■ Colaborou Izabelly Nunes (Estágio supervisionado)
Uma idosa sem familiares localizados acumula lixo em sua casa por anos. Os vizinhos relatam a situação aos agentes comunitários de saúde (ACS), pelo risco de dengue, mas é sempre difícil encontrá-la em casa — ou porque ela, de fato, não está ou porque se esconde, como se não estivesse.
Equipes de saúde se reúnem para decidir qual a melhor estratégia para o caso. Ali estão médicos, agentes comunitários, agente de endemias, assistente social e, entre outros profissionais, psicólogas. É preciso olhar o usuário da saúde de forma integral e não apenas separando os problemas em especialidades. A importância do psicólogo, neste contexto, vai além de identificar os possíveis problemas psíquicos desta pessoa e determinar o seu encaminhamento para uma unidade especializada.
O que se vê é um esforço coletivo, com várias propostas para que se possa resolver a situação individual da senhora, mas que, dada a proporção do acúmulo de lixo, também estava se tornando um problema de saúde pública. Este é apenas um dos exemplos de atuação de um psicólogo dentro de uma equipe multiprofissional de Saúde na Família.
O atendimento multiprofissional na Saúde da Família foi criado em 2008 com o surgimento do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Porém, a partir de 2011, é que, de fato, o programa foi ganhando vida e forma, com um novo decreto que especificou o seu funcionamento. Em 2019, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, a iniciativa sofreu o seu maior baque: o núcleo — que amplia o olhar e as ações de cuidado, trazendo profissionais de diferentes áreas para a atenção básica — foi desarticulado.
No entanto, apesar do número de equipes ter caído, com uma redução de 17,2% entre 2018 e 2022, não foi exatamente o fim, visto que os governos municipais e estaduais mantiveram esse tipo de atuação, em alguma medida, mesmo sem a participação federal. Recentemente, a ideia do que era o Nasf foi resgatada pelo atual governo Lula e ganhou o nome de Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde (eMulti) [Leia mais aqui].
Radis visitou a Clínica da Família Anna Nery, no bairro do Rocha, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela faz parte da área 3.2 — o município do Rio de Janeiro é dividido em 10 áreas programáticas (AP) para gerenciar os serviços de saúde. Lá encontramos Elaine Aude, que trabalha com o Nasf desde 2018, tendo atuado já em outras clínicas da família na Zona Norte da cidade. Acompanhamos um dia de trabalho, em que ela se dividiu entre atendimentos individuais e ações coletivas e conseguiu conversar conosco para explicar um pouco sobre a função do psicólogo em uma clínica da família.
Formada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 2011, Elaine começou a se interessar, ainda no início da graduação, pelas questões de saúde mental e pela saúde coletiva, por ter tido a oportunidade de ser bolsista em diversos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), como nos Caps-AD (referência para pessoas que estão enfrentando problemas com álcool e drogas) e Capsi (voltado para o atendimento de crianças e adolescentes).
Atualmente, ela está terminando o mestrado acadêmico em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). A psicóloga afirma que a experiência vivida nessas unidades foi essencial para despertar o seu interesse para trabalhar com saúde coletiva: “A minha trajetória profissional é muito atravessada pela saúde mental e pela saúde coletiva, que são duas paixões para mim”, afirma.
O apoio é multiprofissional
Engana-se quem pensa que o atendimento de psicoterapia é uma prioridade na função do psicólogo na Clínica da Família. “Nós fazemos várias ações, mas a psicoterapia não, porque é um cuidado especializado e que precisa de regularidade, de frequência e, às vezes, de uma intensidade, que não é a nossa proposta e nem temos agenda para isso, mesmo porque estou presente em outras clínicas da família”, explica Elaine. O trabalho do psicólogo nesse caso é atuar em conjunto com a equipe multiprofissional e a de referência, ou seja, aquela que atende as famílias e a comunidade, para observar o processo de saúde como um todo.
A equipe multidisciplinar da Clínica Anna Nery, por exemplo, é composta por nutricionista, assistente social, profissional de educação física, enfermeira obstétrica e fisioterapeuta. “A nossa proposta é ser uma equipe de apoio para ajudar as equipes de referência da clínica no manejo dos casos que eles têm mais dificuldade, em que já fizeram todos os tipos de abordagem possíveis e não conseguiram dar conta daquela situação”, afirma.
