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Ana Carla Ramos da Silva aguardava a cirurgia que a livraria de dores e dos sangramentos provocados por vários miomas quando sobreveio a pandemia. Moradora de Olinda, em Pernambuco, a manicure sofreu as consequências da diminuição no ritmo de atendimento dos serviços de saúde. Ana havia feito a jornada natural do SUS e, em 2019, foi atendida no Posto de Saúde da Vila Manchete e, depois, na Policlínica da Mulher, ambos em Olinda. Feitos todos os exames, na rede pública e particular, desde janeiro ela esperava o agendamento da cirurgia de histerectomia que deveria ser feita no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), no Recife. Sem qualquer sinalização do outro lado, Ana conta à Radis que retornou ao posto para saber como deveria proceder. “Era época da pandemia e o posto estava fechado”, relata. 

Em agosto, já com o serviço normalizado, Ana voltou à unidade e foi atendida por um clínico, sendo encaminhada para um ginecologista cirúrgico, onde fez mais duas consultas. A época da paralisação logo cobrou seu preço e os exames anteriores perderam a validade. Desempregada desde que o salão onde trabalhava no Centro do Recife fechou por conta da pandemia, Ana recomeçou o processo voltando ao posto de saúde. “Só tem marcação na segunda e quem marca não tinha ido nesse dia. Agora, tenho que esperar mais uma semana. É um sofrimento. Tomo analgésico direto e tenho que usar fralda já que absorvente não serve para o meu caso e não sei quando isso será resolvido”, lamenta. 

Sete meses depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a pandemia do novo coronavírus, a retomada mostra que essa parada deixou marcas e terá impactos ainda prolongados na vida das pessoas e na organização dos sistemas de saúde. Os efeitos não serão sentidos apenas no Brasil. Uma pesquisa da própria organização, realizada em 103 países, confirmou que serviços de saúde foram afetados em todo o mundo por causa da crise gerada pela covid-19. Doenças e outras questões de saúde que já eram negligenciadas ficaram ainda mais relegadas à desassistência. 

A OMS constatou interrupção em serviços de planejamento familiar e contraceptivos em 67% dos países pesquisados. Metade das consultas de pré-natal foi cancelada e houve interrupção em mais de 30% dos serviços de parto. Além disso, também foram interrompidos serviços de saúde mental em 93% dos países do mundo, em um momento em que isolamento, luto, perda de rendimentos e medo causam novos problemas ou agravam os existentes. Segundo a organização, muitas pessoas podem estar enfrentando níveis elevados de uso de álcool e drogas, insônia e ansiedade.

Resultado da crise

Para Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), é preciso tratar o efeito da crise com tudo o que foi paralisado, postergado e agudizado. Segundo ela, algumas pessoas evoluíram para piora em sua condição de saúde por falta de atenção e tratamento. “As condições das pessoas pioraram nesse intervalo. Os reflexos na saúde mental são consequência do isolamento, do distanciamento, da preocupação e da ansiedade. Isso sem falar que as pessoas que perderam familiares pioraram suas condições clínicas, mentais e emocionais. Algumas famílias perderam mais de uma pessoa. Esse sofrimento impactado pela pandemia pesa muito”, destaca, em entrevista à Radis [leia na página 24]. Gulnar lembra também a piora alimentar e na atividade física. “Tudo isso já vem aparecendo e vai aparecer mais ainda, sobrecarregando o sistema de saúde”, prevê a sanitarista.

Para ela, um dos fatores que contribuiu para a desassistência foi que, no início da pandemia, o Ministério da Saúde recomendou que as pessoas buscassem atendimento apenas se tivessem sintomas de covid. “Muita gente não procurou o serviço de saúde para evitar a contaminação. Mas alguns problemas podem ser letais se não houver atendimento rápido”, salienta. Em agosto, Gulnar publicou um artigo juntamente com Beatriz Cordeiro Jardim e Cleber Vinicius Brito dos Santos, todos ligados ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), em que atestam que houve 33% a mais de mortes este ano entre março e maio de 2020, quando comparado com 2019. Nas capitais dos estados, o excesso de óbitos para o período estudado foi 124% maior do que nos demais municípios do país. “Percebemos que a covid foi mais forte entre homens e foi se interiorizando. Acreditamos que essas mortes podem ser, em parte, explicadas por causas indiretas. São pacientes que ficaram sem ser atendidos, ou de óbitos que ocorreram em casa por outras causas, como infarto ou AVC [acidente vascular cerebral]. Quem não soube identificar o que tinha, ficou em casa, e interrompeu ou adiou tratamentos”, observa.

