Um dos critérios diagnósticos do autismo é a rigidez cognitiva. Essa característica, que não é exclusiva da condição, pode prejudicar o desenvolvimento humano, porque, para aprender, é preciso abrir-se ao novo. Mas a rigidez dificulta isso. Dispor de recursos sadios para flexibilizar a cognição é essencial ao ganho de habilidades e ao bem viver de pessoas autistas.
O THC (tetrahidrocanabinol) é a molécula mais polêmica da cannabis – planta popularmente conhecida como maconha. Costuma ser o bode expiatório de discursos negacionistas e, com lamentável frequência, ainda se propaga que é uma substância perigosa e inútil à saúde. No entanto, essa molécula tem potencial terapêutico, como documenta a Fiocruz na nota técnica intitulada Estado atual das evidências sobre usos terapêuticos da cannabis e derivados e a demanda por avanços regulatórios no Brasil, de 19 de abril de 2023. Além disso, existem diversas evidências vivas dos benefícios proporcionados pelo THC.
Renato Malcher-Lopes, neurocientista e professor do Laboratório de Neurociências e Comportamento da Universidade de Brasília (UnB), explica que os canabinoides presentes na planta modulam a atividade do sistema endocanabinoide humano – “um dos principais gestores do fluxo de informações entre neurônios e entre circuitos neuronais. Por isso, em doses adequadas, a combinação de THC e CBD [Canabidiol], ou deles isoladamente, pode favorecer a flexibilidade desse fluxo. Isso repercute em todos os domínios da biologia, incluindo a aprendizagem”.
Ora, uma medicação fitoterápica e segura que promove flexibilização cognitiva e bem-estar deveria ser percebida como opção terapêutica de potencial imensurável ao desenvolvimento humano de autistas. Mas não é o que ocorre. Por um lado, representantes da classe médica e da comunidade autista são incisivos em recusar o debate por alegada falta de evidências científicas. Autistas, tenho certeza, são seres humanos. Mas parece que não se aplicam a eles as evidências sobre flexibilização cognitiva e bem-estar em humanos — talvez porque, no fundo, não sejam mesmo assim considerados. E entre os próprios oprimidos, sabemos, há aliados que coadunam a opressão.
Com relação ao autismo, Malcher acrescenta que justamente nesses casos há um amplo escopo de ações, conforme suas pesquisas: “Observamos redução de sintomas fisiológicos, cognitivos, emocionais, comportamentais, metabólicos, afetivos e sociais”. Além de terem efeitos colaterais graves, os fármacos mais utilizados não apresentam benefícios importantes em relação à interação social, comunicação, função motora e desenvolvimento intelectual — já o extrato de cannabis atua em todos esses campos, conforme explica o pesquisador.
Trata-se de uma possibilidade real de que autistas não vivam hipermedicalizados. Dentro da comunidade, há muitos relatos sobre adultos, crianças e até bebês sendo medicalizados de forma indiscriminada. Por que não substituir tantos fármacos por uma planta segura, com uso humano multimilenar? Fico pensando quais são os vieses de uma recusa tão pérfida.
Por outro lado, a indústria do autismo lucra com “terapias de adestramento”. Isso sim é baseado em evidências. Lembremos, pois, que há não muito tempo o médico que desenvolveu a lobotomia recebeu Prêmio Nobel. Lembremos as tendências eugenistas fundantes da psiquiatria. Pensemos. Analisemos criticamente os discursos sobre evidências que atravessam autismo, maconha e terapias. Consideremos que quem se desenvolve com uma planta cultivada no quintal não dá lucro à indústria farmacêutica nem cria dívidas impagáveis para custear “terapias” com cargas horárias dignas de um burnout.
Imagine se, de repente, as pessoas vissem o valor das evidências vivas. Se percebessem que maconha pode fazer bem a autistas, tão diversos em suas demandas. Se descobrissem que há milhares de variedades de maconha, com centenas de moléculas em combinações matematicamente amplas, capazes de atender a distintas necessidades humanas. Imagine se compreendessem que a planta conviveu conosco por milênios. Se entendessem quais interesses levaram à proibição há cerca de cem anos e quais interesses estão transformando cannabis em artigo de luxo da medicina. Imagine se soubessem que o remédio só é caro porque a planta é proibida. Se enxergassem que é seguro, para a saúde e para a sociedade, ter um cultivo doméstico. Imagine se a ciência médica honrasse a ética do cuidado. E pensemos um pouco mais.
Enquanto pensamos, muitos autistas e suas famílias permanecem em uma espécie de cárcere domiciliar, fazendo na internet o trabalho de explicar seu funcionamento, suplicando por socorro sem que isso incomode os especialistas. Pelo contrário. Pessoas e instituições até se apropriam desse conhecimento. Esse trabalho, dizem, possibilita a inclusão. Mas também contribui para o sustento de uma indústria de extorsão em forma de “tratamentos”, ao passo que caminhos humanamente mais dignos são rejeitados sem que o exercício do pensamento sirva à ética do cuidado.
■ Mulher autista, escritora, artista e educadora.
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Parabéns Flávia pela lucidez e coragem em tocar em temas rao importantes para tantas famílias!! Estaremos falando desse tema no congresso de autismo da Caminho Azul e peço licença para citar seu artigo. Abs