Castro — sobre quem Carlos Chagas Filho admite, em livro de sua autoria, ter utilizado trabalho escravo em suas terras antes da abolição. Indícios que ainda deverão ser mais bem explorados pela pesquisadora em futuras investigações.
Valorização dos trabalhadores técnicos
Renata Reis acredita que a pesquisa que desenvolve e seus desdobramentos possam de alguma forma recuperar a importância histórica de trabalhadores subalternizados na instituição, mas que foram fundamentais para sua consolidação e crescimento nas primeiras décadas do século passado, contribuindo para o que ela é hoje: uma instituição estratégica de Estado no campo da saúde coletiva. Como Joaquim Venâncio, aqui retratado de forma mais aprofundada, diversos outros trabalhadores invisibilizados também teceram importantes contribuições e parte de suas biografias pode ser conferida na exposição virtual Manguinhos de Muitas Memórias, idealizada pela pesquisadora da EPSJV, que propõe uma reflexão a respeito da construção dessa memória: “Que história a gente quer contar? Que memória queremos preservar?”, questiona.
A pesquisadora continua: “Essa é uma disputa na sociedade, nas instituições, e eu acho que estamos nesse caminho de ampliar o olhar, de entender que a história da Fiocruz não foi uma história construída só pelos cientistas, mas que tinham vários outros trabalhadores que também estavam fazendo a história da instituição e suas próprias histórias. E elas nos ajudam a entender muito do presente”. E complementa: “Acho que avançaremos na importância desse olhar sobre essa memória mais ampla, de grupos que não são óbvios e que foram silenciados. É importante estarmos nos movimentando para mudar essa história”.
Renata acredita que, assim como no passado, muitos trabalhadores técnicos ainda estejam aquém do reconhecimento que deveriam ter em suas atuações — mantendo-se à margem das premiações acadêmicas e à sombra de grandes cientistas, legitimamente celebrados, mas entendendo que essa categoria também deveria ter seu espaço nas galerias e nos currículos lattes. “É importante valorizarmos esses trabalhadores técnicos da saúde, que hoje correspondem a cerca de 80% da força de trabalho do SUS”, recomenda.
Desafios de pesquisas históricas
Encontrar informações sobre personagens que viveram no início do século passado e sobre os quais não há um registro adequado de suas atuações requer um esforço de pesquisa a ser destacado. “O maior desafio de investigação foi reunir as fontes documentais que não teriam um lugar específico. Recorri a diversas seções para juntar as documentações e as principais fontes. Eu posso dividir em três grupos de documentação: livros de assentamentos funcionais da instituição do início do século 20 (manuscritos), depoimentos orais de colegas e familiares que citam Joaquim Venâncio e fotografias, em sua grande maioria de autoria do fotógrafo da instituição na época, J. Pinto”, revela Renata.
Uma importante fonte histórica na Fiocruz é o Serviço de Arquivo Histórico, pertencente ao Departamento de Arquivo e Documentação (DAD/COC). Uma das responsáveis pela consulta ao acervo, Nathacha Regazzini fala da importância da existência e preservação desses registros: “Essa documentação representa um legado, tanto pelo interesse para pesquisa histórica, como pela manutenção da história da instituição. É um acervo que não subsidia apenas a pesquisa acadêmica, mas também a produção cultural”, argumenta, ao destacar a realização de peças teatrais, documentários e filmes que ajudam a contar a história pregressa do Sistema Único de Saúde a partir dessa documentação, “servindo inclusive à sociedade”, afirma.
Sobre a EPSJV
A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio promove atividades de ensino, pesquisa e cooperação nacional e internacional no campo da Educação Profissional em Saúde. Oferece cursos técnicos de nível médio, de especialização e de qualificação nas áreas de Vigilância, Atenção, Informações e Registros, Gestão, Técnicas Laboratoriais, Manutenção de Equipamentos e Radiologia, além da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de um Programa de Pós-graduação em Educação Profissional em Saúde. Além disso, edita o periódico científico Trabalho, Educação e Saúde; coordena a Biblioteca Virtual sobre Educação Profissional em Saúde; publica a revista jornalística Poli – Saúde, Educação e Trabalho; edita livros e material educativo sobre suas áreas de atuação, dentre outras atividades de formação. A EPSJV também coordena o Programa de Vocação Científica (Provoc) da Fiocruz, proporcionando a vivência no ambiente de pesquisa para jovens do ensino médio.
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