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A plateia fica em silêncio com o anúncio de que a apresentação vai começar. Todos os olhares se voltam ao palco, as conversas cessam, uma ou outra pessoa solta um “psiu” para silenciar as que ainda murmuram. Quando só dá para ouvir as respirações, o maestro Leandro Gregório empina a cabeça com um olhar sério e ergue as duas mãos, à altura do peito. A pausa indica que a música vai começar e quando o maestro abaixa os braços e começa a reger com movimentos suaves, como se dançasse uma valsa, as vozes preenchem o ar e começam a “bailar” juntas.

De camisa cor-de-rosa-choque, o Coro LGBTI+ do Rio de Janeiro — Arco-íris por Prazer encanta as mais de 300 pessoas da plateia do Teatro Odylo Costa Filho, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Os naipes, como se chamam os grupos que resultam da divisão de vozes — como em um jogo de cartas, simbolizam famílias — dividem-se como se estivessem em uma escada sonora. As vozes dos baixos e barítonos parecem surgir do chão para dar o suporte aos colegas coralistas; são timbres graves que abraçam. Enquanto isso, tenores e contraltos são os responsáveis pela maior parte da melodia, dando toques aqui e ali mais graves ou mais agudos. Já as sopranos são como o açúcar que vem por cima, dão brilho ao arranjo alcançando as notas mais agudas.

Um naipe complementa o outro, assim como a harmonia depende de todas as vozes, abraçando as diferenças de timbres. O canto coral representa a unidade — um depende do outro — e amplifica o som, o que apenas uma voz não conseguiria alcançar.

Quando saem do palco, na coxia (área em que os artistas se preparam para entrar), a formação em fila se desfaz e eles comemoram a apresentação, pulando, se abraçando e parabenizando uns aos outros. A festa que o grupo faz demonstra a ligação entre eles, a solidariedade e o sentido de coletividade. 

Radis entrevistou representantes desse e de outros dois coros para compreender como o canto coral pode ser uma prática de promoção da saúde mental, em especial para populações vulnerabilizadas, como pessoas de favela, LGBTQIA+, em situação de rua, idosas ou em sofrimento mental.  

Coro Arco-íris por Prazer durante espetáculo musical Siriocra - Show da Diversidade. — Foto: Analícia Barbosa.

Coro Arco-íris por Prazer durante espetáculo musical Siriocra – Show da Diversidade. — Foto: Analícia Barbosa.

Cidadãos Cantantes

“Choro virou alegria”

Em uma rua de São Paulo, um grupo animado canta ao lado de pessoas tocando instrumentos de percussão e um boneco gigante (típico do carnaval de Olinda), batizado de Paulo Freud — em homenagem a Paulo Freire e Sigmund Freud. Eles são os Cidadãos Cantantes, um grupo de canto coral cênico em que os integrantes se descrevem como “diversos”: pessoas em sofrimento psíquico, com deficiência (PcD), em situação de rua, sem teto, idosas, LGBTQIA+ ou estudantes. Em comum, o amor pelo canto.

A cantoria na praça Franklin Roosevelt, no bairro da Consolação, em frente ao Cine Satyros Bijou, finalizou a participação do grupo no projeto Cinema e Psicanálise nas Brechas pautando a luta antimanicomial. “Tem que acabar com esta história de negro ser inferior. O negro é gente e quer escola, quer dançar samba e ser doutor”, entoavam. Para além do ato de cantar, o grupo acredita que o repertório precisa ter um sentido político, ao tocar em temas como a valorização da ancestralidade, o contato com a terra e as lutas antirracista e antimanicomial.

Por esse motivo, outra música que cantam veio de uma integração com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). “Choro virou alegria, a fome virou fartura, e na festa da colheita, viola em noite de lua”, celebram por meio da música a luta pela terra e comida saudável, algumas de suas bandeiras.

Os ensaios acontecem no Centro de Referência da Dança, sob a regência do maestro Júlio Maluf. O núcleo de apresentações é composto por aproximadamente 35 pessoas. Já foi premiado pelo Ministério da Cultura (MinC), em parceria com a Fiocruz, no “Loucos pela Diversidade” e teve sua trajetória selecionada para ser contada no Festival Internacional Global South Arts and Health, no Egito, em 2023. O projeto nasceu em 1992, nos Centros de Convivência e Cooperativa (Cecco), em São Paulo. A proposta era fazer intercâmbio entre saúde, arte e direitos humanos. 

