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A primeira vítima da covid-19 no Rio de Janeiro era mulher. Tinha 63 anos. Vivia em Miguel Pereira, a 124 quilômetros da capital, onde trabalhava como empregada doméstica. Morreu em 17 de março e foi um dos primeiros casos confirmados da doença por aqui. Três meses depois, a pandemia que mata e desampara vem realçando ainda mais as desigualdades e as diferenças de gênero. No país que tem cerca de 11 milhões de famílias compostas por mães solo, com mais da metade dessas vivendo abaixo da linha da pobreza, segundo dados do IBGE, são elas, as mulheres, as que mais sofrem os impactos provocados pelo novo coronavírus. São também sinônimo de resiliência. Nas próximas páginas, três abordagens dessa pandemia sob um recorte de gênero: a jornada das mulheres que cuidam sozinhas dos filhos e da família; o aumento da violência doméstica; e o papel das políticas públicas nesse cenário.

I.

A TRIPLA JORNADA DAS MÃES SOLO

Ela veio da Paraíba para o Rio de Janeiro com três filhas meninas. Tem 36 anos. É viúva. Faxineira, trabalha com carteira assinada, de segunda a sexta, em uma companhia de dança. Por conta da pandemia, precisou reduzir a jornada de trabalho para apenas dois dias na semana — e, com isso, também o salário. Chama-se Cristiana Bernardo Gomes. Na sua casa em um bairro da Zona Norte, são sete mulheres. Moram com ela, além das filhas, uma sobrinha e uma conhecida que também é mãe de uma criança. Mas é de Cristiana a única renda. “Tive que apertar para diminuir as despesas”, conta à Radis. “Os gastos aumentaram para todo lado. Vivo de aluguel e, além das contas de luz e gás que continuam chegando, tenho que comprar mais comida, com as crianças direto em casa, sem a merenda na escola”.

Ação essencial para conter o contágio, o fechamento das creches e escolas tem feito com que as mães acumulem ainda as tarefas escolares. Cristiana agradece a ajuda das adultas em casa. Às terças e quintas, quando sai para o trabalho, deixa o almoço pronto. Combinou com a chefe que, enquanto durar a pandemia, ela vai chegar às 10, horário em que trens e metrôs estão menos lotados, em tese, e as aglomerações nas ruas, menores. Anda de máscara e com álcool em gel na bolsa. No transporte público, evita pôr a mão nas barras de ferro. Retorna para casa às 16. “Antes de abraçar minhas filhas, vou direto para o banho”. Toma todos os cuidados — sua caçula, de 6 anos, tem bronquite asmática, o que a coloca no grupo de risco. “Saí da minha terra em busca de trabalho e de uma vida melhor pras meninas. Aqui estou. Tenho que me virar em duas, às vezes, em três. Mas não me arrependo”, assegura. “Às vezes, acho que nós mulheres somos super-heroínas que conseguimos fazer várias coisas ao mesmo tempo: ser dona de casa, mãe, dar conta do trabalho, de tudo”.

Se equilibrar a maior parte do trabalho doméstico com as atividades fora e o cuidado dos filhos já é um malabarismo em qualquer contexto, em tempos de pandemia, esse desafio assume ares colossais. Quando, além disso, as contas não fecham, pode se tornar intransponível. Para ajudar, há iniciativas em rede como o movimento “Pela vida de nossas mães” — em que filhas e filhos de empregadas domésticas reivindicam o direito à quarentena remunerada para as trabalhadoras — e a campanha “Mães da Favela”, promovida pela Central Única das Favelas (Cufa), que vêm transferindo renda para mães em situação de vulnerabilidade [ver edição de maio, Radis 212]. Mas há outros exemplos.

