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Os barcos permanecem atracados na Praia Grande do Bonete, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, desde o início da pandemia de covid-19. Não é por falta de interesse dos turistas que cessou o movimento para conhecer essa que é uma das localidades que fazem parte da famosa Trilha das Sete Praias — a decisão de interromper a atividade turística, principal fonte de renda para os moradores do local, partiu da própria comunidade caiçara, um dos povos tradicionais que habitam a região de Angra dos Reis, Ubatuba e Paraty, entre Rio de Janeiro e São Paulo. “A gente acha que vale mais a nossa vida. É preciso preservar a população tradicional caiçara. Ela pode deixar de existir se uma doença tão arrasadora como essa entrar aqui”, afirma Andrea Souza, caiçara nascida no Bonete e técnica em meio ambiente. 

Um dos trunfos da comunidade caiçara para lidar com a ameaça trazida pelo novo coronavírus é que ali não se chega de carro, somente de barco ou trilha. Ainda assim, os moradores contam que, logo quando surgiram os primeiros casos da doença no Brasil, os turistas que têm casa no local — geralmente oriundos da capital — queriam vir para o Bonete, após as medidas de distanciamento social adotadas no estado, que fecharam comércio e interromperam atividades não essenciais. Para alguns, a quarentena era sinônimo de férias ou feriado. “Diante do início da pandemia, foi feita uma reunião entre os barqueiros que transportam os turistas pra cá e foi unânime a decisão de não trazer mais ninguém enquanto a gente estiver nesse momento”, narra Andrea.

Cercado por Mata Atlântica e de frente para a praia, o território em que vivem os caiçaras é muito procurado por turistas durante os meses de verão e nas tradicionais festas do local, em homenagem a São Sebastião e Sant’Ana. Os moradores da comunidade ressaltam que o cuidado com a natureza faz parte de sua cultura. Em tempos de pandemia, eles aprenderam a ressignificar sua relação com o mar e adaptaram as atividades turísticas, principal fonte de renda para os cerca de 100 habitantes — que sobrevivem com a manutenção das casas de veraneio, no transporte de passageiros, como guias nas trilhas ou com os bares e restaurantes que funcionam na praia. Andrea conta que a relação da comunidade tradicional com os turistas e veranistas sempre foi harmoniosa, apesar de alguns conflitos trazidos por esse contexto da pandemia. “Muitas vezes eles não entendem que esse é o nosso território. Eles ficam um pouco chateados com a nossa posição”, pontua. A caiçara enfatiza ainda que a nova geração que vem ao local “tem muito respeito com os jovens da nossa comunidade e com a nossa forma de viver”.

A conscientização de toda a comunidade e de seus visitantes foi uma ação que partiu da Associação Catifó e do protagonismo das mulheres caiçaras. Catifó é o nome dado a uma semente que os antigos habitantes utilizavam para gerar o óleo levado às lamparinas, nos tempos em que a comunidade não dispunha de luz elétrica — hoje dá nome à associação que reúne moradores e apoiadores da comunidade caiçara e tem sede na escola desativada. Márcia Salgado, educadora e terapeuta corporal que vive no Bonete, relata que, assim que ocorreram as primeiras mortes de covid-19 no Brasil, as mulheres caiçaras convocaram todos os moradores para conversar e construíram uma decisão coletiva e participativa. “A comunidade se uniu a partir de uma mobilização mestre, de suas lideranças. Um barqueiro resolveu parar, os outros perceberam a importância do que ele estava dizendo e apoiaram”, explica.

Cartazes e faixas foram colocados nos principais pontos da comunidade e um bloqueio das trilhas foi organizado, para orientar quem chega e sai. “As mulheres estão à frente das ações contra o coronavírus o tempo todo. Iniciamos uma luta em defesa do povo caiçara e da gestão de seu território”, reforça Márcia. Formada em Comunicação e Artes do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ela frequenta o Bonete há 35 anos e um dia decidiu deixar a vida na capital e vir morar na comunidade caiçara, onde hoje desenvolve atividades educativas com os moradores, como exposições, arte com reciclagem e conversas sobre empoderamento feminino.

