Sem o aval do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Ministério da Saúde anunciou as novas regras para o repasse de recursos à atenção primária, com o lançamento do programa Previne Brasil (12/11). O dinheiro que os municípios recebem para prover a atenção básica passa a ser calculado com base na quantidade de pacientes cadastrados na Estratégia Saúde da Família (ESF) e nas unidades básicas e não mais de acordo com o número de habitantes. O novo modelo de financiamento foi apresentado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e aprovado por representantes de gestores municipais e estaduais, na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), em 31/10, com a participação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). As alterações foram reunidas na portaria 2.979 (12/11), que lançou o Previne Brasil. Contudo, para organizações do movimento sanitário, as mudanças não consideraram o controle social e podem descaracterizar os princípios da Saúde da Família.
A perda atingirá principalmente municípios urbanos, em que a ESF teve mais dificuldades de se implantar de forma mais efetiva
Luciana de Lima
Até então, o Piso da Atenção Básica possuía um valor fixo (chamado PAB Fixo) — calculado de acordo com a população do município — e outro variável (PAB variável), que leva em conta a implementação de estratégias como Saúde da Família e Saúde Bucal. As novas regras consideram a quantidade de pessoas cadastradas pelos serviços de atenção básica, além de indicadores de desempenho. No discurso de apresentação da proposta, na reunião da CIT (31/10), Mandetta afirmou que o foco é gerar uma “competição saudável” entre os municípios e “medir, financiar, cobrar, trazer os resultados”. De acordo com o Ministério da Saúde, o governo federal vai distribuir R$ 2 bilhões a mais de recursos a partir do próximo ano para os municípios que “melhorarem a saúde dos brasileiros”. No entanto, ao incentivar a competição por dinheiro, as mudanças podem romper, “de forma silenciosa”, com o pacto de solidariedade da Constituição de 1988 que fundamenta a proteção social à saúde, de acordo com uma carta aberta publicada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e assinada por Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e outras instituições (8/11).
Também na visão do CNS, a publicação dessa portaria pelo Ministério da Saúde “fere o preceito constitucional do controle social” e as leis que regulamentam o SUS, pois não respeitou a participação social. “As políticas de saúde não podem ser construídas de forma vertical, sem escuta ao controle social, que é composto pela diversidade crítica do povo brasileiro para que tenhamos um SUS, de fato, participativo e com qualidade”, destaca nota do conselho (13/11). Segundo o órgão, não foram levadas em conta as contribuições da Câmara Técnica da Atenção Básica, criada pelo CNS em 2017, e as discussões realizadas na 16ª Conferência Nacional de Saúde, em agosto de 2019.
Em outra nota (21/11), a Abrasco, junto com outras instituições, manifestou indignação com o modo pelo qual o novo financiamento foi pactuado na CIT. Além de ignorar a posição do CNS, a mudança na forma de repasse foi lançada “sem estudos robustos que evidenciem, objetivamente, seus impactos sobre a condição de saúde da população, a desigualdade de acesso nas regiões metropolitanas e a sustentabilidade econômica dos municípios”, diz o texto. Por isso, a associação pede a revogação da portaria.
Ataque ao coração do SUS
Considerada o “coração” e a porta de entrada do SUS, a atenção primária depende de recursos repassados pelo governo federal aos municípios, como explica Luciana Dias de Lima, médica sanitarista e professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O repasse federal tem o papel não apenas de complementar o dinheiro disponível nas cidades para ofertar saúde à população, como também induzir o desenvolvimento dos serviços, explica. “O fim do PAB fixo é de enorme gravidade nesse contexto atual, porque interrompe o aporte regular de recursos para o SUS na totalidade dos municípios brasileiros com todas as incertezas em relação à implantação desse novo modelo”, destacou Luciana, no seminário “Financiamento do SUS sob ataque”, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), em 1º de novembro. Uma das questões que preocupam Luciana é: se as novas regras vão beneficiar os municípios que mais ampliarem o cadastro de usuários, como impedir que somente as localidades que vão bem recebam recursos, aumentando o “fosso das desigualdades” em relação aos locais mais carentes?