Por meio do Coletivo Massa e do Instituto Casa Mãe, as ativistas Thais Ferreira e Thaiz Leão  idealizaram um projeto batizado de “Segura a curva das mães”. Cumprindo o isolamento social — e, portanto, fisicamente longe das ruas, seu território de atuação por excelência —, elas vêm ajudando mulheres que cuidam sozinhas dos filhos a passar pela pandemia. A iniciativa funciona como uma rede de cuidado e, além de uma verba emergencial de 150 reais para cada mãe acolhida, oferece ainda apoio psicológico e suporte jurídico e escolar. De dentro de casa, elas conseguiram o impensável: numa primeira etapa, sustentando um financiamento coletivo, arrecadaram 87 mil reais, que acabaram por beneficiar 732 mulheres de 20 estados — a maioria delas, 60,5%, negras. São mães solo, cuja renda média vai de zero a 100 reais. Mais da metade dessas mulheres (432 mães) mora em residências de apenas dois cômodos — outras 236 vivem em lares com apenas um. Cerca de 30% do total têm três filhos ou mais. Não é incomum encontrar no cadastro mulheres responsáveis por seis, oito ou até 10 crianças. 

Em meados de maio, o “Segura a curva das mães” entrou em uma segunda etapa. Dessa vez, abriu mil vagas, que foram preenchidas em apenas 12 horas. As histórias de vida que chegam por trás dos cadastros são impactantes e reveladoras de uma sociedade desigual e, igualmente, racista, diz Thais Ferreira, à Radis. Todos os dias, ela se envolve no cuidado dessas mulheres. “Acho que consigo me conectar porque as histórias delas são as histórias das minhas tias, minhas primas, minha mãe, enfim, são as histórias das mulheres que atravessaram a minha vida, são as histórias das minhas amigas”, conta Thais, mãe de dois filhos, tendo perdido um terceiro na maternidade — ela também, “uma mulher preta e periférica”, como se define. “Até a gente ter uma restituição da nossa humanidade, demora muito”.

Quentinha, bolo de pote e empadão

Em um dia comum, por meio do projeto, Thais conheceu Jane Tito dos Santos, de 49 anos, que depois apresentou à reportagem de Radis. Dez filhos. Treze netos. É assim que Jane começa a contar a sua história por telefone: pelos números. Foram cincos anos e um mês cumprindo pena na penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, no Rio de Janeiro. Desde 2017, está em liberdade. Quando finalmente começava a se organizar com o dinheiro das quentinhas, do bolo de pote e do empadão que aprendera a fazer para colocar dinheiro em casa, veio a pandemia de covid-19 — essa palavra esquisita rapidamente incorporada ao vocabulário das brasileiras — e deixou a vida ainda mais difícil. Ela lembra a última venda. “Foi no Carnaval, em fevereiro, para os camelôs no centro da cidade”. Em um dia bom, o lucro era de até 100 reais. 

Jane não tem renda fixa. Por conta do histórico de ex-presidiária, ela imagina, não conseguiu emprego. Também não foi possível se inscrever no Cadastro Único para acessar programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família, com o que contava antes de ir para a prisão. Mas depois de três anos em liberdade, a venda dos bolos e salgados estava indo bem. Ela recuperou a autoestima, voltou a fazer planos. Até uma televisão para as crianças, conseguiu pagar à vista, lembra. Era possível comprar pão para os filhos, logo que amanhecia, e pouca coisa lhe dava mais prazer do que, aos sábados, trazer frutas para casa. “Minha dignidade esteve no lixo, mas agora eu já conseguia fazer a comida dos meus filhos”, diz, emocionada, a voz forte quase sumindo ao telefone.

Os dias de isolamento social — que Jane considera uma medida importante — lhe trouxeram de volta o medo da fome. “O que me deu alívio em abril foi o projeto ‘Segura a Curva das Mães’, que me chegou num momento em que eu já estava há três dias sem gás”, conta. “Pelo projeto, recebi duas cestas básicas que foram a minha salvação. Tinha até álcool em gel e material higiênico e sanitário”, relata. Com o dinheiro, comprou o gás, máscaras para todos em casa e também remédios. Jane é hipertensa e, no ano passado, passou por uma cirurgia e precisou de hemodiálise por seis meses. Em maio, espera ser contemplada com o auxílio de 600 reais do governo federal.