No Bonete, a corrida de canoa é uma das atividades da tradicional festa de São Sebastião. — Foto: Agnaldo Rocha (Papa)
No Bonete, a corrida de canoa é uma das atividades da tradicional festa de São Sebastião. — Foto: Agnaldo Rocha (Papa)

Tradição e adaptação

A ameaça do novo coronavírus levou as comunidades tradicionais, como caiçaras, indígenas e quilombolas que vivem na região de Angra dos Reis, Ubatuba e Paraty, a organizarem formas de proteger seus territórios e garantir o sustento das famílias. “O povo caiçara é muito sábio, apesar da maioria de nós não ter faculdade. Temos uma sabedoria de vida e experiência que vem dos nossos antepassados e o instinto de sobrevivência fala muito alto”, diz Andrea, ao ressaltar que esse modo de enxergar a vida ajudou os caiçaras a compreender a importância de respeitar as medidas de distanciamento social para evitar a proliferação do vírus. “Preservando a nossa vida, a gente mantém a nossa cultura, o nosso modo de vida, a nossa relação com a natureza e o mar, com a pescaria, com a limpeza e conservação das praias”, comenta.

Para Eliane Simões, bióloga que trabalha com projetos socioambientais e também já viveu no Bonete, a luta das comunidades tradicionais para exercer a gestão de seus territórios é antiga, mas se fortaleceu diante da pandemia. “A abordagem é que cada comunidade tradicional assuma a gestão de seu território para garantir a sua permanência nele e a continuidade das práticas tradicionais de pesca, cultura e em relação ao turismo, que está posto há muito tempo nessas comunidades”, avalia. Segundo ela, deixar de receber os turistas altera a economia dessas comunidades, mas preserva a saúde de seus moradores e afirma o direito de decidirem sobre seu território com suas próprias regras. 

Sem proteção ao lugar onde vivem e a suas tradições, os caiçaras teriam sua própria existência ameaçada não somente pela covid-19, mas por seus impactos sociais e econômicos. “Se eles saírem de lá, vão se tornar os novos vulneráveis, ocupando áreas periféricas na cidade, com péssimas condições de vida e risco de deslizamento de morro, e vão ser trabalhadores de baixíssima renda, desconectados daquilo que compõe sua cultura e seu modo de ser e de viver”, avalia Eliane. Por isso, é importante a mobilização dos comunitários para evitar a vinda de turistas em tempo de covid-19 e fortalecer a defesa de sua autonomia e tradição. “Proibir a vinda dos turistas durante a pandemia assegura a saúde do corpo e a permanência no território, uma qualidade de vida e um bem viver que é muito próprio deles”, destaca.

— Foto: Agnaldo Rocha (Papa)

Se antes a pesca era o principal meio de sustento dos caiçaras do Bonete, o circuito turístico foi ganhando força com o tempo. A bióloga explica que isso foi o que ocorreu com a maior parte das comunidades tradicionais do litoral, seja porque a atividade pesqueira deixou de ser rentável, por conta da poluição ou da concorrência com a pesca industrial ou porque os jovens têm visto as atividades com o turismo como mais vantajosas. Em seu doutorado em Ambiente e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Eliane estudou a interação entre as populações e os ecossistemas em que vivem. Ela ressalta que o turismo de base comunitária é fonte importante de sustento para esses povos. A atividade ajuda a garantir a preservação do meio ambiente e não se contrapõe à sobrevivência de suas tradições. “As relações com o mar e o território, os laços de parentesco, a forma de viver, o jeito de falar, o modo de interagir com a natureza permanecem”, ressalta Eliane, que vive em São Paulo, mas tem laços familiares com os caiçaras do Bonete.

Para reforçar o apoio às comunidades tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, que incluem quilombolas, indígenas e caiçaras, e foram atingidas pelos efeitos da pandemia de covid-19, o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) lançou a campanha “Cuidar é Resistir”, com apoio do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) em parceria com a Fiocruz. A proposta é arrecadar recursos para compra e distribuição de alimentos, produtos de higiene e itens essenciais. Também pretende reforçar a economia solidária e ampliar trocas de pescado e produtos agroecológicos entre as diversas comunidades, garantindo a segurança alimentar.