O principal incentivo para as pessoas que querem entrar no grupo é a promoção da saúde mental. Cris Lopes, psicóloga sanitarista, idealizadora e coordenadora do Cidadãos Cantantes, explica que o coro sempre esteve aberto a todas as pessoas, independentemente de diagnóstico ou vulnerabilidade. Por meio do canto coral, os integrantes se soltam e se sentem livres para ser quem são, conta. “Saúde mental não é igual a menos depressão, menos ansiedade, menos loucura. A gente trabalha na dimensão de que a loucura é necessária, a loucura que transgride, a loucura de ter coragem de dizer o que pensa”, reflete.

O Cidadãos Cantantes tem a compreensão de saúde mental como “bem viver”. Cris relata que vários coralistas que estão em sofrimento psíquico e tinham necessidade de tomar muitas medicações hoje em dia reduziram; outros deixaram de ser reincidentes em internações. “Houve uma melhora na qualidade de vida das pessoas, e a gente atribui não só ao cantar, mas ao estar junto. São esses encontros, a possibilidade de trocar e ter prazer”, aponta a coordenadora.

“Saúde mental é essa condição de coragem de estar no mundo, um mundo tão avesso à diversidade. É nessa medida que a gente trabalha, a partir do prazer e de assumir a emancipação”, afirma. Segundo Cris, para participar do coro, “não precisa ser afinado ou ler partitura”: “Precisa estar inteiro e inteira.”

O grupo trabalha com a ideia de que a alegria é revolucionária, pautados no pensamento do filósofo Spinoza, para quem a alegria não é apenas um sentimento passageiro, mas um potencializador para a ação e a superação de limites.

Produção de vida

Um dos pontos altos da apresentação dos Cidadãos Cantantes é o solo de Aliane Sousa, de 35 anos. A voz aguda, cantando no estilo lírico, encanta a quem assiste. Por ser paraense, ela resgata as raízes indígenas presentes no Norte do país com a música Naiá, que narra o mito amazônico da Vitória-Régia, uma indígena que se apaixona pela Lua (Jaci) e deseja se tornar uma estrela, mas acaba se afogando no rio e sendo transformada na planta que é chamada de “estrela das águas”.

Quem se encanta com a voz doce e forte nem imagina que antes de 2020, quando ela conheceu o coro, estava em situação de rua e dependente química. Aliane começou a usar drogas sintéticas quando morava em Portugal, em 2013. Após golpes de falsas propostas de trabalho, a jovem, com uma filha pequena, precisou morar em abrigos em São Paulo. A situação em que vivia, cantando nas esquinas para se sustentar, fez com que perdesse a guarda da filha Sofia e fosse viver nas ruas, no que define como o pior estado em que já se encontrou.

No Cidadãos Cantantes, Aliane encontrou uma nova perspectiva dentro da música, arranjou um novo companheiro e foi morar em uma ocupação. Quando descobriu a gravidez do filho Joaquim, decidiu que iria realizar o tratamento para a dependência química. Hoje, faz todo o acompanhamento pelo SUS e continua trabalhando com música em eventos, além do canto coral. 

Ela destaca que, além de cantar junto, dentro do coro é possível conversar sobre diversas temáticas. “Tem rodas de conversa em que a gente pode se expressar. Antes do Cidadãos Cantantes, eu tinha medo de falar”, relata. Sobre a escolha do repertório político, Aliane declara que: “A gente tem que fazer alguma coisa. O que a gente pode fazer? Fazer música, porque a música conscientiza”.

Outro coralista também define que está vivendo da melhor maneira que pode. Paulo César Moreira, 51 anos, técnico em contabilidade, cantor e compositor, já enfrentou cinco internações psiquiátricas com diagnósticos de bipolaridade e esquisofrenia, além da dificuldade em lidar com a homossexualidade por causa da religião em que foi criado. Ele também passou cinco tentativas de suicídio, até conseguir se estabilizar em 2015.