Hoje, ela mora com cinco filhos, que têm entre 9 e 19 anos, em uma casa de três cômodos em uma ocupação, na Zona Norte do Rio. Os outros cinco filhos estão casados e já não moram com a mãe. Costumam lhe ajudar sempre que podem, mas também vêm precisando driblar dificuldades na pandemia. Uma de suas meninas é manicure e, durante o confinamento, também parou de trabalhar. “Ela está um pouco melhor do que eu porque o marido tem trabalho, mas tem as próprias dificuldades: é mãe de cinco filhos e um deles é ainda um neném que usa fraldas”. 

Em casa, quando os filhos todos dormem, Jane pensa em como estão neste momento as mulheres com quem conviveu durante anos no presídio. “Não quero nem imaginar porque me dá vontade de chorar”, diz. Agora, sonha com o dia em que “esse vírus seja eliminado” para que possa voltar a reconstruir sua vida. Às vésperas do segundo domingo de maio, Jane ligou para Thais Ferreira. Precisava agradecer o apoio e também descobrir como ter acesso a um protético. “Quero poder voltar a sorrir para os meus filhos”.

[Leia as entrevistas completas com Thais Ferreira e Jane Tito dos Santos no site da Radis]

II.

QUANDO O AGRESSOR NÃO É APENAS O VÍRUS

Mal havia começado o debate sobre violência doméstica em tempos de pandemia, promovido pelo Instituto Maria da Penha e transmitido ao vivo por uma rede social, quando um comentário ocupou a pequena tela do celular e chamou a atenção de quem estava online:

— Socorro! Socorro!

E logo depois, sem descanso:

— Alguém pode me ajudar, por favor! Estou sofrendo violência! Meu marido me agride!

Enquanto outras mulheres que participavam da “live” no início da noite de 28 de abril, ainda impactadas, digitavam rapidamente palavras solidárias, a mediadora Regina Célia Barbosa encaminhava a autora dos comentários para os canais privados do Instituto Maria da Penha, onde uma equipe já estava a postos para orientá-la sobre como proceder. Ali mesmo, em tempo real, muitas outras mulheres compartilhavam suas experiências. Houve o relato da filha que denunciou o próprio pai depois de presenciar anos de maus tratos à mãe. E a garota que só percebeu ter sido vítima de violência depois que terminou um relacionamento que durou seis anos. 

Durante a pandemia, esse tema vem ocupando as redes sociais. Entre abril e maio, Radis acompanhou pelo menos cinco “lives” e três “webinários” [seminários online] sobre o assunto. Não raro, mulheres têm aproveitado esse espaço para gritar por socorro. São tantos os pedidos que eles inspiraram a mais recente campanha do Instituto Maria da Penha veiculada na internet [Ver vídeo em https://bit.ly/3gItnDx]. No Brasil, a cada dois segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal. As denúncias feitas ao Ligue 180 — serviço gratuito e confidencial criado para atender essas mulheres — cresceram 14% nos quatro primeiros meses de 2020, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 37,5 mil registros entre janeiro e abril deste ano, contra 32,9 mil no mesmo período em 2019, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Outro relatório, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que, somente no estado de São Paulo, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9%. O total de socorros prestados passou de 6.775 para 9.817, na comparação entre março de 2019 e março de 2020. 

“Não tem romance nem poesia na violência”, disse Regina Célia, co-fundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, antes de encerrar os 60 minutos de transmissão àquela noite. Em entrevista à Radis, ela explicou os fatores que podem estar por trás do aumento dos índices, deixando claro que a causa da violência doméstica não é a pandemia. Mas é verdade que, por conta do isolamento social, essas mulheres em situação de violência passaram a conviver 24 horas com os seus agressores. “Dessa forma, as fases da tensão e a da agressão ficaram mais duradouras, o que dificulta entrar na fase da ‘lua de mel’ na relação”, explica Regina. Ela se refere às três etapas do conhecido “ciclo da violência”, uma terminologia comum entre quem pesquisa o assunto e que faz com que seja possível identificar de forma mais assertiva um relacionamento abusivo.

