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— O que você tomou para essa dor?

— Nada.

— Nada? Nem um chá?

— Ah, um chá eu tomei.

— Fez chá de quê?

— De boldo.

— Me conta como é esse boldo que você usa!

O diálogo, que ocorre durante uma consulta médica, continua. Fala-se das diferentes espécies que são chamadas de boldo, e que elas não têm as mesmas propriedades, daí a importância de saber diferenciá-las. A cena foi descrita pela médica de família e comunidade Carolina Reigada e faz parte do seu cotidiano na Unidade Básica de Saúde (UBS) onde ela trabalha. “As plantas medicinais aproximam os profissionais de saúde da população. Quando você abre espaço para a pessoa falar que tomou um chá, e valoriza esse conhecimento que ela tem, a consulta vai para outro lugar: a relação se torna mais próxima, a pessoa se sente segura, acolhida”, relata a médica, que atua na UBS 1 da Candangolândia, no Distrito Federal (DF), localizada a dez quilômetros do centro da capital.

Referência técnica distrital em fitoterapia, Carolina é egressa da primeira turma do Curso Livre e de Especialização em Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agrofloresta na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no DF. Assim como outros colegas de turma, ela pretende implantar um horto medicinal na UBS. “Para dar certo, toda a comunidade tem que estar envolvida nesse processo, que vai além do uso da planta medicinal e inclui semear, colher e cuidar, porque todo o processo é terapêutico, como foi durante o curso”, sublinha.

A técnica de enfermagem Keila Mascarenhas, da UBS 4 de São Sebastião (DF), é outra egressa do curso que planeja multiplicar seus aprendizados sobre morfologia, ação e diferentes formas de cultivo de plantas medicinais. Mas não é atrás de uma mesa que Keila e Carolina falam de seus planos. Elas estão com os pés na terra fofa, cercadas por diferentes aromas e texturas, tons de verde, marrom e outras cores, árvores frondosas e arbustos.

Espinheira-santa, abacate, canela, eucalipto, manjericão, camomila, arruda, alecrim, mirra, lavanda, orégano, erva-cidreira, carqueja, arnica, mastruz e tantas outras espécies estão lá. O cultivo é feito no Centro de Referência em Práticas Integrativas em Saúde (Cerpis), em Planaltina, a 30 quilômetros do centro de Brasília, um dos quatro equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) no DF onde estudantes e docentes do curso implantaram hortos medicinais agroflorestais biodinâmicos. Paisagens que proporcionam experiências sensoriais parecidas também podem ser encontradas nos outros três hortos, localizados na UBS 1 do Lago Norte, no Núcleo de Farmácia Viva do Riacho Fundo I e na Casa de Parto de São Sebastião. Ao todo, cerca de 150 espécies foram plantadas nos quatro hortos.

“Esses espaços saudáveis e sustentáveis contribuem para minimizar as desigualdades sociais, a má distribuição de renda e a falta de acesso a políticas públicas”, resume André Fenner, coordenador do curso e pesquisador do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília. Legados do curso, os hortos são abertos ao público e promovem a integração entre profissionais da saúde e comunidades locais, onde se vivenciam os múltiplos benefícios das plantas medicinais, desde o cultivo até o uso. São espaços de troca de saberes e, claro, de mudas.

“O manejo da planta já é um processo de saúde: equilibra os fluxos internos, os batimentos cardíacos, a pressão”, afirma Cristian Cruz, à frente da Gerência de Práticas Integrativas em Saúde (Gerpis) da Secretaria de Saúde do DF (SES-DF). “A pessoa, então, pode levar uma muda para casa e a planta fica ali exalando perfume. Como resultado, ela percebe uma melhora da capacidade respiratória, passa a dormir melhor, fica com mais disposição e bom humor”, explica.

Há mais de 20 anos na SES-DF, Keila trabalha desde 2016 com Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), com formações em reiki e arteterapia. Definidas como recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, as PICS atualmente oferecidas pelo SUS incluem acupuntura, homeopatia, medicina antroposófica, yoga, meditação e musicoterapia, entre outras. De acordo com o Ministério da Saúde (bit.ly/minsterio_pics), as PICS se somam aos tratamentos convencionais, mas não os substituem, e, igualmente, requerem profissionais habilitados.

“As pessoas estão muito desconfiadas da alopatia e de alguns medicamentos convencionais, que, muitas vezes, agridem o corpo”, relata Keila. É nesse contexto que os tratamentos mais naturais se revelam alternativas. “Mas os efeitos das plantas medicinais não são um fim em si mesmo, são o resultado de um processo de cuidado muito mais amplo”, adverte. Em vários aspectos, os hortos operam como espaços comunitários desse cuidado integral, além do seu valor pedagógico.