Identidade caiçara

A palavra caiçara vem do tupi-guarani (“caá-içara”) e remete às armadilhas construídas com estacas na água para cercar os peixes. Hoje é empregada para designar o conjunto de comunidades tradicionais do litoral das regiões Sul e Sudeste do país, que vivem não apenas da pesca, mas também do extrativismo e do ecoturismo, e têm um conjunto de práticas culturais em comum. Para quem é caiçara, a identidade é “algo que vem de muito tempo”, como conta Andrea, que nasceu no Bonete, há 43 anos, e foi criada pela avó, entre a casa de farinha de mandioca e a colheita do café. “Ser caiçara para mim é um estado de espírito: tem a ver com essa memória de culinária, de cheiros, dos chás que eu tomava na infância. O mais importante é nunca perdermos essas raízes e passar para nossos filhos”, descreve.

Ela deixou a Praia Grande do Bonete para estudar, mas decidiu voltar porque queria criar sua filha, hoje com 15 anos, próxima às tradições familiares. Elas e o conjunto de comunitários, muitos deles parentes, são os responsáveis por organizar as festas típicas do lugar, dentre elas a tradicional corrida de canoa, que ocorre na celebração de São Sebastião, em janeiro. “Faço questão que minha filha tenha esse contato com a natureza e a tradição da dança e da cultura da viola. Em breve ela vai querer sair pelo mundo, mas eu digo a ela para nunca perder sua raiz”, acrescenta.

— Foto: acervo pessoal.

As comunidades tradicionais são também responsáveis pelo cuidado com o meio ambiente, fazem a limpeza das praias e conservam as trilhas. “A população caiçara contribui muito para a manutenção da biodiversidade, de toda a flora e fauna. As pessoas têm um conhecimento que vem dos ancestrais sobre preservar a natureza, algo que muitos não dão importância”, reflete. Andrea conta que a liderança feminina é uma marca do Bonete: as caiçaras estão à frente das atividades artísticas e culturas que têm sido passadas de geração a geração. “As mulheres criam seus filhos, trabalham, lutam e determinam várias coisas dentro da comunidade”, conta.

Recriar-se na comunidade

[Relato de Márcia Salgado, educadora social na Praia Grande do Bonete, sobre o trabalho artístico com as mulheres e meninas caiçaras]

“Muita coisa acontece onde encontramos espaço para criar, ser e estar. 

De um balão de papietagem que ganhei, tivemos ideias de reproduzir coisas deste lugar, de dentro da gente. Pesquisa de campo, na internet, na mão, pelo binóculo, foto, vídeo… Um balde de fantasias criaram cenários e personagens. As mesas vazias viraram tabuleiros… A trilha ganhou uma insistente escultura feita espontaneamente por uma das meninas. A escultura quando desmanchada por alguém sempre era refeita por uma de nós. Com as mulheres mais novas, orientei a fazer uma colcha de retalhos a partir de um mostruário de tecidos que ela ganhou. As meninas praticavam as terapias corporais que recebiam ou me viam fazer em meus pacientes.

Logo que vim morar aqui, ouvi de uma das meninas: “Ma [como Márcia é chamada], aqui não tem nada pra gente fazer”. Ela se referia a ampliar as relações sociais e se divertir com algo diferente. 

Meu corpo trazia os hábitos de minhas experiências no serviço público de São Paulo. Tive a ideia de limpar um canto do caminho. Foram semanas, tirando entulhos como plásticos, vidros, loucas, telhas e pedaços de paredes, junto de meu amigo e afilhado caiçara, Jacá. Depois de limpo, observamos a forma do pequeno terreno, fomos para casa e chegamos à conclusão de que ali tinha a forma de um peixe. Propus que espontaneamente fizessem traços, retos ou curvos. Depois, elas aproveitaram isso para dar elementos ao peixe. Decidimos que metade do peixe seria um jardim e a outra uma horta comunitária gerida pelas meninas. O “Be” perguntou se mesmo sendo o “Jardim das Meninas”, ele e outros poderiam participar. Disse que sim, se elas concordassem.

Soube depois de tudo brotando, que aquele fundo de terreno era sobra do quintal de um gringo (cidadão de fora) que tem casa de veraneio aqui. Como protocolo, anunciei pedindo parceria. Sem chance, fomos convidadas a tirar tudo que plantamos. Tiveram o terreno limpo e não nos ressarciram pelos gastos e trabalhos. E falamos muito sobre história, resistência e ocupação; cultura, direito e desvalorização; luta e vontade. 

Ficamos mudas. Levamos as mudas para casa.”

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