Sob constante vigilância, diz Regina, essas mulheres têm aparelhos celulares nas mãos dos agressores, o whatsapp controlado, senhas bloqueadas. “Ele desconfia de qualquer movimento dela, a não ser que esteja dormindo ou que saia em algum momento”. Regina relata ainda uma preocupação extra, em tempos de pandemia: o caso de mulheres que, depois de agredidas, precisam ir a uma emergência. “Elas acabam encontrando a emergência contaminadíssima por covid-19. Como assegurar àquela mulher que ela será cuidada e não contaminada?”. Para Regina, algumas mulheres estão sustentando a dor e os machucados em casa porque estão com mais medo de morrer por covid.

Segundo a vice-presidente do Instituto Maria da Penha, nesse período, as ameaças ganharam ainda um outro aliado. “Os agressores agora inventam que os canais de apoio não estão funcionando, fazendo com que algumas mulheres aceitem essa falsa informação”. Ao contrário disso, durante a pandemia há tentativas de fortalecimento da rede de atendimento à mulher, as delegacias estão funcionando, bem como os centros de referência, afora o fato de os olhos do mundo inteiro estarem voltados para essa questão. “O pior que pode acontecer é essa mulher achar que está sem apoio e abandonada”, diz.  

A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Para qualquer um deles, deve-se ligar para o 180 e, no aspecto emergencial, para o 190 [Polícia Militar]. Durante a pandemia, outras ferramentas vieram se somar aos canais já existentes. É o caso da plataforma ISA.bot, uma robô programada para informar e acolher casos de violência online [acesse: https://www.isabot.org/], e o Mapa de Acolhimento, uma plataforma que conecta mulheres que sofrem ou sofreram violência de gênero a uma rede de terapeutas e advogadas dispostas a ajudá-las de forma voluntária [https://www.mapadoacolhimento.org/].  Para orientar profissionais da rede de atenção, a Fiocruz também lançou uma cartilha com informações sobre casos de violência doméstica e familiar no contexto da covid-19 [https://bit.ly/3e5788K]

Dias de horror e selvageria

“Só sabe os efeitos e as feridas, quem sobrevive a esse martírio”, disse a cearense Lenice Ferreira dos Santos, na caixa de diálogo de uma das “lives” sobre violência doméstica a que a reportagem assistiu, fazendo reverberar um sentimento comum entre muitas participantes naquele dia. Lenice casou aos 18 anos, grávida. Na noite de núpcias, a primeira violência. Enciumado, depois de desligar o som e expulsar os convidados da festa, o marido lhe deixou sozinha. Voltou muitas horas depois, na madrugada, embriagado. A essa, seguiram-se muitas outras agressões, físicas e psicológicas, de todos os tipos: espancamento, acusações, tortura, estupro, uma selvageria. Foi o que ela contou depois, em detalhes, por telefone à Radis.

Com dois filhos, Lenice não teve coragem de denunciar o agressor, mas depois de várias tentativas, conseguiu separar-se dele. O casamento durou cinco anos. As perseguições e marcas, muito mais tempo. Ela voltou a estudar, passou em concursos públicos — 20 anos como agente de saúde; 10, como auxiliar de técnica de enfermagem. Fez terapia. Namorou outras vezes. Descobriu-se feminista. Lançou um livro em que conta a sua história e de outras mulheres vítimas de violência doméstica. Hoje, a cearense escreve poemas, canta. Fez seu último show no dia de 16 de março, em Fortaleza, antes de entrar em quarentena. 