Cultivo de afetos

Palco de ações educativas, trocas de saberes e integração de conhecimentos científicos e populares, os quatro hortos foram campo de práticas dos 45 estudantes da primeira turma, que aprenderam muito mais do que cultivar plantas sem agrotóxicos ou outros venenos. Com sua primeira turma formada em abril deste ano, o Curso da Escola de Governo Fiocruz-Brasília é fruto de uma articulação do PSAT com a Gerpis.

Os alunos passaram a compreender o solo, os vegetais, os animais e os seres humanos como partes de um mesmo todo, conforme os preceitos da agricultura biodinâmica — que teve origem há quase 100 anos, com o trabalho do fundador da antroposofia, o cientista austro-húngaro Rudolf Steiner, e se conecta com saberes ancestrais. O método utiliza preparados biodinâmicos e calendários baseados na influência da lua, dos planetas e de outros astros sobre a terra e as plantas. Os preparados “são elaborados a partir de plantas medicinais, esterco e silício (quartzo), que são envoltos em órgãos animais, enterrados no solo e submetidos às influências da Terra e de seus ritmos anuais”, explicam Pedro Jovchelevich e Fernando Silveira Franco, autores do capítulo Agricultura Biodinâmica, no Dicionário de Agroecologia e Educação, lançado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) com a Editora Expressão Popular e o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) (bit.ly/dicionario-agroecologia).

A produção e a aplicação dos preparados biodinâmicos guardam alguma semelhança com os remédios homeopáticos e consideram questões que vão além das substâncias em si, incluindo aspectos espirituais, éticos e energéticos. A articulação de saberes se destacou durante o curso, segundo o egresso Juarez Martins, criador da empresa Horta Linda e do projeto social Uma Horta em Cada Porta. Desde criança, no interior do estado de Goiás, ele trabalhava na agricultura com a família, a partir de conhecimentos ancestrais. Saberes que ele trouxe para o curso e aos quais se somaram outros, como as técnicas de dinamização dos preparados biodinâmicos.

“O curso reforçou também a importância de fazer experimentações, observações e anotações sistemáticas”, afirma. Juarez conta que, em casa, aplicou as técnicas biodinâmicas em uma área da sua horta e percebeu que as plantas ali, em comparação com as áreas que não receberam o mesmo tratamento, apresentavam folhas mais resistentes e volumosas. “Depois de seis meses e de um trabalho conjunto, é nítida a exuberância que se encontra nesse ambiente: o espaço está vivo”, comemora também João Volkmann, produtor biodinâmico e um dos docentes do curso, referindo-se ao horto do Núcleo de Farmácia Viva do Riacho Fundo I, ressaltando, ainda, a redução de custos, já que a biodinâmica só utiliza elementos naturais.

Não são apenas observações isoladas. Conforme estudos citados por Jovchelevich e Franco no capítulo do Dicionário, “propriedades biodinâmicas mostravam maior qualidade biológica, física e química do que os solos oriundos de propriedades convencionais”. Afirmação com a qual Cristian faz coro. “Quando você compara um horto cultivado tradicionalmente com outro cultivado conforme a biodinâmica, você percebe a diferença na qualidade das plantas. Há evidências de que os preparados biodinâmicos se propagam no solo”, diz o gerente da Gerpis.

Ele lembra que o cultivo biodinâmico também se baseia em poesia, afeto, cultura e equilíbrio. “Há aspectos que são rituais, um processo de resgate da ancestralidade, que cumpre uma função. O ritual é um processo coletivo, que faz frente à atual cultura da competição”, avalia. “Se a pessoa não está bem e ela vai cultivar a terra, ela melhora da dor física e emocional”, defende. Vivência que pode ser constatada no horto implantado no Cerpis. Usuários do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da região têm frequentado o espaço semanalmente, com bons resultados, como melhora da autoestima e da sensação de bem-estar.

Iniciativa pioneira

O curso foi uma iniciativa ousada: a agricultura biodinâmica é recente no Brasil. Começou em São Paulo, na década de 1970, e se estendeu pelo Sul do país; no Distrito Federal, ela é ainda muito inicial. “A biodinâmica tem uma sofisticação, mas é viável, como demonstram os quatro hortos já implantados. E a nossa expectativa é formar novas turmas e levar essa experiência para outras regiões do DF”, planeja o gerente da Gerpis. Alguns trabalhos de conclusão de curso (TCCs) apresentados por estudantes da primeira turma trazem cartilhas sobre a implantação de hortos agroflorestais biodinâmicos.