Adiar tratamentos ou consultas regulares fez parte da vida também de quem ainda tenta administrar os efeitos da pandemia. Adriana Pereira Camargo é secretária de um consultório em Botafogo, no Rio de Janeiro, e regularmente faz exames completos para acompanhamento de seu quadro de saúde. Em 2020, essa rotina anual foi interrompida pela covid. “Estava com consulta marcada no angiologista e na nutricionista que têm consultórios em um prédio grande. Primeiro, eu pensei no elevador apertado e na possibilidade de contaminação. Como era exame de rotina, preferi esperar”, conta. A prevenção também foi estendida para o atendimento de seu filho Pedro, de 3 anos, que teve uma consulta regular retardada. “Trabalho em um consultório de pediatria e via que muitos adultos relatavam que tinham pegado covid. Tive medo. No começo, era algo muito novo e estavam ainda descobrindo a doença”, diz. 

Durante o pico da covid, Adriana relata que ficou trabalhando em expediente normal, seguindo todos os protocolos de prevenção. “Agora, continuo usando álcool em gel, lavo a roupa quando chego em casa e o medo diminuiu. O mais difícil foi mostrar para meu filho que ele não podia me abraçar depois de um dia de trabalho”, revela. Ela percebe que, aos poucos, o consultório em que trabalha tem tido maior procura e os quatro pediatras estão equacionando a demanda reprimida. “Dá para ver que as pessoas estão voltando e procurando novamente o médico para seus filhos. Eu estou fazendo isso também e já me sinto mais segura para buscar atendimento de novo”, observa.

Mais negligenciadas

O cenário desfavorável da pandemia pode ter contribuído para agravar ainda mais a invisibilidade de pessoas com doenças negligenciadas. Segundo Sergio Sosa-Estani, diretor do Programa de Chagas da iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), a pandemia pode estar incrementando de maneira substantiva as barreiras para pessoas que antes já eram as mais afetadas por sua vulnerabilidade. A doença de Chagas é uma dessas negligenciadas e mereceu um artigo com recomendação sobre o que fazer para proteger esses pacientes, que necessitam de considerações especiais devido ao impacto que a covid-19 pode ter no coração. “Há o potencial impacto da coinfecção, com uma infecção por Chagas e também por covid-19. Essa doença tem alto impacto no sistema imune, produzindo grandes alterações, e acomete também o sistema cardiovascular, com um processo particular no miocárdio. E esses são dois fenômenos que estão muito envolvidos na doença de Chagas”, ressalta à Radis.

Sergio diz ainda que a alteração imunológica provocada por uma infecção de covid-19 pode afetar o equilíbrio do parasita em doentes que não apresentam expressão clínica. “Isso pode não só produzir um problema pelo vírus em si, mas reativar a infecção crônica, gerando quadros graves e letais pela doença de Chagas”, alerta. Para ele, o cenário trazido pela pandemia será um grande desafio a ser enfrentado pelos sistemas de saúde. “Falar na adaptação a uma nova normalidade da vida social e econômica também inclui recuperar a atenção das pessoas negligenciadas e mitigar a negligência incrementada durante a pandemia”, afirma. “Precisamos retomar uma agenda que foi silenciada e recuperar o tempo que passou”, assinala. 

Atenção adiada

Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) comprova que a falta de cuidado resulta em prejuízos para aqueles que vivem com doenças crônicas, que necessitam de monitoramento constante, como diabetes. Realizada em abril e maio, a pesquisa revelou como a pandemia afetou a alimentação, a atividade física e o acesso a medicamentos e serviços de saúde para essas pessoas. O estudo identificou que 60% dos entrevistados apresentaram redução nas atividades físicas, 60% observaram variação na glicemia e quase 39% adiaram suas consultas médicas. Segundo os dados, pessoas que utilizam serviços públicos de saúde relataram mais episódios de hiperglicemia frente aos usuários do sistema privado.