Atualmente, Paulo consegue lidar melhor com suas angústias e diz que seus diagnósticos não o definem. Ele expressa seus sentimentos por meio das composições que foram musicalizadas. Uma de suas letras está no repertório do Cidadãos Cantantes. Ele afirma que a convivência com os colegas de coro “é o máximo”: “É uma família”. O coralista define a relação entre eles como a formação de uma comunidade em que todas as pessoas se ajudam e se cuidam. “Eu converso com todo mundo. É uma relação de amizade mesmo, de irmandade”, completa. 

Cidadãos Cantantes no Espaço das Artes. Paulo César e Aliane cantam à frente do grupo. — Foto: Acervo Cidadãos Cantantes.

Cidadãos Cantantes no Espaço das Artes. Paulo César e Aliane cantam à frente do grupo. — Foto: Acervo Cidadãos Cantantes.

Para além do lazer

A musicoterapeuta Lilian Cunha, educadora musical, pedagoga, pós-graduanda em Neurociências pela Faculdade Famart e pesquisadora no Laboratório de Psiquiatria da Infância e Adolescência (Lapia/UFRJ), explica que a música tem uma grande potência terapêutica porque, por meio dela, é possível acessar o inconsciente. 

Contudo, quando se fala sobre o canto coral, além dos elementos que a música traz para promover o bem-estar, existem outras variantes que também podem proporcionar efeitos positivos na saúde mental e física. Lilian elencou alguns, como socialização, melhoria da cognição e da respiração, redução do estresse, capacidade de expressar as emoções, trabalho de memória e linguagem, além da prática de atividades psicomotoras. “Tem pessoas que não conseguem se encontrar em grupinhos. Mas dentro de um coro, ela começa a ser uma família porque ensaia toda semana”, afirma. 

Um estudo de Lei Feng, do Departamento de Medicina Psicológica da Universidade Nacional de Singapura, apontou que o canto coral auxilia na melhoria da saúde e como prevenção do declínio cognitivo. A pesquisa observou que os grupos de atividade com canto coral promoveram interações sociais, senso de pertencimento e construção de amizades ao longo do tempo.

O grupo Coro América, que mapeou 270 mil coros nos Estados Unidos, realizou um estudo sobre o impacto do canto coral ao entrevistar coralistas do país. Dentre os resultados, 70% dos participantes relatam que o canto melhorou suas habilidades sociais em outras áreas de suas vidas, além de 73% dizerem que se sentem menos sozinhas, segundo o Laboratório Internacional de Artes e Mente [International Arts + Mind Lab, ou IAM Lab]. Lilian também cita um artigo do Royal College of Music (conservatório musical da Inglaterra) que apontou que o canto coral baixou os níveis de cortisol (hormônio que regula a resposta ao estresse), estimulou a serotonina e a dopamina (hormônios que estão ligados à felicidade) e, ainda, aumentou níveis de imunoglobulina A (anticorpo importante para a proteção contra infecções).

Muito além da música, Arco-íris por Prazer é uma família que abraça a diversidade. — Foto: Ana Moura.

Muito além da música, Arco-íris por Prazer é uma família que abraça a diversidade. — Foto: Ana Moura.

Arco-íris por Prazer

“Por isso uma força me leva a cantar”

Uriel Barbosa trabalha como gestor de tráfego. No Coro LGBTI+ do Rio de Janeiro — Arco-íris por Prazer, ele ocupa a fileira da frente do naipe de tenores do coral. Ele é um homem trans, negro de pele clara, cabelos cacheados, óculos e olhos claros e soma sua voz ao coro cantando a música “Força Estranha”, de Caetano Veloso e eternizada na voz de Gal Costa. “Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha”, afirmam as vozes.

Assim como o Cidadãos Cantantes, o Arco-íris por Prazer também tem repertório político. Eles cantam músicas de artistas LGBTQIA+ e que falam das suas dores. Foi por isso que Uriel, uma pessoa que tinha dificuldade de se relacionar com outros, resolveu participar do projeto. “Eu estava numa etapa da minha vida me recuperando de questões emocionais, sentia muita ansiedade de estar no meio das pessoas, por causa de situações que me machucaram e me fizeram me isolar muito”, desabafa.

