Quem são os leitores de Radis? Como eles interagem com as reportagens? O que veem e o que não encontram nas matérias? Eles são de fato ouvidos e de que forma? Quem fala e como fala em cada texto publicado? Em 2022, quando o Programa Radis completou 40 anos e a revista chegou a duas décadas de existência, um grupo de 11 leitores de diferentes locais do Brasil participou de um estudo sobre o lugar do “outro” na comunicação pública. A ideia era que Radis fosse analisada e comentada por seus próprios leitores.
Para se chegar a um coletivo que contemplasse a diversidade, Rogério Lannes, coordenador do Programa Radis e autor do estudo, utilizou o banco cadastral com mais de 120 mil assinaturas. Depois de várias etapas de seleção, cinco mulheres e seis homens, entre leitores novos e antigos, foram escolhidos para conversar sobre suas opiniões e leituras de Radis — a pesquisa deu origem à tese “O lugar do outro na comunicação pública: saúde, polifonia e alteridade na revista Radis”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), da Fiocruz, com orientação da pesquisadora Inesita Araújo.
“A pesquisa envolveu leitores da revista Radis em um processo participativo de análise discursiva da presença, da ausência e do protagonismo de vozes de atores sociais diversos na textualidade da revista, examinando matérias jornalísticas por eles escolhidas”, afirmou Rogério na tese.
Ele explica que os participantes selecionados têm algumas características em comum além do fato de serem leitores de Radis. “Todos ocuparam esse lugar por terem, em algum momento, se manifestado com uma visão crítica sobre o direito à saúde e o SUS ou sobre a própria Radis na seção Voz do Leitor, em reportagens da revista, em outros espaços e veículos ou nas redes sociais”, pontua.
Em entrevistas individuais com o autor e, depois, em conversas coletivas, os 11 leitores narraram as suas histórias com a publicação, analisaram reportagens e matérias mais marcantes, teceram críticas e sugestões ao trabalho e exercitaram aquela que é uma das premissas da comunicação pública: a participação cidadã.
“Conheci Radis em 2005. Eu fiquei fascinado com a revista: pública e gratuita, trazendo o debate sobre a reforma sanitária e o SUS”
Josenilton Dias
Nossas histórias com Radis
O relacionamento de Josenilton Dias com Radis começou bem cedo, há 18 anos, no início da sua graduação em Enfermagem. “Conheci Radis em junho de 2005, com uma capa sobre atenção básica, que ainda tinha o interior em preto e branco. Eu fiquei fascinado com a revista: pública e gratuita, trazendo o debate sobre a reforma sanitária e o SUS”, narra à reportagem.
Hoje com 35 anos, o enfermeiro e advogado baiano conta que se surpreendeu com o convite para opinar sobre o conteúdo da revista. “Recebi o contato com um misto de alegria por ter sido lembrado pelas mensagens que enviava e também com curiosidade sobre como seria o processo de pesquisa e como eu poderia contribuir”, relata.
Quando se deparou com a revista pela primeira vez, ele logo quis compartilhar com as pessoas próximas: “Lembro que fiz a assinatura dos meus colegas da faculdade pelo site. Todo mundo queria receber também”. Ele relembra que levava a revista para a sala de aula, mostrava aos professores e utilizava os temas como subsídio para os debates.
Quem ainda hoje leva as reportagens de Radis para as salas de aula é a professora de redação e língua portuguesa Cainã Vilanova. Sergipana, de 40 anos, ela leciona para alunos do ensino médio de Aracaju e outras partes do país por meio da plataforma digital Explicaê, que prepara estudantes para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Os últimos temas de redação [do Enem] estavam em exemplares da revista”
Cainã Vilanova
“Aluno de Cainã conhece Radis”, orgulha-se. Ela conta que usa as revistas como repertório: escolhe um tema de redação com base em uma matéria que saiu. “A prova do Enem, por enquanto, exige atualidade. O aluno que lê Radis se informa sobre muitos assuntos. Inclusive os últimos temas de redação estavam em edições da revista”, observa. Entre os assuntos do Enem que foram abordados por Radis, estão: os desafios para a valorização de povos tradicionais no Brasil (2022), a invisibilidade e o registro civil (2021) e o estigma associado às doenças mentais (2020).
Assim como os alunos de Cainã, foi por intermédio de uma professora que a psicóloga Elânia Francisca, de 38 anos, conheceu Radis. Esse vínculo foi reforçado em 2013, durante um encontro de Saúde Mental, na cidade de Mauá (SP), onde ela recorda ter ouvido novamente sobre a revista. De uma “leitora comum”, como se definia, ela afirma que aprofundou sua relação com o veículo durante sua participação na pesquisa.
“Antes, meu olhar sobre Radis era: uma revista que fala de saúde. Hoje, eu tenho outra visão. Entendo Radis como uma revista não só de saúde, mas que também contribui para a gente pensar mudança social, garantia de direitos à saúde e valorização do SUS”, opina.
