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“A doutrina dos direitos humanos vigente é colonialista e eurocentrada”. A afirmação contundente, do pensador luso-senegalês Mamadou Ba, proferida durante os seminários sobre direitos humanos e mudanças climáticas promovidos pela Ensp/Fiocruz, é um alerta dado pelo militante antirracista e decolonial para que a agenda e a concepção de direitos humanos sejam desassociadas da lógica e dos interesses euro-ocidentais. 

O intelectual defende o rompimento do monopólio eurocêntrico para que os direitos humanos cumpram sua principal finalidade: salvaguardar a dignidade humana. “Uma das formas de descolonizar os direitos humanos é descentrar o Ocidente e centrar tudo em volta da humanidade partilhada. O planeta só vai sobreviver e nós só vamos sobreviver se entendermos que todos nós compartilhamos uma coisa — a nossa humanidade”, orienta.

Mamadou evidencia as contradições do eurocentrismo presente nas diretrizes humanitárias ao resgatar o histórico colonialista, imperialista, racista e de exploração capitalista que constitui o dito “Ocidente” — e que inclui processos de violência, violação de direitos humanos e subjugação, como a escravatura de povos africanos. 

“Para que servem os direitos humanos? Para cuidar e defender o planeta, resgatar e defender a dignidade humana? Os direitos humanos são um patrimônio humano de universos plurais ou são apenas um sinal de prioridade do Ocidente sobre o resto do mundo?”, questiona. Em outra provocação, indaga: “É possível conciliar direitos humanos e o capitalismo racial extrativista?” Para ele, não.

Carta do Mandinga

Mamadou cita a importância dos princípios humanitários presentes na Carta do Mandinga, de 1236 [também conhecida como Carta de Curucã Fuga, era a constituição do Império do Mali, apontada como um dos primeiros modelos de constituição no mundo], pensados e construídos no século 13, que para ele é um primoroso tratado sobre a inegociabilidade da dignidade humana. “Ela é construída por um preâmbulo de sete capítulos defendendo a paz social na diversidade; a inviolabilidade do ser humano; a educação; a integridade da pátria; a segurança alimentar; a abolição da escravidão por razia (ou ataque) e a liberdade de expressão e comércio”. 

Contemporânea da Carta Magna, de 1215 [documento que estabeleceu limites ao poder do rei na Inglaterra medieval, reconhecendo direitos individuais e garantias básicas dos súditos], a carta também prevê, nos seus 44 artigos, a proteção ambiental, assim como o respeito aos direitos humanos, a prevenção de conflitos e a igualdade de gênero. 

Para Mamadou, não é possível falar em democracia plena e justiça climática sem considerarmos que o extrativismo predador é uma das principais bases dos problemas de direitos humanos e saúde enfrentados pela humanidade nos dias de hoje. “A catástrofe climática em curso é uma oportunidade para mudar o paradigma, incorporando a natureza, florestas, montanhas, fauna e flora nos direitos da vida”, defende ele.

O pensador africano aponta que “resgatar a dignidade humana começa por lutar pela nossa sobrevivência, mas sobretudo pela saúde do planeta, se ainda tivermos a decência de deixar um planeta vivível às gerações vindouras”, valorizando a resiliência de seu povo. “As pessoas vulneráveis que se confrontam com todo o tipo de violências em África, mas nunca desistiram, tornaram-se pela sua resiliência e força de vontade, as principais sentinelas dos direitos humanos e das questões climáticas”.

Economia do sofrimento

Mamadou assinala que o capitalismo opera para produzir miséria e fome no Norte global, especialmente na África — “onde 58% da população sofre com algum grau de insegurança alimentar” — apesar do excesso de riquezas no mundo. “A leitura dos vários relatórios de diferentes organismos internacionais e multilaterais sobre o continente africano comprova que o capitalismo produz simultaneamente uma economia da predação e da fome que, por sua vez, produz uma precariedade sanitária sistemática e sistêmica”, relata. 

Ele alega que a combinação entre pobreza, precariedade sanitária e vulnerabilidade ambiental transformou os direitos à saúde, como o acesso à alimentação saudável, em produtos comerciais: “A indústria da pobreza se torna um ativo comercial para o negócio da saúde como um mero paliativo e não um dispositivo preventivo nem curativo. A fome cria fragilidade sanitária e necessidade de emergência paliativa. A partir daí, a fome e a doença alimentam uma economia do sofrimento”, pontua ele.

Mamadou menciona o trabalho da filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva para afirmar que a catástrofe climática é mais uma dívida impagável com as pessoas africanas e afro-diaspóricas: “Qual o continente que poluiu menos, mas sofreu mais com os efeitos da poluição, produzida pelos países mais ricos do mundo?”, questiona mais uma vez, sabendo a resposta: África.

Profecias do impossível

Ele argumenta ainda que dados do relatório desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2024 sobre o desenvolvimento sustentável africano naquele ano apontam que o continente contribuiu com apenas 2 a 4% das emissões mundiais de gases do efeito estufa, mas sofreu uma parte desproporcional dos seus efeitos adversos, incluindo a perda de vidas, danos materiais, deslocamento de pessoas e de populações.

“O número de emergências sanitárias relacionadas com o clima está a aumentar em África, sendo responsável por mais de metade das ocorrências de saúde pública registradas na região nas últimas duas décadas. O diagnóstico é implacável e é muito desolador, mas não é uma fatalidade, nem uma inevitabilidade”, denuncia.

“Eles querem o fim do mundo, mas nós queremos continuar vivendo. A vida com dignidade é uma das possibilidades nas quais acreditamos plenamente em África. Ninguém se renderá às profecias do impossível”, afirmou em tom de esperança, apontando caminhos pelos quais os povos africanos podem assumir o protagonismo de seu destino.

“Este continente e seus povos sabem que o paradigma da saúde, não apenas como mercadoria, mas também como dispositivo geopolítico de pressão e de chantagem, é irreconciliável com a necessidade urgente de conquistar a soberania política, econômica e cultural”, aponta. 

Em suas palavras, essa soberania multidimensional vai permitir ao continente definir as suas políticas públicas de saúde, de planeamento urbano, de exploração dos seus recursos naturais, do usufruto das suas terras, além de resgatar e revitalizar o ecossistema dos diferentes modos de produzir e viver a saúde.

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