A história de Uriel é semelhante a de outros coralistas que encontraram no grupo um espaço de acolhimento, livre de preconceitos. “Há anos eu vinha buscando trabalhos e formas de existir em que pudesse estar o mais isolado possível, porque as crises eram muito paralisantes. Agora isso não é mais um problema. Há um leque muito maior de coisas que eu posso fazer”, relata.

Para além do coro, Uriel realiza acompanhamento terapêutico há vários anos, mas foi no Arco-íris por Prazer que encontrou um espaço seguro para exercitar a socialização. “A gente tem um sentido de família, uma comunidade muito forte em que a gente se comunica. E foi uma situação em que pude ganhar novamente essa confiança em mim mesmo”, explica.

Antes do coro, Uriel gostava de cantar e tocar sozinho em casa ou com familiares, mas nunca tinha participado de nenhum espaço profissional ou de estudo de música. O Coro Arco-íris por Prazer reúne pessoas diversas, alguns que nunca cantaram ou fizeram aula, e outros que já são até professores de canto. Com isso, Uriel começou a ter uma nova perspectiva. “É um lugar que me permite conviver com a arte de forma mais séria e comprometida e até me imaginar cantando profissionalmente algum dia”, descreve.

Diversidade

Mais de 70 pessoas fazem parte do Coro Arco-íris por Prazer, que se apresenta em eventos, como lançamentos de livros, audiências públicas e atividades de conscientização contra a LGBTQIA+fobia. São pessoas trans, não-bináries, lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, assexuais, demissexuais, andróginas, aliados e mães de pessoas LGBTQIA+. Dentro da sigla, ainda estão os recortes interseccionais de pessoas negras, idosas, jovens, periféricas, com deficiência, e o projeto tenta dar espaço para todas, todos e todes (identificação neutra de pessoas não-binárias).

No coro, a divisão de naipes não se dá pelo gênero, mas pelo conforto vocal. O regente-geral e coordenador artístico do grupo, Leandro Gregório, afirma que “a classificação vocal é do lugar de comodidade, de saúde e de conforto”. Ele explica que é possível que mulheres cantem no naipe de tenores, tradicionalmente masculino, e homens cantem como contralto, tido como feminino. Ele também chama atenção para a questão da diversidade, como pessoas trans e pessoas não-binárias. “O hormônio [utilizado por pessoas trans] altera vocalmente e vai ser encaixado sempre pelo critério do conforto”, acrescenta.

O coro surgiu na década de 1990, ligado ao Grupo Arco-íris de Cidadania, no Rio de Janeiro. Porém, alguns anos após seu início, teve as atividades encerradas, até que foi retomado em 2023. As chamadas para integrar o projeto deixam bem claro que, tendo ou não experiência musical, todas as pessoas são bem-vindas.

Nada a temer senão o correr da luta. Nada a fazer senão esquecer o medo”, diz um trecho da música “Caçador de Mim” de Milton Nascimento, que faz parte do repertório do coro, e se aplica à realidade do grupo, que une pessoas na superação do medo e do preconceito. “É um coro que tem propósitos muito além da música. No princípio, criamos um espaço intermediário pela questão do gosto pela música, mas ele acaba se impregnando de outras questões, como o convívio, a saúde mental e a possibilidade de criar novos vínculos”, descreve Leandro.

“O coro contribui para que cada LGBTQIA+ entenda o que está além dele mesmo e para que assuma uma responsabilidade com o outro”, comenta. O próprio maestro, que é professor na Escola de Música Villa-Lobos do Rio de Janeiro e também regente do coro Madrigal do Villa, escolheu fazer parte do grupo por se identificar com a proposta. 

Leandro sentia falta de algo para além do que a música em uma estrutura acadêmica poderia dar. Como educador, queria fazer parte de um espaço que proporcionasse qualidade de vida e garantisse acesso à arte e à cultura. “Para além do aspecto educacional, o coro tem uma possibilidade enorme de [promoção de] saúde mental, de acolhimento, convivência e militância”, sintetiza.

Na avaliação da musicoterapeuta Lilian Cunha, um grupo como esse atua como “um espaço de existência e de resistência”. Para ela, a identificação do indivíduo fica muito mais forte, pois a pessoa encontra um lugar em que pode ter voz e ser ouvida. “É um espaço de subjetivação muito potente”, define.