Outros aspectos do pioneirismo da iniciativa são destacados pelo sanitarista André Burigo, da Agenda Saúde e Agroecologia da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz). “O curso reúne pessoas que já trabalhavam com as PICS e impulsionaram essa política nacional, um trabalho em rede, com várias organizações juntas, e iniciativas que já estão sendo realizadas e dinamizando os territórios a partir de hortos no SUS”, diz. “É o manejo da terra articulado com a saúde, mas não é só o cultivo agrícola de plantas medicinais: é o cultivo biodinâmico, em agrofloresta, dentro do SUS”, completa.

Além da agricultura biodinâmica, o curso aborda, ainda, sistemas agroflorestais, que “buscam conciliar o aumento de produtividade e a rentabilidade econômica com a proteção ambiental e a melhoria da qualidade de vida das populações rurais”, como define Franco em outro capítulo do Dicionário. Opostos à monocultura, esses sistemas harmonizam culturas agrícolas e espécies florestais, combinando suas características e organização no tempo e no espaço, e assegurando um equilíbrio ecológico, benéfico para a conservação da biodiversidade e, ao mesmo tempo, para a produção — pois criam um ambiente adequado em termos de sombra, umidade, nutrientes no solo e proteção contra pragas, entre outros. “A proposta é reproduzir ao máximo o ambiente natural de uma floresta. A ordem em que as plantas são cultivadas e a localização de cada uma delas têm uma razão”, explica o egresso Juarez.

A partir das plantas medicinais, na perspectiva de uma agricultura agroflorestal e biodinâmica, em conexão com a natureza, o curso — voltado para agricultores familiares, trabalhadores da saúde e representantes da sociedade civil organizada do DF e entorno — abordou temas como promoção da saúde, ambiente, trabalho, determinantes sociais da saúde e políticas públicas. “O foco dessa agricultura é o ser humano. Esse trabalho com a terra e as plantas promove a saúde das pessoas. Com essa formação, buscamos fomentar a vontade de mudar o mundo em cooperação com os outros”, avalia Ximena Moreno, agricultora, médica veterinária, mestre em gestão ambiental e docente do curso.

“Quem planta horto medicinal agroflorestal biodinâmico precisa ter a coragem de mudar o seu território”, concorda o médico de família e comunidade Marcos Trajano, da Gerpis, também docente do curso. Ele defende a implantação dos hortos como caminho para o fortalecimento do SUS, seus princípios e diretrizes, em especial o cuidado integral em saúde.

“Não é só uma relação de curar, é uma relação de cuidar”, reforça Cristian. Apesar dos benefícios já reconhecidos, essa prática ainda encontra resistências. “Já fui abordada por colegas me questionando por que, como enfermeira, eu passava parte do meu tempo mexendo com a terra”, conta Geise Rezende, da UBS 1 do Cruzeiro Novo (DF) e egressa do curso. “A população, no entanto, é muito receptiva a formas alternativas de cuidado”, enfatiza.

Indissociáveis da metodologia do curso, os hortos representam, justamente, essa ampliação da cultura do cuidado. “Cada egresso retorna ao seu território tendo feito a escolha de promover o cuidado emancipador, que não tutela as pessoas, mas que resgata sua autonomia e suas capacidades”, defende Nelson Filice de Barros, docente do curso e coordenador do Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Quem vive a experiência de implantar um horto acompanha esse rico processo de transformação. “A gente vê espaços antes sem uso serem tomados por ervas, aromas, sabores”, descreve a engenheira agrônoma Roseli Oliveira, da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Distrito Federal (Emater-DF), mais uma egressa do curso. O cuidado com a saúde se estende ao meio ambiente: os hortos prestam uma série de serviços ambientais, como melhora do microclima, polinização e proteção do solo contra erosão e polinização. A proposta é que, além das plantas in natura, eles forneçam também insumos para a produção de medicamentos fitoterápicos nas Farmácias Vivas. Uma produção com vistas a democratizar o acesso a esses produtos.

“Sonhar mais um sonho impossível Lutar quando é fácil ceder Vencer o inimigo invencível Negar quando a regra é vender […] E amanhã se este chão que eu beijei For meu leito e perdão Vou saber que valeu Delirar e morrer de paixão E assim, seja lá como for Vai ter fim a infinita aflição E o mundo vai ver uma flor Brotar do impossível chão.”

