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Ao se defrontar com este título o leitor atento deve estar se perguntando: por que “guerras”? Não é desproposital! A guerra da Ucrânia enche todas os noticiários de TV e páginas de jornais e revistas, aqui e no mundo todo. Mas dezenas de outras guerras estão em curso no mundo, com muito menos apelos porque não estão ocorrendo no coração do Ocidente, a Europa, mas nas periferias desgraçadas deste vasto mundo, afetando sensivelmente a saúde global.

Contudo, comecemos pela guerra da Ucrânia. Este conflito tem recebido múltiplas interpretações de especialistas em geopolítica internacional, de estudiosos a diplomatas na ativa ou aposentados, ativistas e sociedade civil, que oferecem um leque de possibilidades interpretativas e explicações. Um retorno à Guerra Fria? Etapa já ultrapassada, porque o que estamos assistindo é uma guerra quente, com muitos bombardeios e perdas de vida, angústia, sofrimentos pessoais, associados a um golpe profundo no multilateralismo e, para alguns, o início do desenho de uma nova ordem política mundial, que começou mal, pois não pela mesa de negociações, mas pelo fogo dos canhões.

As consequências que já se fazem sentir: muitas mortes de militares, mas também de civis inocentes; número crescente de refugiados e deslocados; racismo evidente no tratamento desigual aos não brancos nas fronteiras; grandes dificuldades em albergá-los adequadamente; colapso do sistema de saúde ucraniano e pressão sobre os sistemas dos países vizinhos; aumento da instabilidade global; forte impacto na economia, incluindo a elevação de preços de produtos essenciais no mundo todo; ameaça de guerra nuclear; além da demonstração, a mancheias, das entranhas de um multilateralismo enfraquecido — que já se mostrara no enfrentamento da pandemia.

O cenário epidemiológico da região do Leste europeu — onde estão as mais baixas coberturas vacinais da Europa — já preocupava pelo avanço da variante ômicron. A este alastramento da covid-19, se somarão feridos de guerra, refugiados e todos que precisam dos sistemas de saúde ucraniano e vizinhos, que ficarão totalmente comprometidos.

Uma nova leva de refugiados e deslocados pela guerra, agora ucranianos e não mais desgraçados do norte na África (que vem transformando o Mediterrâneo num grande cemitério), passaram a cruzar as fronteiras dos países vizinhos, particularmente Polônia e Romênia, e a União Europeia apressou-se a declará-los benvindos, diferente do que faz com os africanos fugidos das guerras.

Os efeitos na saúde mental serão sérios e duradouros. Aqueles diretamente envolvidos no conflito estarão em risco imediato de transtorno de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e outras condições relacionadas, incluindo o uso indevido de álcool e drogas, que também aumentarão.

Todas estas questões angustiantes na guerra da Ucrânia se aplicam perfeitamente às guerras esquecidas do Sul Global: o prolongado conflito na Síria e o que vem ocorrendo do Afeganistão a Mianmar, do Iêmen à Etiópia, e na Palestina, Somália e diversos países da África sub-Sahariana (como Burkina Faso, Mali e Nigéria). Pelo menos outros 28 países passam por conflitos ou registram combates armados neste início de 2022; segundo os últimos números divulgados pela ONU há cerca de 70 milhões de pessoas atualmente deslocadas devido à guerra.

Não é casual que os piores índices de saúde, a letalidade da pandemia ou a fragilidade dos sistemas de saúde na resposta às necessidades sanitárias de suas populações se encontrem exatamente nestes países, e certamente os conflitos armados neles vigentes são componente importante das causas dos problemas apontados.

Inocentes são, depois dos militares, os mais afetados: crianças, mulheres e idosos, que não possuem qualquer possibilidade de defesa. A ruptura dos sistemas de saúde causada pelos conflitos armados é uma das mais terríveis consequências da guerra: afeta a atenção imediata à saúde (em postos e hospitais) em geral e de doenças crônicas — como diabetes e câncer — e a vacinação, e sua recuperação implica em tempos longos e recursos financeiros, geralmente indisponíveis nos espaços fiscais dos países envolvidos, inclusive pelos gastos militares realizados.

O transporte bloqueado, o fluxo de bens essenciais de saúde interrompido, e a falta de mobilidade de equipes de saúde e pacientes, também impactam a saúde pública, trazendo insuficiência de medicamentos e fechamento de serviços. A interrupção de acesso à água potável e saneamento pode aumentar a propagação de doenças infecciosas e a deficiência no suprimento de alimentos pode levar crianças e adultos à desnutrição.

Além de o custo para a vida humana ser alto, uma invasão militar também causa impactos ambientais duradouros: vitimizam a biodiversidade e os ecossistemas e causam poluição e contaminação do ar, do solo e da água. Além de colapsar infraestruturas essenciais, como sistemas de água, esgotos e energia, as guerras paralisam os sistemas de gestão ambiental no exato momento em que milhares de pessoas lutam para sobreviver. O aumento da pressão por recursos e a ausência de controle são motivos que tornam o meio ambiente vítima silenciosa das guerras.

Mitigar danos de saúde nas guerras é insuficiente. A única solução é cessá-las.

* Professor Emérito da Fiocruz; Diretor do CRIS/Fiocruz
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