Os serviços de saneamento que foram privatizados no Brasil são ineficientes, custam mais caro e são seletivos na hora de atender a população, conforme revelou a pesquisa “Quem são os proprietários do saneamento no país?”, divulgada em dezembro de 2017, e que repercutiu no Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama) 2018, no mês de março (Radis 188). Realizada pelo Instituto Mais Democracia, a pesquisa revelou que o mercado é concentrado, dominado por grupos financeiros e com multinacionais sendo atraídas pela rentabilidade que o segmento pode trazer para seus cofres. Esse é o primeiro estudo a mapear quem está por trás das empresas de saneamento e indica que a privatização do setor é um risco para efetivar o acesso à água e ao esgotamento sanitário como direito humano.
Segundo informações do estudo, há 26 grupos atuando em 245 municípios que passaram a concessão dos serviços de água e esgoto para a iniciativa privada. Silvia Noronha, pesquisadora do instituto, disse à Radis que essas empresas possuem 198 contratos em uma área onde vivem quase 47 milhões de pessoas (22% da população). “Identificamos alta concentração de mercado. São apenas cinco grandes grupos que estão à frente das empresas. Eles controlam 85% dos contratos em 88% dos municípios”, ressaltou.
De acordo com a pesquisa, a BRK é a maior empresa e detém quase metade das concessões do país (45%). A empresa, que até 2017 pertencia à Odebrecht Ambiental, foi comprada pela canadense Brookfield, e atua em 109 municípios, em uma área onde vivem quase 20 milhões de pessoas. A Agea vem em seguida, com 19% do setor, atuando em 19 municípios, seguida do Grupo Águas do Brasil (Saab), que está presente em 16 municípios e tem 6,5% de participação. A Iguá Saneamento opera em 36 municípios e tem quase 15% de participação, enaquanto a GS Inima Brasil tem oito contratos de concessão e detém uma fatia de 3% do mercado.
Nesse mercado, as empresas contam com um forte aporte do capital financeiro, destacou Silvia. “A financeirização do setor de saneamento já é realidade no Brasil. Os fundos de investimento estão ligados a 15 dos 26 grupos que controlam os contratos. Isso corresponde a mais da metade do total de empresas”, salientou. Para a pesquisadora, os números mostram um movimento que considera grave. “O interesse dessas empresas é dar retorno para os acionistas ou o grupo controlador. Com isso, a qualidade da prestação do serviço fica em segundo plano”, diz. A pesquisa revelou que, entre as líderes, a BRK Saneamento e a Iguá são totalmente controladas por instituições financeiras.
Serviço mais caro
A internacionalização do setor foi outro movimento detectado pela pesquisa. Os resultados identificaram que o capital estrangeiro tem participação em sete (27% do total) empresas do ramo, sendo que quatro delas estão entre as líderes do mercado: Agea, BRK Ambiental, Grupo Águas do Brasil (Saab) e GS Inima. Segundo Silvia, esse movimento não acontece apenas no setor do saneamento e sinaliza que o Brasil está no radar dessas empresas. “As empresas brasileiras demonstram que querem vender os seus ativos. Ao mesmo tempo, empresas internacionais perdem mercado em seus próprios territórios e buscam outros países para atuar”, explica.
Um outro ponto destacado pela pesquisadora é que a prestação de serviço privado faz com que a conta pese mais no bolso do consumidor. Entre 2003 e 2015, a tarifa das empresas estaduais passou de R$ 1,42 para R$ 3,20. Enquanto isso, o valor cobrado pelas empresas privadas foi de R$ 1,34 para R$ 3,43. “As companhias privadas tiveram reajustes maiores do que as públicas, ficando 11% mais caras acima da média nacional. A média nacional é puxada pelas empresas privadas e depois as companhias estaduais. As companhias municipais foram as que praticaram reajustes menores”, explica Silvia.