Os versos do poema Sonho Impossível, de Fernando Pessoa, recitados por Mauricéia Santana, sanitarista e professora do curso, em meio a exemplares de copaíba, pimenta-rosa, assa-peixe, estévia, cana-do-brejo e dezenas de outras espécies, no horto do Núcleo de Farmácia Viva do Riacho Fundo I, traduzem bem a expectativa de egressos e docentes: que o sonho continue mesmo após o encerramento das aulas, florescendo na distribuição de produtos naturais para outras UBS, na implantação de novos hortos e no fortalecimento da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos.

Conheça os hortos implantados no DF

CERPIS

Ao lado do Hospital Regional de Planaltina, o Centro de Referência em Práticas Integrativas em Saúde (Cerpis) realiza plantios desde 1983 e teve seu Núcleo de Farmácia Viva oficializado em 1999. A área recebe moradores da região, estudantes, pacientes do hospital e outros usuários do SUS. “Com a implantação do horto medicinal biodinâmico agroflorestal, mais do que plantas, queremos trazer pessoas. Queremos que elas venham, colham, peguem na terra, produzam”, informa o médico acupunturista e gerente do Cerpis, Marcos Freire. Os visitantes são orientados sobre os usos e as formas de preparo das plantas, mas a proposta é, sobretudo, valorizar o conhecimento que eles já trazem — para isso, são realizadas oficinas e rodas de conversa.

UBS 1 do Lago Norte

Logo na entrada, pequenas flores alaranjadas chamam a atenção. São de uma planta alimentícia não convencional, que atrai insetos e contribui para a proteção de outras espécies vegetais, destinadas à produção de fitoterápicos em outros equipamentos do SUS. No total, são mais de 100 espécies no horto, considerado pioneiro no sistema de produção biodinâmico agroflorestal no DF. Ele foi criado em 2017, mas, durante a pandemia, houve uma descontinuidade das ações, retomadas em 2021, junto com o curso. O espaço está sempre de portas abertas, e a comunidade é chamada a participar das atividades de manejo e educação em saúde. Quando é feita a extração de óleos essenciais, os aromas logo despertam a curiosidade de trabalhadores e usuários da UBS.

Núcleo de Farmácia Viva do Riacho Fundo I

Fundado há mais de 30 anos, o Núcleo é responsável pela produção de 13 medicamentos fitoterápicos a partir de oito plantas medicinais. Para a implantação do horto, foi feito um trabalho de identificação de espécies e estudo de sua cadeia produtiva, com o objetivo de que a população tivesse acesso às plantas medicinais. “Espaços de cultivo como esse valorizam a ecologia, o ambiente e a saúde”, destaca o farmacêutico Nilton Netto, responsável técnico pela Farmácia Viva, onde também trabalha o analista administrativo Flávio Quintino, egresso do curso. “Eu tinha a vivência administrativa de um laboratório de produção, mas me faltava a experiência do campo. Passei a ter maior contato com a terra e seus recursos, que podem trazer muitos benefícios para a população”, conta. Formado em biotecnologia, Flávio desenvolveu um olhar mais humanizado e atento à potência que reside nas coisas simples. “Às vezes, são folhinhas de uma planta que farão a diferença no seu dia, aliviando suas dores ou tensões”, exemplifica.

Casa de Parto de São Sebastião

Em seus mais de 20 anos de existência, já realizou mais de 5 mil partos humanizados, oferecendo atenção às mulheres do pré-parto ao puerpério. As plantas cultivadas no horto buscam auxiliar na recuperação após o parto, com foco no processo natural que a instituição adota. Como exemplos, a calêndula, o algodão e a erva-baleeira são espécies indicadas para o cuidado da parturiente e da criança. Com o horto disponível para as mães, completa-se um protocolo de cuidado de uma forma mais natural e menos agressiva. “Aqui temos um projeto que nasceu de muitos sonhos e muitas mãos”, revela a nutricionista Divina Torres Brandão.

O que são hortos biodinâmicos?

São espaços de cultivo baseados nos princípios da agricultura biodinâmica, que, além de não utilizar aditivos químicos, é praticada com atenção redobrada às questões ambientais e ecológicas, incluindo cuidados com o solo, a água, o ar e o manejo adequado de toda a área. A partir de uma cultura de cooperação, o cultivo não agride a paisagem onde é realizado; ao contrário, ele ocorre em harmonia com as outras plantas, os animais e os ritmos do planeta. Saiba mais: https://bit.ly/3kP7iGx.

* Da Fiocruz Brasília, em colaboração especial para a Radis
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