O coração de milhares de brasileiros acelerou ao torcer por Rayssa Leal, atleta do Skate Street feminino, nas primeiras voltas da bateria classificatória das Olimpíadas de Paris 2024. Cada atleta, no início da competição, tem direito a dar duas voltas na pista e fazer várias manobras para somar uma boa pontuação. Porém, Rayssa, promessa da modalidade, além de medalhista mundial e olímpica, cai nas duas voltas ao realizar uma das manobras mais simples: o flip (girar o corpo com o skate).
Não teve como nenhum torcedor ficar com raiva da fadinha, como ela é chamada, pois, logo em seguida, ela foi abraçada pela equipe e família ao se desmanchar em lágrimas. Mais tarde, em entrevista, ela explicou que se deixou levar pelo nervosismo de ver uma torcida presencial tão grande de brasileiros gritando o seu nome, fazendo muito barulho, diferente do que ocorreu nas Olimpíadas de Tokyo, em 2021, que não teve público por conta da pandemia de covid-19.
Felizmente, o apoio da família e equipe — e rap tocando no fone de ouvido — ajudaram Rayssa a recuperar o foco e conseguir o bronze na final do Skate Street feminino. Nas entrevistas, a adolescente não teve vergonha de admitir o nervosismo por conta da pressão da torcida e, ainda, falou sobre a preparação psicológica que tem para conseguir fazer história no esporte, tornando-se a mais jovem brasileira medalhista em duas Olimpíadas. “Eu faço terapia duas vezes por semana não só para entender, óbvio, minha vida profissional, mas entender minha vida pessoal também que é muito importante, até porque eu sou uma adolescente ainda, tenho 16 anos” afirmou Rayssa Leal, em entrevista com Fátima Bernardes.
A discussão sobre a preparação de atletas de alto rendimento para momentos de estresse, tensão e ansiedade como grandes competições nunca esteve tão em alta na mídia. Contudo, essa demanda tem sido levantada há décadas por esportistas.
Um estudo sobre a saúde mental dos atletas de elite da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) demonstra que as demandas do esporte como pressão interna e externa para alcançar resultados, restrições alimentares, uso de substâncias para melhorar o desempenho, lesões, overtraining, burnout, além da falta de rede de apoio e atividades pessoais fora dos centros de treinamento, podem produzir um elevado nível de estresse e, consequentemente, afetar a saúde mental.
Os pesquisadores Colagrai, Nascimento e Fernandes afirmam que os fatores de estresse relacionados ao esporte somados aos de risco pré-existentes como genética, por exemplo, aumentam a chance da manifestação de transtornos mentais como: ansiedade, depressão, tentativas de suicídio, transtornos alimentares, transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e transtorno bipolar.
A queridinha dos EUA lembra que atletas não são máquinas
Nas Olimpíadas de Tokyo 2020, em 2021, o mundo inteiro ficou chocado ao ver uma das maiores ginastas da história mundial, Simone Biles, cair dos aparelhos durante as classificatórias e desistir de disputar a individual geral, uma das categorias que sempre garantia medalhas. Ela estava sofrendo um bloqueio mental que causava a perda de consciência espacial no ar, um problema perigoso para atletas que precisam saltar e realizar acrobacias que podem ser mortais quando não executadas corretamente.
Naquela competição, Simone ficou de fora de vários pódios e foi considerada corajosa pela imprensa ao falar sobre sua situação de saúde mental. Já nessas Olimpíadas de Paris 2024, ela retoma sua atuação impecável como atleta, tornando-se a maior mulher medalhista em Olimpíadas. Contudo, ela ainda demonstrou desconforto com a torcida quando caiu na final da trave e com recados nas redes sociais pedindo para que as pessoas parassem de comentar sobre sua aparência ou família.
Ainda, Biles é diagnosticada com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), uma condição neurobiológica que afeta a concentração e causa inquietação na pessoa. Ela não tem vergonha ao admitir que faz terapia e toma as medicações necessárias para garantir saúde mental. “Antes eu estava abafando o meu trauma e agora eu aprendi a falar sobre isso e liberar. Eu acho que nós pensávamos na terapia como uma fraqueza e agora eu penso que é uma força”, explicou Simone Biles durante coletiva de imprensa.