Nesses dias de pandemia, Lenice tem pensado nas mulheres que vivem uma relação abusiva. Diz que consegue partilhar a dor que elas sentem ao se verem presas, no espaço privado, com os agressores. Há grandes chances disso acabar em feminicídio. “Eu estaria em pânico”, imagina. “Sei que ele não iria obedecer ao isolamento social, sairia de casa e voltaria ainda mais agressivo, além de trazer o risco de me contaminar. Talvez quisesse fazer sexo comigo à força. Acho que eu estaria sofrendo todo tipo de violência”. Para essas mulheres, Lenice dedica toda a solidariedade e um conselho: “Tudo o que posso dizer é que elas não se sintam sozinhas. Que não fiquem caladas e, de algum modo, peçam socorro. É preciso denunciá-los. Hoje, eu não tenho dúvidas. Eu denunciaria”.

 [Leia entrevistas completas com Regina Célia Barbosa e Lenice Ferreira no site da Radis]

III.

QUEM CUIDA DE QUEM CUIDA?

Aos 26 anos, Anny Beatriz Antony é enfermeira e estudante de pós-graduação do Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fiocruz-Amazônia, onde integra um grupo de pesquisa sobre a situação de cerca de 860 mulheres na região que foram vítimas do zikavírus e se tornaram mães de crianças com microcefalia. “Com o isolamento social, fica mais difícil fazer o acompanhamento, mas o grupo tenta oferecer algum suporte”, contou à Radis. “A covid-19 já é um segundo surto que essas mulheres estão vivendo, uma nova doença que traz um agravante inclusive para as crianças que apresentam alterações, além da microcefalia”.

Durante a pandemia, Anny decidiu integrar voluntariamente um outro projeto voltado para o atendimento às gestantes e puérperas, o “Fale com a parteira”. Só em Recife, onde surgiu a ideia, são mais de 100 profissionais envolvidos. Em Manaus, juntamente com Anny, 10 enfermeiras obstétricas e quatro residentes revezam-se por meio de chamadas telefônicas e whatsapp, dia e noite, 24 horas por dia, de domingo a domingo, tirando dúvidas e orientando gestantes e profissionais de saúde. Nos mais de 100 atendimentos feitos até o final de maio, os relatos iam desde problemas de continuidade das consultas pré-natal até reclamações sobre as dificuldades de acesso aos exames de rotinas.

“Algumas contam que se deparam com unidades básicas de saúde (UBS) fechadas, sem orientações para onde se dirigir e sobre qual nova unidade de saúde acessar”, diz Anny. Há também queixas sobre a não realização de ultrassonografia. “As gestantes estão buscando as unidades de referência para a realização do exame, conforme o fluxograma de atendimento divulgado pela secretaria de saúde, no entanto, ao chegarem nas unidades, tomam conhecimento de que a realização do ultrassom é destinada apenas a gestantes de alto risco que estejam portando laudo ou documento comprobatório”. Para esse tipo de demanda, além de cobrar respostas dos órgãos responsáveis no estado e no município, o grupo conta com parceria do “Humaniza”, um coletivo de profissionais das áreas jurídica e psicológica, por meio do qual vem acionando o Ministério Público.

“Entendemos o momento de emergência que estamos vivenciando com a infecção de covid-19. No entanto, não é possível abrir mão do acompanhamento de pacientes que em um futuro próximo podem vir a descompensar e agravar ainda mais o cenário da saúde que, no presente momento, revela-se em colapso”, assinala Anny. Ela também relatou à Radis que tem observado a redução da oferta de planejamento reprodutivo na região. “Eles entendem que esses serviços são eletivos, o que não é verdade. A gente precisa ajudar essas mulheres a evitarem a gestação”.

O depoimento de Anny coincide com denúncias veiculadas na imprensa nacional relacionadas a dificuldades de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos durante a pandemia. Em colaboração com o portal The Intercept Brasil, repórteres das revistas Gênero e Número e AzMina produziram reportagem (20/4) em que relatam a situação do abastecimento de contraceptivos em muitos estados. Em São Paulo, foram informadas da suspensão temporária de procedimentos considerados urgentes. No Rio de Janeiro, capital do segundo estado mais afetado pelo coronavírus, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou ter cancelado as laqueaduras e vasectomias. Isso contraria orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda que o direito à contracepção deve ser respeitado “independentemente da epidemia da covid-19″, e do próprio Ministério da Saúde, que desde 8 de abril, considera todas as grávidas e mulheres no puerpério como um grupo de risco para a covid-19. 