O contexto atual é desfavorável a mudanças radicais no financiamento, alerta a pesquisadora. “É imperativo um debate amplo e responsável, inclusive com estudos e estimativas de impacto. A perda atingirá principalmente municípios urbanos, em que a Estratégia Saúde da Família teve mais dificuldades de se implantar de forma mais efetiva”, constatou. Para ela, o impacto deve sobrecarregar o SUS ainda mais no cenário de precarização e instabilidade das relações de trabalho. Ela nega que haja previsão de mais dinheiro para a saúde pública. “Essas mudanças não envolvem aporte adicional de recursos. É bom que isso fique muito claro. Vai envolver remanejamento de recursos no interior do próprio orçamento da saúde, que já é escasso”, avaliou. Outro aspecto preocupante é que o fim do PAB variável relacionado à ESF e aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) compromete o efeito indutor de implementação da atenção primária no modelo preconizado pelo SUS.
Somente para pobres?
De saúde pública universal ao “SUS somente para os pobres”: de acordo com a carta publicada pelo Cebes (8/11), essa é a mudança pretendida com o novo modelo de financiamento da atenção primária, que passa a se basear no cadastro de atendimento e não mais no total da população. “A definição do rateio de recursos federais a partir da ‘pessoa cadastrada’ rompe com o princípio da saúde como direito de todas as pessoas e inviabiliza a aplicação de recursos públicos segundo as necessidades de saúde da população nos territórios”, apontam as instituições que assinam o documento. Segundo elas, a proposta de focalização (em oposição à universalidade existente no SUS) responde às exigências do Banco Mundial e não às necessidades reais da população brasileira. “Essa proposta descaracteriza completamente a Estratégia Saúde da Família”, afirmam.
De acordo com esta avaliação, o Ministério da Saúde prioriza o Programa Saúde na Hora, lançado em maio de 2019, que reduz a equipe multidisciplinar da ESF e valoriza o modelo biomédico de cuidado fragmentado, correndo o risco de organizar as unidades básicas de saúde a partir da lógica das unidades de pronto atendimento. Outro aspecto criticado é a sobrecarga de trabalho dos profissionais para efetivar o cadastro, “sem que os problemas reais da gestão sejam de fato considerados e equacionados”. Condicionar o repasse de recursos à realização de cadastro dos usuários também preocupa Luciana. “Ninguém é contra o cadastramento em si, mas para qual finalidade? Essas metas de cobertura são extremamente elevadas e inatingíveis e vão sobrecarregar as equipes, além de não estar claro como serão aferidas”, ponderou.
A mudança tem o apoio do Conasems, órgão que representa as secretarias municipais de saúde do país. Segundo documento assinado por Wilames Bezerra (20/11), presidente da entidade, a proposta elaborada pelo Ministério da Saúde representa uma “necessária mudança no processo de financiamento da atenção básica em saúde, o que possibilitará a real inclusão no SUS de milhões de brasileiros”. Ainda assim, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou a realização de uma audiência pública e de seminários estaduais para debater a portaria 2.979, a partir de requerimento do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). Três projetos de decreto legislativo — dois na Câmara e um no Senado — pedem a revogação da portaria, que começa a valer em 1º de janeiro de 2020.
De acordo com a carta publicada pelo Cebes, essa proposta está alinhada com a política atual de austeridade fiscal, que introduziu um teto para as despesas primárias, a partir de 2016, com a Emenda Constitucional (EC) 95. “Esse arrocho se torna mais grave com as recentes propostas apresentadas pelo Poder Executivo, que visam, a um só tempo, reduzir o teto dos gastos, eliminar o mínimo da saúde na União, estados e municípios e colocar a saúde e a educação numa disputa fratricida”, destaca o documento.
Para Carlos Ocké-Reis, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especialista em economia da saúde, a mudança no financiamento da atenção primária faz parte de um cenário de redução do gasto público, com aumento dos preços dos bens e serviços privados de saúde ao mesmo tempo em que ocorre a piora das condições epidemiológicas da população. O economista afirmou, também durante o seminário no IMS, que os modelos de financiamento da saúde sofreram regressão ao longo do tempo, com perda de recursos em termos reais. “O ataque não é só à atenção primária, mas a todo o SUS. Pois ela é a pedra fundamental da arquitetura do sistema universal. Quando se ataca o coração, é um ataque mortal”, alertou.
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