Segundo Silvia, a agenda privatista do Brasil vai na contramão da tendência mundial de cidades e países que têm retomado o controle da gestão da água e do esgotamento sanitário. A onda de reestatização ao redor do mundo conta com países como Estados Unidos, França e Alemanha, que lideram os casos. Na França, mais de 100 prefeituras aderiram à remunicipalização da gestão do saneamento. No Brasil, a cidade de Itu, em São Paulo, e 77 municípios do Tocantins tiveram os serviços reestatizados. E o motivo, para Silvia, é um só: “A ineficiência do serviço privado fez com que 180 cidades tenham remunicipalizado os serviços nos últimos anos”. A pesquisadora considera “ridículos” os resultados do serviço privado no Tocantins. “Em 1998, havia 0% de rede de esgoto, que passou para 22% em 2015. Fizeram muito pouco”, analisa.
Um outro problema apontado pela pesquisa é que as empresas privadas são seletivas na prestação do serviço e não atuam em todo o território. No Rio de Janeiro, Silvia citou à Radis que áreas mais pobres e com ocupação irregular, como favelas, são excluídas dos contratos. “Só há interesse por áreas mais nobres. Entendemos que isso leva ao aumento da desigualdade”, registra. Para ela, a Baixada Fluminense é um exemplo dessa atuação seletiva. “Nos primeiros cinco anos de contrato quase a metade da meta prevista na concessão foi feita pelo poder público. É uma falácia dizer que o serviço é privado. Privatiza, mas o volume de investimento na prática é público, pois são privatizações que continuam a contar com a participação do estado”, sentencia.
Direito humano
A partir dos resultados apresentados pela pesquisa, Edson Aparecido Silva, assessor de Saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e um dos coordenadores do Fama 2018, realizado em março, em Brasília (Radis 188), disse que o Estado não pode transferir a responsabilidade de elaboração, execução e implementação das políticas de saneamento para o setor privado. “Queremos o fortalecimento do Estado e nos colocamos contra qualquer forma de privatização. A visão do lucro é incompatível com a proposta que defendemos de universalização do acesso”, afirmou. Para ele, é urgente que o acesso à água e ao saneamento universal sejam incorporados às políticas públicas. “Infelizmente esse tema virou um apêndice, não está no centro do debate. Mas é preciso que a União, os estados e os municípios assumam um compromisso em torno dele”.
Durante o Fama, David Boys, vice secretário-geral da organização Internacional de Serviços Públicos (ISP), entidade que reúne sindicatos de 150 países, declarou à Radis que, enquanto o lucro médio anual das empresas públicas chega a 5% ao ano, as empresas privadas registram lucro de 20 a 25%. Segundo ele, há um forte interesse pela privatização de serviços, não só de água. “Detectamos que há uma rede impulsionada por forças internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, o Fórum Econômico Mundial de Davos, os bancos regionais e as multinacionais, que querem privatizar tudo. São empresas que atuam de forma direta e também como consultorias”, observou.
David recomenda que os diversos movimentos que estão envolvidos com a questão do saneamento se conectem para fazer frente a essa rede internacional. “Muitos dos atores que defendem a privatização trabalham no escuro. Trabalham sem debate público e sem consultar a população”, alerta. Por isso, ele entende que a luta contra a privatização tem de superar as barreiras regionais e se tornar mundial. “O problema do privado não é que ele tenha fim de lucro, mas a sua maximização. O privado escuta seus acionistas, não o povo”.
Lucro é incompatível com os pobres
No Brasil, a renda mensal de domicílios de quase 70% da população que não têm acesso ao abastecimento de água é de até meio salário mínimo por morador (média nacional de R$ 477), segundo dados do Plano Nacional de Saneamento (Plansab). Para a professora Ana Lúcia Brito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa é mais uma evidência da grande desigualdade no acesso ao saneamento no Brasil. Especialista na área, a professora comentou os números no painel que discutiu os valores, direitos e obrigações na prestação de serviços hídricos no 8o Fórum Mundial da Água (FMA), uma das sessões mais concorridas do evento, que ocorreu em Brasília, em março (Radis 188).
“A água para eles é uma commodity, ignorando que saneamento básico é um serviço essencial à vida e à promoção da saúde, um direito social e de cidadania”
Professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Luiz Roberto Santos Moraes
Ana Lúcia levantou inúmeros problemas na prestação privada do serviço e defendeu que o saneamento tem que ser entendido como um direito social. “Serviço público de água não pode ser um negócio”, observou. Ela sinalizou que o déficit em saneamento não será zerado pelo investimento privado. “Todos os países que universalizaram o saneamento tiveram massivos investimentos públicos”, afirmou. O problema para ela está na prestação do serviço por um negócio que maximiza os lucros. “Não vejo o lucro como um pecado, pois essa é a lógica do mercado. Mas é uma falácia dizer que o setor privado vai colocar dinheiro para as populações mais pobres. A lógica do lucro não é compatível com o atendimento dos pobres”, afirmou.