Elaines, Déboras, Alessandras

É função do Estado promover saúde pública, mas nesse contexto de pandemia, como o Estado brasileiro vem olhando para nossas mulheres? Pensando sob um recorte de gênero, o que precisa ser incorporado pelas políticas públicas de saúde a partir desse momento? As perguntas foram direcionadas à Elaine Nascimento, pesquisadora da Fiocruz-Piauí. Ela chama atenção para o fato de que, na atenção primária, as unidades básicas de saúde são frequentadas majoritariamente por mulheres e crianças, que acessam os serviços por uma perspectiva preventiva. “Se não tem nenhum tipo de investimento, você está atingindo diretamente esse segmento populacional”. 

Mulher negra, assistente social e professora, Elaine participou da fundação do comitê Gênero e Raça dentro da Fiocruz. Nesse período, reconhecendo que está na posição privilegiada de exercer trabalho remoto, ela tem participado de inúmeros debates online, incontáveis entrevistas, em que faz a defesa de que é preciso incorporar um recorte de gênero às políticas públicas de saúde no Brasil. Mas, para isso, aponta que, antes de mais nada, é necessário um olhar plural. “Não existe a mulher brasileira. Existem as mulheres brasileiras. Nós, mulheres, representando o espectro mais diversificado inter-étnico-cultural, precisamos estar na construção das formulações e da implementação das políticas públicas”. Ao refletir sobre as estruturas desiguais de raça e de gênero, ela explica por que a pandemia de covid-19 causa impactos e desamparos diferentes. “As mulheres, de um modo geral, sofrerão violência pelo fato de serem mulheres, e as mulheres negras sofrerão ainda muito mais violência”.

Na entrevista que concedeu à Radis, Elaine disse que a pandemia, esse evento mundial sem precedentes, vai expor ainda mais as vulnerabilidades. “Esse estilo de vida humano que não respeita a natureza gera impactos ambientais sérios e produz agravos à saúde humana e ecológica de forma geral”. Para ela, talvez seja uma oportunidade para valorizar estratégias de sobrevivência baseadas em outros valores, como tem percebido nas articulações em rede e nos coletivos. “Sem solidariedade, sem cuidado, sem respeito, sem equidade nas relações, a gente dificilmente vai sair dessa pandemia com saldos positivos num cenário tão negativo”.

É também o que vem defendendo Débora Diniz, a antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) que em 2019 precisou deixar o país depois de sofrer ameaças por defender a descriminalização do aborto em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista à Folha de S. Paulo (6/4), ao responder se a pandemia atinge homens e mulheres de forma diferente, ela disse: “Quando o Estado não protege e nos abandona, é aí que a pandemia tem gênero, porque o cuidado cabe às mulheres”. Durante “live” promovida pela Anistia Internacional da qual Radis participou, em 20 de março, ela foi enfática: “Se há alguma esperança, alguma possibilidade de construção de mundo mais justo pós-pandemia, isso passa necessariamente pela circulação de valores feministas”.

Como Débora Diniz, outras mulheres vêm fazendo um convite para o reconhecimento do cuidado como algo fundamental para a proteção social. Em entrevista à Radis, que você pode conferir na página 32, a psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alessandra Xavier, defende que este momento da pandemia pode ser usado para descobrir recursos de como lidar com as dores, por meio da proteção dos vínculos e da solidariedade. “As conexões emocionais e a empatia precisam ser fortalecidas”. Trazer essa pauta à tona e fazer circular essas perguntas pode ser um começo — impreciso ainda, mas um começo.

[Leia entrevista completa com Elaine Nascimento no site da Radis]

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