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O grau de convergência dos achados científicos sobre a relação entre a difusão de armas de fogo e crimes é praticamente consensual, de forma análoga ao grau de concordância por estudiosos de que o processo de aquecimento global e mudanças climáticas têm sido provocados pela ação humana.

No Atlas da Violência 2019 fizemos um resumo sobre essa literatura especializada, em que os vários estudos apontados, inclusive alguns baseados em revisões sistemáticas da literatura, deixam claro os achados de que a maior prevalência de armas de fogo está relacionada a maiores taxas de homicídios, de feminicídio, de acidentes fatais envolvendo armas e de suicídio nas sociedades.

As pesquisas empíricas mostram que a difusão de armas de fogo não apenas representa um fator de risco para toda a sociedade, mas conspira contra a segurança dos próprios lares dos indivíduos que possuem tais artefatos. Alguns estudos, como os de Kellermann e coautores, imputam risco até dez vezes maior de alguma pessoa ser assassinada, sofrer suicídio ou acidente fatal com arma de fogo, em lares onde haja armas, comparando a outras residências onde não haja.

Ao contrário da falácia armamentista sobre a qual o mundo estaria dividido entre “cidadãos de bem” e criminosos, até 40% do total de mortes violentas intencionais são devidas a motivações interpessoais, segundo estatísticas oficiais das polícias. São feminicídios, brigas de bar, brigas de trânsito, escaramuças por diferenças ideológicas, entre outras razões. Assassinatos perpetrados por um cidadão que nunca participou do mundo do crime, mas que, em meio a um conflito, sentindo-se empoderado, com uma arma na mão, terminou matando o outro.

Outro ponto importante é que quanto maior o número de armas no mercado legal, mais armas cairão na ilegalidade — seja por extravios, roubos ou vendas intencionais pelos próprios proprietários. A maior oferta de armas de fogo no mercado ilegal faz o seu preço diminuir aí, possibilitando que o criminoso mais desorganizado tenha acesso à mesma, exatamente o jovem criminoso que, com uma arma na mão, sai para praticar assaltos e termina cometendo latrocínio.

Por fim, pesquisas indicam que as chances de um cidadão armado ser assassinado em um assalto aumentam 56% quando o mesmo porta uma arma, comparando com a vítima desarmada. Ou seja, nas cidades, a arma de fogo é um excelente instrumento de ataque, mas um péssimo instrumento de defesa, em face do fator surpresa.

O The Journal of the American Medical Association (Jama) produziu num editorial uma receita clara de como policy makers [formuladores de políticas] podem atuar para reduzir letalidade violenta intencional: “(…) a chave para reduzir as mortes por armas de fogo nos Estados Unidos é entender e reduzir a exposição à causa, assim como em qualquer epidemia, e neste caso são as armas” (tradução dos autores).

No Brasil, negacionistas e viúvas de um Brasil colonial e da barbárie não apenas idolatram as armas de fogo, mas, sem qualquer evidência, disseminam fake news de que o aumento da difusão de armas pela população, proporcionada pela legislação irresponsável do Governo Bolsonaro, vem contribuindo para a segurança pública e para a diminuição de homicídios no país.

Em recente estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, coordenado por mim, baseado em metodologias econométricas robustas empregadas para estimar causalidade em fenômenos sociais, com dados para o país até 2021, encontramos que a cada 1% a mais na prevalência de armas, a taxa de homicídio, assim como a de latrocínio, aumenta 1,1%. Nesse trabalho, mostramos ainda que a difusão de armas de fogo não afeta a taxa de outros crimes contra o patrimônio, revelando que o argumento do uso defensivo da arma de fogo é um mito. No cômputo geral, encontramos que se não fosse a legislação de armas para todos, pós 2019, 6.379 vidas teriam sido poupadas neste período.

É fundamental que o próximo presidente da República lastreie suas decisões em evidências científicas. No que diz respeito à matéria aqui tratada, é urgente que se revogue integralmente todos os mais de 40 dispositivos infra legais sobre armas de fogo e munição sancionadas a partir de 2019. Além disso, é crucial promover no Congresso Nacional um aprimoramento na legislação de controle responsável desses artefatos, com a extinção da categoria de colecionadores de armas, entre outras aberrações ainda vigentes. Como sabemos, ciência e boa gestão salvam vidas.

■ Diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e coordenador do Atlas da Violência. Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência (3/10).
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