Natural do Espírito Santo, Elânia vive em São Paulo e participa de movimentos de saúde na periferia e do ativismo feminista e antirracista. É nesse trabalho com a juventude que Radis também vira referência literária: “Quando estou no trabalho com adolescentes, para pensar a sexualidade, o direito à saúde sexual e à saúde reprodutiva, da mesma forma que a professora me indicou um dia, eu indico a revista para os meninos, meninas e menines adolescentes que acompanho”, diz.
O lugar do contraditório
As diretrizes editoriais de Radis sempre foram pautadas pelo interesse coletivo e pelos direitos à cidadania, destaca Rogério. “A comunicação pública deve ter clareza sobre seus propósitos e assumi-los de forma transparente. Ela se origina da ideia da comunicação como um direito humano e da luta pela democratização da comunicação”, completa, em conversa com a reportagem.
Superar as “versões oficiais” ditadas por porta-vozes institucionais e ouvir quem geralmente é negligenciado e invisibilizado pela imprensa comercial é uma das propostas de Radis. “Nas análises, vimos que há na Radis mais do que a presença de muitas vozes, mas um marcado protagonismo de vozes de fora da institucionalidade do SUS e da academia, entre elas a de atores sociais de fora do campo da saúde, de pessoas das periferias e de populações vulnerabilizadas”, afirma um trecho da tese.
O lugar do contraditório nas reportagens — ou “ouvir o outro lado”, como se costuma dizer no jornalismo — foi um tema abordado na conversa com os leitores. Diferentemente da ideia de uma suposta isenção e imparcialidade, a dita “objetividade jornalística” geralmente é uma estratégia para camuflar interesses e subjetividades de quem produz a notícia. Em vez disso, um dos principais lemas de Radis, “O nosso lado é o SUS”, é um posicionamento em torno dos valores defendidos pelo programa.
Josenilton avalia que Radis geralmente aborda pontos de vista diversos e, para ele, o espaço concedido a populações minoritárias e muitas vezes marginalizadas é um diferencial a ser valorizado. “Não encontro o conteúdo de Radis em nenhum outro veículo de comunicação”, comenta.
O leitor relembra que, durante as conversas com os outros participantes da pesquisa, essa questão do contraditório esteve muito presente. Em tempos de fake news, será que devemos dar espaço àqueles que propagam mentiras e negligenciam a ciência? — questionaram os leitores. “Como certos grupos já tinham espaços na mídia tradicional, Radis era a única voz de grupos como povos originários, quilombolas e comunidade LGBTQIA+”, completa Josenilton.
“Eu leio Radis, porque acho que não há um posicionamento neutro. A neutralidade não existe”
Elânia Francisca
Elânia partilha da mesma opinião e não vê problema na postura assumida pela revista em temáticas mais sensíveis: “Eu leio Radis, porque acho que não há um posicionamento neutro. A neutralidade não existe. São posicionamentos a partir da luta do povo. Então leio porque está em sintonia com meu olhar ético sobre saúde no Brasil”, explica. A psicóloga e ativista ressalta que, para ela, a própria Radis já seria um contraponto ao olhar hegemônico imposto pela imprensa comercial.
“Eu sou a favor da legalização do aborto e entendo que quem é contrário já tem espaço demais na grande mídia. Penso que falta, então, a gente abrir mais espaço para falar sobre a legalização do aborto sem ter esse outro ponto de vista, porque esse já está no Brasil inteiro, já está na imprensa tradicional. Acho que Radis tem que trazer o ponto de quem tem menos espaço na mídia”, opina.
Já Cainã manifesta uma posição um pouco diferente e acredita que, ao abordar “o outro lado”, as reportagens também ajudam a conscientizar e estimular o senso crítico dos leitores sobre o tema discutido nas pautas. “A revista deve mostrar mais de uma percepção, sem aliviar comportamentos preconceituosos, racistas, misóginos, homofóbicos, transfóbicos. Enfim, mostrar que, às vezes, há posicionamentos diferentes que precisam ser respeitados sem passar a mão na cabeça de atitudes que são totalmente erradas e criminosas”, argumenta.
Qual o espaço dos leitores?
Os leitores ouvidos pela pesquisa também compararam o papel da comunicação pública com a atuação da mídia comercial — por exemplo, em relação à abordagem sobre o SUS e os direitos da população. “O debate que Radis apresenta em suas páginas, com seu lugar de fala, é único. Sinto que o espírito da Reforma Sanitária ainda está muito forte [na revista], em ver o direito à saúde ser realmente efetivado com qualidade”, afirma Josenilton.
A liberdade editorial é outro ponto destacado. “O enfrentamento das desigualdades sociais é um tapa na cara, ao ver em suas páginas o que as publicações de mercado escondem. Não existe a lógica mercadológica, de vender exemplares. Então, a revista se permite fazer o contraponto do debate, a buscar atores esquecidos no cotidiano e a pautar os direitos que estão sendo cerceados em comunidades tradicionais. Isso não tem preço”, resume o leitor.