Elaine também destaca a participação em atividades coletivas: “Fazemos grupos. Têm casos que a gente absorve, principalmente pensando na via do coletivo, e a gente também faz articulação com diversas redes, tanto com a rede de atenção psicossocial quanto com a articulação intersetorial, no caso de outros serviços que não sejam da saúde, como educação, assistência, esporte e lazer”, destaca.
Uma das características fundamentais de equipes multidisciplinares no SUS é a questão do apoio matricial [Leia mais aqui]. Elaine explica como ocorre na clínica: “Esse apoio pode acontecer tanto por meio de atendimento conjunto, que a gente chama de interconsulta, ou pode ser também no caso de uma visita domiciliar. Fazemos discussões de caso e nos articulamos com os outros serviços”.
A psicóloga relata que, na unidade em que trabalha, não é apenas uma equipe que faz o matriciamento: há a participação de um Caps ou de um Capsi, no caso de crianças e adolescentes, para a discussão das estratégias de cuidado, por exemplo. “Fazemos o atendimento individual também, porém pensando no sentido de que é preciso um espaço maior, de mais alguns encontros para poder analisar qual é o melhor projeto de cuidado para aquela pessoa. E o usuário está junto com a gente nessa construção”, conta.
Durante a nossa visita, ocorreu a discussão do caso de uma paciente idosa com problemas mentais, que precisou da união de esforços entre as equipes (básica e de apoio) da clínica e do Caps que atende aquela região. Os profissionais da clínica tentavam estabelecer o contato há dois anos com ela, sem sucesso, muitas vezes pela dificuldade de encontrá-la em seu endereço ou por se mostrar arredia, com o agravante de que nenhum familiar foi localizado. As informações conseguidas pela equipe eram trazidas principalmente por vizinhos [Leia mais abaixo].
Elaine explica que a equipe multidisciplinar de apoio não é para atuar como porta de entrada. “A ideia é que o paciente sempre tenha passado pelos outros profissionais da atenção básica. No entanto, não vou mentir para você, às vezes acontece, mas não é o ideal. Até porque aquela pessoa pode não ter só uma questão de saúde mental, como outras situações que precisam de cuidados. Pode ter hipertensão ou diabetes ou, até mesmo, tuberculose, por exemplo. Então, toda a equipe precisa conhecer o caso”, afirma.
Saúde mental presente na Saúde da Família
A psicóloga ressalta a importância da saúde mental na Atenção Primária e fala um pouco sobre as dificuldades e os pontos positivos do trabalho na Saúde da Família. “A principal dificuldade de trabalhar na atenção básica é o tempo. É um ritmo muito frenético. A atenção básica dá conta de muitas linhas de cuidado, não só a saúde mental”, reflete. Ela considera que outro desafio é organizar uma rotina que contemple esse cuidado — “principalmente levando em conta que a saúde mental não gera indicador, ao passo que outras linhas de cuidados geram, como, por exemplo, hipertensão, diabetes e tuberculose”.
Elaine lembra que é importante o bom diálogo e esclarecimento de funções entre equipes de referência e de apoio, para não haver grandes tensões. “É preciso fazer esse ajuste do nosso trabalho com os profissionais da equipe de referência. Vamos nos acertando, mas é fundamental que eles entendam que a saúde mental também faz parte da linha de cuidados deles. E nem todos conseguem compreender isso. Alguns ainda estão ligados a uma lógica ambulatorial. Mas, na verdade, a gente está aqui para compartilhar”, afirma.
Um dos grandes problemas de confundir o apoio matricial com o serviço ambulatorial é que os profissionais da equipe de apoio não têm como dar vazão à demanda. “Nosso papel é o de apoiar. É claro que, em alguns momentos, a gente acaba cedendo. Mas não podemos naturalizar isso. O objetivo é que as equipes se tornem mais resolutivas”, relata. Com o suporte do matriciamento, os profissionais de referência — que são aqueles responsáveis diretos pelo cuidado na atenção primária — conseguem dar conta de muitas questões sem precisar encaminhar o paciente para a atenção especializada.
Quanto ao lado positivo deste trabalho, Elaine avalia a importância de conseguir enxergar o usuário por um olhar que não é o da patologização, ou seja, somente pela perspectiva do adoecimento. “O ponto mais interessante de trabalhar como psicóloga nesse serviço é poder abordar os sentimentos humanos como algo que faz parte da vida das pessoas. É muito potente no sentido de não patologizar a vida”, pontua.
Ela conta que isso ocorre especialmente no trabalho com crianças. “As crianças mais agitadas muitas vezes já são classificadas como possível paciente com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). No entanto, é preciso entender que, por vezes, é apenas uma questão do processo do desenvolvimento daquela criança ou que ela está passando por alguma dificuldade na escola ou até mesmo sofrendo violência. Aliás, a violência é algo que atravessa muito”, relata.