Além do canto coral, o Serenata d’Favela também inclui aulas de ballet, orquestra, fotografia, entre outras. — Foto: Ana Luzes.

Além do canto coral, o Serenata d’Favela também inclui aulas de ballet, orquestra, fotografia, entre outras. — Foto: Ana Luzes.

Serenata d’Favela

“Eu só quero é ser feliz”

No palco, embaixo de refletores com luzes coloridas, o espaço é ocupado por crianças e adolescentes de todos os tamanhos usando a camisa do projeto Serenata d’Favela. A maioria é de negros, enquanto os cabelos estão orgulhosamente preparados para a apresentação: tranças, babyhair, cachos e blacks. Porém, são os sorrisos que mais chamam atenção enquanto fazem passinhos (estilo de dança no funk), ao som do solo da música Baile de Favela, de Mc João.

O medley (junção de várias músicas) continua com o icônico Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca: “Eu só quero é ser feliz. Andar tranquilamente na favela onde eu nasci. É! E poder me orgulhar. E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. 

Luciene Pratti (Lu, como gosta de ser chamada), fundadora e diretora do Instituto Serenata d’Favela (ISF), em Vitória (ES), diz que no começo do coro teve dificuldade em aceitar que os alunos cantassem funk, com letras pesadas. Ao longo do processo, foi percebendo que as crianças e adolescentes queriam cantar aquilo que vivenciavam, algo mais próximo da sua realidade. Agora, o ISF trabalha com funk como forma de resistência, assim como acontece com as outras escolhas do repertório, que abrange rap, MPB, samba, rock, gospel e pagode.

Professora de uma escola no Morro do Quadro, na capital capixaba, ela percebeu que seus alunos tinham grande afinidade com a música. Assim surgiu o coro em 2009: no princípio uma atividade não tão profissional, já que Lu não tem formação musical, mas sabia que um projeto com as crianças poderia ocupar o tempo delas fora da escola e dar um estímulo para o futuro. “A música é como recurso e motivação para o menino ver sentido em estudar e ter futuro, ter perspectiva dentro de uma favela”, ressalta.

“A estrutura não é para todos. Um menino dessa realidade não acreditava no que se aprende na escola, que a educação vai mudar [a vida] e tudo vai ficar bem”, acrescenta. Já com a música, os coralistas podem criar novas formas de ver a realidade e o seu futuro.

Um exemplo é César MC, “cria” do Morro do Quadro, que ingressou no ISF em 2017, quando ganhou um concurso de slam (poesia falada). A entrada de César coincidiu com a profissionalização do ISF, que passou a ter uma sede e também a oferecer aulas de música e dança. Ele levou para o coro a rima campeã do concurso, chamada Canção Infantil.

O compositor afirma que sua música é uma resposta à vida. “Eu brincava de polícia e ladrão há um tempo atrás, hoje ninguém mais brinca, ficou realista demais”, diz a letra. Ele questiona: “Como é que a gente mantém os sonhos coloridos como as histórias infantis que a gente escuta? Como é que a gente mantém o nosso nível de imaginação positivo naquele lugar em que a gente está sendo confrontado com uma realidade tão complexa?”. César diz que encontrar o coro em sua comunidade, cheia de crianças querendo contar suas vivências, fez com que ele aprendesse muito mais do que poderia imaginar.

“Alguns olham como uma música triste, às vezes violenta demais, que não deveria ser cantada. Eu acredito que a vida é isso. E cantar, às vezes, é a única coisa que a gente consegue fazer juntos”, completa o cantor. 

Hoje, o instituto atende mais de 300 pessoas. Além do canto coral, o projeto inclui aulas de ballet, orquestra, fotografia, entre outras. “Nós não somos um projeto de canto coral apenas, porque a criança não vai só. Ele vai com a família, a história e tudo o que precisa”, ressalta Lu. O ISF também acompanha os estudos, a saúde e as famílias dos alunos, além de ofertar vagas do programa Jovem Aprendiz, para incentivar a entrada no mercado de trabalho.Uma das músicas do repertório faz lembrar as dores de comunidades marginalizadas. A canção “Suíte do Pescador”, de Dorival Caymmi, fala de esperança e fé. A realidade dos pescadores da canção encontra um paralelo com a vida dos trabalhadores que voltam para casa em segurança. As crianças cantam: “Meus companheiros também vão voltar. E a Deus do céu vamos agradecer”.