Já outra pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), que contou com a participação de 120 associados que trabalham nos sistemas público, privado ou em ambos, a respeito do impacto da covid-19 no atendimento a pacientes com câncer, mostra que 74% deles relataram que um ou mais pacientes interromperam ou adiaram o tratamento por mais de um mês durante a pandemia. Ainda de acordo com a pesquisa, as cirurgias (67,5%) e os exames de prosseguimento (22,5%) foram os procedimentos em que os pacientes mais enfrentaram dificuldades no período. Menos de 1% dos entrevistados disse acreditar que seus pacientes não enfrentaram nenhum problema.

Coleta em baixa

Os efeitos da covid-19 afetaram também a coleta dos bancos de sangue e hemoderivados país afora. Segundo o Ministério da Saúde, as coletas realizadas de janeiro a agosto de 2020 tiveram uma redução de quase 12% quando comparadas ao mesmo período de 2020. O impacto no mês de maio foi o maior de todos e a queda chegou a 27%. O Hemocentro do Rio Grande do Norte Dalton Cunha foi um dos afetados pela falta de doadores. Miriam Mafra, diretora de Apoio Técnico do Hemonorte, como também é chamado, conta à Radis que a unidade de saúde está trabalhando com menos de 50% do estoque regular. “Conseguimos manter um ponto de equilíbrio até maio. Depois, tivemos uma baixa geral no estoque, com um perfil que acredito ter sido o mesmo em todo o Brasil”, salienta.

Com menos doações de sangue devido à pandemia, Miriam relata que o Hemonorte teve que utilizar o plano de contingência. Além disso, por um curto período, uma das estratégias de captação foi uma parceria com aplicativos de mobilidade urbana que transportaram o doador para a unidade de saúde. Mesmo assim, a diretora observa que a necessidade continua. “As cirurgias eletivas retomaram seu processo. Mas a conta da quantidade de sangue que entra e sai ainda não fecha”, ressalta. Segundo informações do Hemonorte, de janeiro a setembro de 2019, 30.450 pessoas fizeram a doação de 450 mililitros de sangue. No mesmo período de 2020, foram 25.152, o que representa uma queda de 17%. Em maio, mês que marcou uma fase severa de isolamento, a queda foi bem maior e chegou a 43% em relação ao ano passado. Para aumentar o estoque, o Hemonorte passou a permitir que os doadores agendassem horário no site ou por telefone. “Isso não só deu certeza da coleta como tornou o processo mais seguro para o doador e os profissionais de saúde”, afirma.

Outras repercussões

O que se sabe, até agora, é que a covid pode ser agravada pela obesidade. Além disso, resultados de pesquisas internacionais comprovaram que quem tem sobrepeso corre mais riscos com o novo coronavírus. Na Inglaterra, pesquisa conduzida pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (National Health System, NHS) concluiu que quem está acima do peso tem 40% mais risco de morrer, probabilidade que aumenta para 90% no caso de obesos. Ou seja, quanto mais peso, maior a chance de internação e morte devido à covid-19, o que é especialmente preocupante quando atualmente, no Brasil, quase 21% das mulheres e 19% dos homens são obesos.

O cenário fica ainda mais complexo e menos favorável quando se leva em conta que o isolamento foi uma das principais medidas de prevenção e cuidado para evitar a disseminação do coronavírus e o fechamento de escolas fez com que os alunos de escolas públicas deixassem de ter acesso a uma refeição mais balanceada e de qualidade. Em entrevista ao site da organização DW Brasil, José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2012 a 2019, estimou que, entre os impactos da pós-pandemia, estão o aumento da obesidade entre adultos e crianças e, do outro lado da balança, a desnutrição e a fome. 

Para complicar o quadro, a ameaça de insegurança alimentar dos últimos anos se tornou uma realidade para as populações mais pobres do país. Desde 2014, o Brasil havia deixado o Mapa da Fome, mas, já em 2019, a FAO alertou que o país poderia voltar a ser incluído entre as nações com mais de 5% da população ingerindo menos calorias que o recomendável. A FAO inclusive divulgou que, antes da pandemia, uma em cada quatro pessoas vivia em situação de pobreza extrema. Depois da covid-19, serão uma em cada três pessoas, o que vai trazer repercussões diretas e a longo prazo na vida e na saúde de cada uma delas.