Esse episódio foi tão impactante que a equipe norte-americana de ginástica feminina tomou diversas providências para ajudar as atletas a lidarem com a ansiedade. Elas levaram para Paris o primeiro pet terapêutico da história das Olimpíadas, com direito a credencial de acesso. Beacon, um cachorro da raça Golden Retriever, estava acompanhando a competição nos bastidores para dar conforto em momentos de frustração e comemorar com as atletas quando a equipe ia bem nas provas, fazendo seu trabalho de dar suporte emocional tanto para Biles quanto para outras ginastas como Suni Lee.
O novo fenômeno da ginástica dá uma aula sobre saúde mental
Outra ginasta que também chamou atenção por conta da preparação psicológica é, simplesmente, a maior medalhista em Olimpíadas brasileira, Rebeca Andrade, considerada o novo fenômeno da Ginástica Artística, capaz de disputar com Simone Biles. Nas Olimpíadas de Paris, a brasileira, inclusive, ganhou o ouro na final individual do solo contra a norte-americana, que ficou com a prata.
Durante a transmissão pelo canal de televisão Sportv, a comentarista e ex-atleta Daniele Hypólito demonstra surpresa com Rebeca por sempre estar com o semblante calmo e alegre durante as apresentações, um contraste em comparação com as outras competidoras que exibiam expressões de tensão. Ao ser questionada sobre o que pensava antes das apresentações, Rebeca chocou os jornalistas ao revelar que gostava de pensar nas receitas gastronômicas que faria quando chegasse em casa, demonstrando um distanciamento do estresse que é carregar a camisa da seleção brasileira.
O segredo para a concentração inabalável de Rebeca é a preparação com a equipe multidisciplinar antes das competições. “A minha preparação foi na conversa mesmo, eu converso muito com a minha psicóloga. Eu tento cuidar ao máximo da minha cabeça e do meu corpo para criar aquele equilíbrio”, revelou a atleta em entrevista para a TV Globo. “Acho que é por isso que as pessoas falam que pareço tão tranquila, tão serena, porque estou ali fazendo o meu trabalho, assim como qualquer outro ser humano que tem um emprego”, reforçou Rebeca Andrade, trazendo à tona outra pauta importante que é o reconhecimento da profissão de atleta em tempo integral.
Mesmo tendo recebido o ouro na final individual do solo em Paris 2024 e prata no individual geral, ela declarou que não irá mais competir nessas categorias nos próximos jogos para respeitar o que seu corpo precisa, demonstrando maturidade. “Eu sei o que me faz bem e o que me deixa bem, mas eu gosto de compartilhar sempre com a minha própria psicóloga. Então, sempre quando estou me sentindo mais nervosa, mais ansiosa, eu converso com ela e ela consegue achar uma forma de me tranquilizar”, declarou a ginasta.
O poder de escolha e a coragem em respeitar os seus limites demonstram o trabalho mental que Rebeca tem realizado, assim como tantos outros atletas nessas Olimpíadas. Lorrane Oliveira, por exemplo, medalha de bronze por equipes na ginástica feminina teve que enfrentar um processo de depressão após perder a irmã caçula, Maria Luiza, de apenas 21 anos, por um suicídio. A atleta chegou a pensar em desistir de participar das Olimpíadas. “Essa equipe maravilhosa me ajudou diariamente. Foi difícil, chorava todo dia”, afirmou Lorrane para a imprensa, com a medalha no peito após a conquista.
Segundo os pesquisadores da Unicamp, Colagrai, Nascimento e Fernandes, instrumentos específicos para analisar a saúde mental no esporte de elite são escassos, sendo os mesmos da população em geral, enquanto os atletas apresentam maiores índices de distúrbios do sono ou alimentares, além das mulheres atletas terem taxas mais elevadas de transtornos mentais.
As dores e superações de problemas relacionados à saúde mental que os atletas precisam aguentar no cotidiano para figurar no lugar mais alto do pódio acabavam, por muitos anos, sendo escondidas por uma imagem plástica de perfeição. Porém, como Rebeca Andrade mesmo ressaltou, atletas são pessoas, profissionais como qualquer um. Admitir fazer terapia, o que antes era um tabu e visto como demonstração de fraqueza, tem sido uma forma dos atletas terem, até, compromisso consigo mesmos. Podemos ter esperança, então, de um futuro com a pauta da saúde mental sendo tratada com o mesmo grau de necessidade que o preparo físico.
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