Benefícios do canto coral

  • Estímulo da memória e atenção 
  • Potencial de retardar o declínio cognitivo
  • Fortalecimento da empatia e cooperação 
  • Redução do estresse e da ansiedade 
  • Sentimento de realização 
  • Melhora da postura corporal e coordenação motora 
  • Combate ao isolamento social

Fonte: Lilian Cunha.

Coral em Centenário da Fiocruz, em 2000. — Foto: Acervo Coral Fiocruz
Coral em Centenário da Fiocruz, em 2000. — Foto: Acervo Coral Fiocruz

Coral Fiocruz: Escolher estar bem

“Quando as pessoas procuram o coral, elas têm dentro de si uma vontade de se fazer bem”, afirma, com um sorriso no rosto, Maria Clara Barbosa, coordenadora do Coral Fiocruz. A atividade de cantar faz bem, mas o principal passo é a escolha da própria pessoa para se sentir melhor. 

Maria Clara ressalta que uma das principais características dessa atividade é a horizontalidade. “Você vê o cara que trabalha no almoxarifado sentado ao lado do pesquisador. E quem sabe quem canta melhor? Ninguém sabe. Todos têm que cantar juntos para o coro ficar bonito”, declara.

O Coral Fiocruz existe desde 1999 e é aberto para toda a comunidade da instituição. Hoje, o coro do Rio de Janeiro conta com mais de 70 participantes. Maria Clara lembra que o mundo em que vivemos “é tudo na telinha” e, por isso, o canto coral integra as atividades do Programa Fiocruz Saudável, como um espaço de troca e contato. “Você pode vir, sentar do lado, dar a mão e cantar: isso é uma coisa que não tem preço. Realmente eu vejo na expressão delas o resultado desse trabalho”, relata sobre como o bem-estar pode ser transformador.

Outro potencial do coro é promover saúde para o trabalhador da saúde. Maria Clara ressalta que tem pesquisadores da Fiocruz que estão trabalhando para a promoção da saúde de toda a população — como na fabricação de vacinas — e que também precisam de cuidado, também precisam de saúde e bem-estar, como o coro proporciona.

Pra quê cantar?

“Ninguém vai poder cantar”, foi o que a coordenadora pensou quando foi decretado o lockdown no início da pandemia de covid-19, em 2020. Como professora de música e pessoa responsável pelo coro, ela imaginou que, pela gravidade da situação global, cantar era a última coisa que as pessoas iriam querer fazer. 

O coro deu continuidade aos ensaios por meio de videoconferências e realizou apresentações pelo YouTube, gravando a parte de cada um individualmente e depois sincronizando. As apresentações tiveram um alto engajamento e muitos comentários positivos, foi aí que Maria Clara percebeu que as pessoas precisavam de esperança e a música podia ser um veículo. 

Ela diz que as pessoas do coro constantemente agradeciam pela atividade, uma vez que as pessoas estavam em isolamento. “Aquela coisa de você acordar, ficar dentro de casa o dia inteiro, sem saber para onde vai, o que vai fazer, quando sair na rua é de máscara”, relembra sobre como foi desolador.

A gente voltou cheio de ideias

Desde o retorno das atividades presenciais pós-pandemia, em 2023, o coro iniciou novos projetos. O primeiro é o trabalho musical individual, para que os coralistas possam crescer vocalmente. “Esse trabalho individual deu para cada pessoa do coro, além dessa igualdade que eles já têm, uma identidade própria e uma evolução musical muito grande com isso”, afirma.

A outra novidade é a integração do coro com os trabalhadores surdos, também do Projeto Fiocruz Saudável, com o Comitê de Acessibilidade. “Fizemos apresentações lindas com os surdos cantando com linguagem de sinais”, se empolga Maria Clara e avisa que o “trabalho lindo” em breve estará pronto para ser lançado no YouTube.

Serviço:

Regência: Paulo Malaguti Pauleira 

Coordenação: Maria Clara Barbosa

Ensaios: terças e quintas-feira, às 12h, na Tenda da Ciência/Fiocruz Manguinhos

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