A pandemia revela também que pessoas com deficiência estão ainda mais invisibilizadas. Segundo Everton Luís Pereira, professor da Universidade de Brasília (UnB), embora as pessoas com deficiência tenham sido atingidas pela doença, pouco se fala sobre a repercussão da covid sobre esse grupo. “A questão subjacente é a falta de acesso ao serviço e a perda de recursos, com um empobrecimento significativo dessa população, e a total invisibilidade nos números. Não temos acesso a bancos de dados de pessoas com deficiência e covid, nem no ministério nem nas secretarias estaduais”, observa.

Coordenador do Observatório sobre Políticas sobre Deficiência da UnB, Everton está à frente de uma pesquisa para mapear os impactos da covid-19 nas pessoas com deficiência. “Nosso objetivo é tentar compreender o que aconteceu não só com essas pessoas, mas com o universo de suas famílias e cuidadores familiares e profissionais”, afirma. Ele observa também que um dos efeitos diretos da pandemia pode ser o aumento do número de pessoas com deficiência. “Ainda não se sabe se as consequências de médio e longo prazo vão prejudicar a funcionalidade ou levar à perda dela e à consequente deficiência”, alerta.

Trabalho em rede

Informação, comunicação e contato foi o caminho encontrado pela Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (RBLH) para conseguir superar as dificuldades trazidas pela pandemia. E, diferentemente de outras áreas de atenção à saúde, o isolamento social ajudou a rede a manter os seus estoques em alta devido à produção excedente de leite destinado a alimentar bebês prematuros e de baixo peso internados em Unidades de Terapia Intensiva Neonatais. “O isolamento fez com que mulheres que não eram mais doadoras, porque haviam retornado ao trabalho, tivessem mais tempo para doar leite; e outras, que já tinham colocado o bebê na creche, passassem a ser novamente demandadas por seus bebês”, explica Danielle Aparecida da Silva, coordenadora do Centro de Referência para Bancos de Leite Humano, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), no Rio de Janeiro. 

Segundo Daniele, tão logo a pandemia foi decretada, em março, o Centro de Referência buscou a informação como melhor remédio para evitar queda nas doações. “Criamos uma Câmara Técnica entre os integrantes da rede para pesquisar informações sobre covid e aleitamento materno”, conta. Com a confirmação de que o vírus não seria transmitido pelo leite humano, foi convocada uma reunião virtual e iniciada nova etapa. “Precisávamos também ver se as boas práticas que até então garantiam a biossegurança do nosso trabalho eram suficientes”, relembra Danielle. 

De acordo com a coordenadora, foi constatado que todos os procedimentos realizados pelo banco de leite eram seguros para quem manipula, doa e recebe. Dessa forma, o Centro de Referência incrementou o contato entre outros pontos da rede e passou a utilizar as redes sociais como aliadas. “Essa foi uma estratégia importante de mobilização durante a pandemia. Notamos que vários bancos de leite criaram páginas em redes sociais”, recorda. Com isso, a média do número de doadoras entre março e setembro de 2019, que foi 13,7 mil, passou para 15,1 mil no mesmo período de 2020. Já o volume de leite humano coletado passou de 14 mil para 17 mil, na comparação entre os nove primeiros meses de 2019 e 2020.

No campo da comunicação, a rede investiu ainda na realização de seminários virtuais e todos os estados fizeram pequenos vídeos que estão disponíveis no Canal do YouTube mostrando as “Vozes da Rede BLH”. “Trouxemos todos os personagens para o centro da cena e falamos o que é ser mãe de um receptor em plena pandemia”, diz Danielle. Em maio, houve a comemoração virtual do Dia Mundial do Aleitamento Materno e, em agosto, a Semana Mundial de Aleitamento Materno, com a replicação de festividades virtuais, lives e seminários. Para ela, o sucesso da iniciativa deve ser creditado à rede como um todo. “Nada foi resolvido de forma pontual. Todos os processos foram decididos em conjunto”, conclui.

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