Altamira é um município paraense situado às margens do rio Xingu. Vez em quando aparece na mídia em manchetes trágicas. No início dos anos 90, virou notícia com o caso dos emasculados — uma série de crimes cometidos contra meninos de 8 a 13 anos que foram sequestrados, mutilados e mortos. Também já foi parar nos jornais por conta do massacre no presídio local, em 2019, que só perdeu em número de mortos para o Carandiru. E ainda há as denúncias sobre o sofrimento psíquico que maltrata os moradores da região desde a chegada avassaladora da hidrelétrica de Belo Monte. Já recebeu o título de cidade mais violenta do Brasil, segundo levantamento feito pelo jornal O Globo, em 2015. E recentemente, a jornalista Eliane Brum escreveu (27/4) que “Altamira é a cidade que mata o futuro”, por conta da assustadora quantidade de suicídio entre adolescentes.
Abril de 2020. A pandemia mal começara. O país já somava seis mil mortes por covid-19, mas a cidade paraense não contabilizava nenhuma. No entanto, naquele mês, nada menos do que 20 pessoas haviam tentado suicídio — nove delas, eram jovens. “Não é possível dizer que houve um agravamento de casos motivados pela pandemia. É preciso levar em conta todo o histórico da região”, diz Márcia Assis Bueno, diretora do Instituto Xingu e coordenadora de um projeto que vem prestando assistência emocional aos jovens e às famílias que perderam filhos para a depressão. Ela cita o contexto de desenraizamento provocado por um projeto de proporções faraônicas — como foi Belo Monte — como um gatilho poderoso, entre outros apontados por profissionais que estudam por que as estatísticas de suicídio na juventude são tão elevadas na região.
“Nosso jovem de hoje é a criança daquela época da construção da hidrelétrica, que cresceu passando por todo um processo de afastamento do local onde morava”, explica. “Muitos viviam numa região central ou no entorno do rio e de igarapés, e tiveram que se adaptar a uma realidade muito diferente e com uma ausência total do poder público”. Mas, segundo Márcia, o que ocorre em Altamira em termos de sofrimento psíquico é tão violento que desafia qualquer entendimento e é necessário levar em conta inúmeros fatores. De qualquer maneira, preocupados com as consequências que o isolamento, a perda de trabalho e a queda de renda financeira durante a pandemia poderiam trazer para essa população, e diante dos muitos casos de ansiedade e depressão, um grupo de profissionais decidiu fazer algo.
Com a colaboração do coletivo Mães do Xingu — que já atua no apoio e solidariedade às famílias vítimas de violência na região —, o Instituto Xingu deu nome e forma a um projeto que já existia com voluntários e agora foi um dos selecionados pela chamada pública para apoio a ações emergenciais, da Fiocruz. Foi batizado de “SOS à Juventude do Xingu” e conta com uma equipe enxuta composta por duas psicólogas, uma assistente social e um assistente administrativo. Quando Radis conversou com Márcia no início de setembro, havia 27 pessoas em terapia, acompanhadas de forma muito próxima pelo projeto. A escuta é feita em grupo ou individualmente e, quando necessário, os casos são encaminhados para os Centros de Atenção Psicossosial (Caps), Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), numa interface direta com a rede púbica de cuidado e atenção.
Com o estouro das lives, o grupo também tem feito uso das redes sociais para tratar de temas espinhosos via webinários. Numa semana, é possível assistir a uma entrevista com um profissional sobre “Depressão, dor da perda e relacionamentos”; na outra, a uma conversa sobre bullying ou ainda a um debate sobre “quando buscar ajuda de um profissional de saúde mental”. A equipe do “SOS à juventude do Xingu” estava se preparando para construir indicadores a fim de melhor mapear a região em relação ao sofrimento psíquico. Por enquanto, era possível dizer que, embora o índice de suicídio seja maior entre jovens do sexo masculino, o perfil do público atendido pelo projeto é predominantemente feminino. “Os homens ainda têm muita resistência em procurar ajuda”. Entre os relatos dos pacientes, as principais queixas são de ansiedade, crise suicida e ideação suicida. Mas Márcia acrescenta que a mutilação autolesiva é outro problema grave em Altamira. “Para você ter uma ideia, um posto de saúde de um dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) chegou a atender 30 jovens por dia com esse problema”.
Apesar dos bons retornos que o projeto tem recebido — em especial dos próprios pacientes —, Márcia ainda se emociona ao pensar no tamanho do caminho a percorrer até fazer a diferença para um número maior de pessoas. “Nós ainda somos muito insuficientes”. Foi assim que o grupo se sentiu, na última semana de agosto, quando recebeu a notícia de mais um suicídio entre jovens. Era uma menina, de 12 anos. “A gente tem certeza que ela nem sabia da existência do projeto”, lamenta. “E isso nos deixa completamente sem forças por reconhecer que ainda estamos longe de chegar em tantos que necessitam”.
Impotência e esperança
Véspera do feriado de 7 de setembro, 23 horas. Márcia recebe uma mensagem em seu celular. Um pai em desespero com a tentativa de suicídio da filha de 11 anos. “Naquele momento, eu não sabia o que fazer com essa informação”, diz ela. As psicólogas do projeto foram acionadas, por óbvio, e fizeram um primeiro atendimento emergencial aos pais e à criança. Mas Márcia se sentiu impotente. “Para onde eu ligo? A quem recorrer? Que equipamentos públicos podem nos ajudar a essa hora?” Foram apenas algumas das perguntas que a coordenadora do “SOS à Juventude do Xingu” se fez. Márcia tem queixas em relação à precariedade da rede de saúde mental em Altamira: “É incrível que, na cidade mais impactada pelo tema do suicídio, a gente não tenha uma política eficaz voltada para o assunto”. Os pais e a criança estão sendo atendidos pelo “SOS à juventude no Xingu”. Um dos cuidados que o projeto toma, continua Márcia, é para não patologizar o universo da saúde mental. “O que a gente precisa agora é desmistificar o papel do psicólogo e da psiquiatria. A gente precisa falar muito mais do sofrimento, em vez de sufocar informações como fizemos a vida inteira”, diz.
Por outro lado, é provável que a motivação de Márcia e equipe para seguirem adiante esteja em testemunhos como este, gravado por um dos jovens assistidos pelo projeto: “Meu nome é Wallace. Eu tenho 20 anos de idade (…) No dia 13 de abril, eu tentei suicídio e falo isso com toda clareza, como se fosse algo normal, porque, apesar de ser assustador, é o que acontece com muitos jovens na sociedade brasileira hoje”. O garoto parece à vontade ao compartilhar os momentos que vem experimentando desde que passou a ser atendido pelo “SOS à juventude do Xingu”. Ao final, ele diz que achava que tudo o que queria era “descarregar” e que pensava que a morte seria o fim de todas as dores. “Mas mudei totalmente a minha visão ao fazer acompanhamento psicológico. A morte não é o fim para as dores. A gente pode resolver as nossas dores de outros jeitos, vencer a depressão e a ansiedade de outro jeito”.
A continuidade do projeto é uma incógnita.
Sem comentários