Porém, ainda há margem para ampliar e qualificar a escuta. Uma das questões identificadas pelos leitores ouvidos na pesquisa é o espaço de fala destinado às fontes ouvidas nas reportagens, muitas vezes ainda restrito aos marcadores sociais.
Rogério relembra algumas situações em que essa crítica foi levantada pelos leitores e cita uma fala de Vanilson Torres, líder do Movimento Nacional de População em Situação de Rua e um dos participantes da pesquisa. “Vocês ouvem pessoas em situação de rua. Eu nunca vi isso em lugar nenhum. Mas você já reparou que quem fala das políticas públicas são os procuradores, os pesquisadores, a delegada, o secretário, enquanto a população de rua fala só sobre a vivência dela na rua?”, questionou o participante da pesquisa a Rogério. “Por que eles não falam sobre outras coisas?”.
Segundo Vanilson, a população em situação de rua possui uma experiência que os especialistas não dominam e que ele nomeia como “ruologia”. Rogério destaca que esse foi um grande aprendizado da pesquisa e diz ter recebido uma observação semelhante de outro leitor, João Leopoldo: “Vejo que vocês ouvem muitos indígenas, população negra, população trans, mas vocês ouvem sobre a questão deles. Indígena fala sobre a questão indígena, negro fala sobre a questão do racismo ou saúde da população negra”, relembra Rogério.
“Vocês da mídia não colocam pessoas negras, indígenas e trans para falarem de todos os assuntos”, questionou João, durante as conversas. “O que João defende sinaliza para a necessidade de o lugar da diversidade representacional na comunicação pública não ser objeto de compartimentação temática, o que seria uma ‘racialização’ da fala negra, o que não ocorre com a voz da pessoa branca”, constata Rogério. Na avaliação do coordenador do Programa Radis, esse é um aprendizado que pode auxiliar a produção da equipe daqui para frente.
Participação social
Rogério entende que o momento é propício para avançar na discussão sobre a criação de um Conselho Consultivo no Programa Radis. E sugere que o próprio grupo de leitores selecionados para a pesquisa possa vir a compor um piloto para essa experiência.
“Gostaria que fizéssemos, a partir desse grupo, como um embrião, um dos pressupostos ideais da comunicação pública, que é um conselho externo consultivo. Algo que nos ajudaria a pensar junto os rumos de Radis”, defende. A ideia não impactaria na independência editorial do veículo — “mas vai fazer algo muito importante, que é pensar questões de longo prazo, de inserção no campo da comunicação e na sociedade”, defende. E cita exemplos: “A EBC [Empresa Brasil de Comunicação] tem um conselho curador e iniciativas de comunicação pública em outros países tiveram também conselhos diversos”.
Na avaliação de Rogério, a construção da pesquisa com a participação dos leitores de Radis ajudou a trazer olhares diversos sobre o jornalismo desenvolvido no programa. As conclusões resultantes do estudo podem contribuir para ampliar os espaços de participação cidadã na comunicação pública, segundo ele.
Rogério ressalta que, durante a pesquisa, ele entendeu que o momento de contato desse ‘outro’ com Radis é apenas um breve instante em sua vida. “Aquele encontro não resume a existência do indivíduo que lê ou fala na revista, mas apesar disso, deve ser um instante de total dedicação”.
No dia em que ele conversou com a reportagem, parte da equipe de jornalismo do programa estava em Roraima cobrindo a emergência de saúde pública vivida pelo povo Yanomami e a iniciativa foi citada como exemplo para essa reflexão. “Cada vez que a gente vai, como agora, que a equipe está lá com os Yanomami, tentamos fazer o melhor, sabendo que o melhor vai ser só uma gotinha na história de vida dessas pessoas e no território delas. Mas temos que tentar acertar sempre, com o coração”, conclui o coordenador de Radis.
Gostaria de conhecer a pesquisa na íntegra? O trabalho está disponível em acesso aberto no repositório institucional da Fiocruz, o Arca. Acesse: https://bit.ly/teseradis.
Onze leitores de Radis foram escolhidos para participar da pesquisa desenvolvida por Rogério Lannes. Todos passaram por conversas individuais com o autor antes dos debates coletivos, quando se conheceram e interagiram pela primeira vez. Cada um teve a tarefa de selecionar livremente uma ou mais matérias publicadas na revista para analisá-las com base em um roteiro previamente definido. Em seguida, as análises seriam partilhadas e debatidas com os demais leitores integrantes da pesquisa. Ao todo, foram escolhidas 20 reportagens [confira a lista: https://bit.ly/materiasteseradis].
Conheça também os leitores que participaram do estudo: https://bit.ly/perfildos11.
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