“Trabalhar a saúde mental e os determinantes sociais na atenção básica é dar voz aos sujeitos, para que as pessoas tenham mais conhecimento das coisas que acontecem em sua vida, sem patologizar”
Elaine Aude, psicóloga
E ao falar sobre violência, Elaine também lembra da importância dos determinantes sociais, que afetam inclusive a saúde mental, e como isso é um dado a ser considerado no trabalho das equipes de apoio. “Trabalhar a saúde mental e os determinantes sociais na atenção básica é dar voz aos sujeitos, para que as pessoas tenham mais conhecimento das coisas que acontecem em sua vida, sem patologizar”, avalia. E completa: “Se vamos por esse caminho [de só olhar a doença], a gente vai dar o remédio, mas não resolve o problema muitas vezes”.
A realidade de cada lugar
Elaine já passou por muitas clínicas da família e afirma que, em uma mesma região, algumas questões podem variar em relação aos pacientes que chegam. “Cada clínica tem uma realidade diferente. Nessa unidade e em outra que é muito perto daqui, tem chegado muitos casos relacionados ao uso de álcool e drogas, à violência e questões envolvendo a infância. E no caso das crianças, de alguma forma elas sempre são atravessadas pela violência, e não percebia tanto isso em outras unidades”, descreve.
A ansiedade também está muito presente e a psicóloga vê uma relação direta dessa questão com a violência: “Pode ser desencadeada por causa de um tiroteio, por um relacionamento abusivo, por uma agressão ou até mesmo estupro”. A psicóloga percebe também um impacto maior nas questões de saúde mental após a pandemia de covid-19. “Com a pandemia, como se falava mais sobre saúde, as pessoas passaram a entender um pouco mais o que acontece com elas e assim buscaram mais ajuda, além da ansiedade originada com a própria covid, como os casos de covid longa”, completa.
Quando perguntada sobre o autocuidado do psicólogo, ela ressalta que o acolhimento entre os profissionais e a equipe também é importante, até para não levar trabalho para casa. “Tem sido possível trabalhar sem ficar angustiada em casa. O ambiente de trabalho é um fator que influencia muito nisso. Comecei há pouco tempo aqui [em 2023] e está sendo muito bom. Aliás, fui muito bem recebida em todas as unidades com as quais estou trabalhando agora”, conta.
Segundo a psicóloga, uma situação oposta a essa pode ser um fator que desencadeia problemas para o profissional. “Quando você está em uma unidade em que não existe um acolhimento tão interessante para os profissionais, o ambiente se torna bastante adoecedor. Isso já aconteceu comigo. Como trabalhador da saúde, a gente sabe o que precisa fazer para preservar a saúde física e mental, mas nem sempre as circunstâncias de vida facilitam, não é verdade?”, comenta.
Quando todas as equipes precisam se unir e intervir
Em uma tarde quente, na Zona Norte do Rio de Janeiro, vários profissionais se reuniram para debater mais uma vez o caso de G., idosa que há alguns anos acumulava lixo em casa. A equipe percebeu o agravamento da situação, pois o lixo já estava chegando ao teto do imóvel onde a senhora residia. Na sala da Clínica da Família, estavam médicos de família, a assistente social, a psicóloga, o gerente da clínica, agentes comunitários, uma equipe do Caps e o agente de endemias. Eles tentavam encontrar uma solução para aquela situação, já que ainda não tinham conseguido êxito nas tentativas de abordagem com G.
Muitas vezes ela era vista na rua e em locais próximos a sua residência carregando um antigo carrinho de feira — segundo os vizinhos, ele era utilizado para transportar o lixo até a casa. Uma das ACS diz que ela tinha resistência aos profissionais da área. A assistente social da clínica fez o levantamento e não conseguiu encontrar informações sobre parentes vivos, apenas que ela recebia benefício assistencial.
Os vizinhos eram os principais informantes sobre a situação de G., porque eram os únicos que conseguiam vê-la com mais frequência, especialmente S., morador da casa ao lado, que conseguia passar informações mais precisas para a equipe. Cadastrada há dois anos pela clínica, os agentes nunca foram recebidos por G. ou não conseguiam encontrá-la em casa, dificultando qualquer possibilidade de acolhimento.
O motivo da reunião era a busca por uma solução urgente para o caso, visto que com o lixo até o teto, tanto a saúde de G. quanto a dos vizinhos estava em risco. Discussões de casos como esse são comuns nas equipes multidisciplinares da atenção básica, no SUS: diferentes olhares contribuem para entender o contexto de vida das pessoas, que afetam suas questões de saúde.
A assistente social do Caps explicou a diferença entre uma abordagem compulsória, que precisaria de autorização judicial para entrar na residência de G., e uma possível internação involuntária, em que seria necessário chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e os bombeiros. A equipe reunida pesou também os possíveis riscos em cada uma das abordagens, inclusive para G. Um ponto importante que eles destacaram foi como são diferentes as visões de uma equipe emergencial e uma equipe de atenção básica que acompanha o caso no dia a dia.
Até que uma das agentes sugeriu fazer uma ligação para o vizinho S. para tentar descobrir se G. poderia estar em casa naquele momento. Com a resposta positiva, parte da equipe decidiu ir até ela para tentar mais uma vez uma abordagem, incluindo os profissionais do Caps. Eles finalmente conseguiram fazer com que G. fosse encaminhada a uma emergência psiquiátrica de um hospital municipal da região, para que depois tivesse o acolhimento no Caps. E, assim, corre mais um dia comum numa Clínica da Família da Zona Norte do Rio de Janeiro.
Do Nasf ao eMulti
Em 2024, a Estratégia Saúde da Família (ESF) completa 30 anos de existência. Mas, nas mudanças ocorridas nessas três décadas, quando o Nasf surgiu?
O Núcleo de Apoio à Saúde da Família foi criado em 2008 com o objetivo de ter equipes multiprofissionais atuando na ESF, com a integração entre médicos, enfermeiros e profissionais de diferentes áreas de conhecimento, como assistentes sociais, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, entre outros.
A ideia da iniciativa era trabalhar conjuntamente nas discussões de casos clínicos, em atendimentos compartilhados, seja na unidade de saúde ou nas visitas domiciliares, e previa também a construção de projetos terapêuticos, com base numa perspectiva territorial-comunitária e a partir das necessidades da população. A universalização do Nasf ocorreu a partir de 2011, quando houve atualizações na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e, assim, o Nasf se constituiu na estrutura pela qual ficou conhecido, mesmo com as particularidades de cada região.
Em 2017, com uma nova revisão da PNAB, o conceito de “Apoio” foi substituído por “Ampliado” — e as equipes passaram a se chamar Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB). Ao mesmo tempo em que, entre 2016 e 2018, havia grande número de equipes estabelecidas, foi a partir dessa época que uma série de desmontes no SUS passou a afetar o programa (Radis 183, dezembro de 2017).
Em 2019, quando houve a publicação da Portaria nº 2.979, o novo modelo de financiamento do custeio da Atenção Primária à Saúde em relação ao SUS (Previne Brasil) não incluiu os profissionais do Nasf-AB, o que acarretou a falta de manutenção ou formação destas equipes multiprofissionais na maior parte dos municípios brasileiros. Em janeiro de 2020, um novo decreto previa que não haveria mais o credenciamento de novas equipes.
Já em 2023, com o novo governo Lula, houve a publicação da Portaria GM/MS nº 635, em que foi novamente instituído e definido o incentivo financeiro federal de implantação, custeio e desempenho para as equipes Nasf-AB. Além disso, a nova gestão trouxe um novo nome: Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde (eMulti). Também foi estabelecido o aumento do custeio de financiamento para as equipes multiprofissionais e houve a inclusão de novas especialidades médicas na composição das equipes (cardiologia, dermatologia, endocrinologia, hansenologia e infectologia). No entanto, uma das questões ainda contraditórias é que, neste novo parâmetro, o apoio matricial não está totalmente claro entre suas definições, o que pode levar a equívocos no objetivo da formação destas equipes.
Matriciamento e as equipes multidisciplinares
Com a criação do Nasf, uma de suas concepções fundamentais foi o chamado matriciamento ou apoio matricial, que consiste em uma equipe multiprofissional que faz a retaguarda, com suporte técnico e pedagógico para a própria equipe de saúde diretamente envolvida. Este trabalho é realizado através de discussões de casos, temas, atendimentos e visitas domiciliares compartilhadas, ações conjuntas no território de atuação e resoluções terapêuticas.
O objetivo é que as equipes vejam seus usuários de forma integral e não de modo isolado, assim como aumentar a possibilidade de resolução de problemas de saúde com a própria equipe local, prevendo o encaminhamento para setores especializados quando realmente há necessidade.
Sem comentários