Na visão da professora, o Brasil não cumpriu o direito humano à água e ao saneamento, e com a privatização caminha no sentido oposto ao mundo. “Estamos nos afastando desse direito. Cortamos água de pobres que não têm dinheiro para pagar conta. Porque o governo Temer não edita uma medida provisória obrigando os prestadores a não cortarem água da população mais vulnerável?”, perguntou. Ana Lúcia falou ainda que o setor privado quer criar uma “Bolsa Água” seguindo o modelo do programa Bolsa Família para atender pessoas mais pobres. “Se isso acontecer, o Brasil vai subsidiar o lucro privado por meio do dinheiro público”, sentenciou.
Ana Lúcia lembrou também que há casos de empresas que são públicas, mas operam segundo a lógica privada do lucro. Como exemplo, ela citou a Sabesp, que detém a concessão dos serviços de saneamento básico para o estado de São Paulo, e que possui ações na bolsa de Nova Iorque. Segundo dados que apresentou, a Sabesp teve um lucro de R$ 903 milhões, em 2014, R$ 536 milhões, em 2015, e 2.946 milhões, em 2016. “Em minha visão, se uma empresa distribui lucro para acionistas vai faltar para investimento no serviço”, relatou.
A professora lembrou que, de acordo com a Lei 11.4445, de 2007, que estabeleceu a política para o setor, os prestadores devem assegurar os serviços e ações de saneamento nas áreas ocupadas pela população de baixa renda e também para a população rural, os povos indígenas e da floresta, quilombolas e outras minorias. Para isso, é preciso garantir que a prestação dos serviços hídricos seja orientada pela lógica do direito social. “Temos que fortalecer os serviços públicos municipais, divulgar experiências exitosas de gestão que operam na lógica de serviços públicos, reinvestir os valores arrecadados com tarifas na prestação de serviços”, observou. Além disso, ela entende que é preciso debater os processos de remunicipalização e promover a regulação do setor associada ao controle social.
Negócio e mercado
O Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) tem o saneamento como uma das prioridades do atual governo e vem apoiando a entrada da iniciativa privada no setor. Em outubro de 2016, o banco lançou um pacote de leilões de concessão e venda ao capital privado de 34 empreendimentos públicos de saneamento, aeroportos, rodovias, portos, ferrovias, mineração e energia. “Com a criação deste programa, uma das partes tocava no saneamento e o BNDES passou a ser o condutor do processo de melhoria do saneamento no país. Um banco não irá focar na questão social. Esta ação teve adesão de 18 estados, para o programa de modernização do saneamento, mas este número hoje já caiu para apenas 8 planos de diagnósticos de 8 estados. E destes devem chegar à conclusão três”, disse, em abril de 2018, Roberval Tavares de Souza, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes).
Conforme Radis noticiou (edição 172, de janeiro 2017), especialistas criticaram o pacote de desestatização. Para eles, o saneamento é uma área estratégica e cercada de condicionantes sociais e ambientais. Por isso, afirmaram, deve ter obrigatoriamente gestão pública, respeitando o que determina a Lei 11.445, de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais para a política federal de saneamento básico.
Professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Luiz Roberto Santos Moraes disse então à reportagem que as medidas tomadas pelo governo privilegiavam apenas os interesses do capital e contrariavam o bem-estar da grande maioria da sociedade brasileira já que passou a considerar todos os serviços públicos de saneamento básico como mercadorias. “A água para eles é uma commodity, ignorando que saneamento básico é um serviço essencial à vida e à promoção da saúde, um direito social e de cidadania”, afirmou.
O que se observa no modelo empresarial é que o saneamento é apenas uma das áreas de atuação dos grupos. Uma busca rápida nos sites dessas empresas, mostra que muitas delas atuam também em mobilidade, construção, mineração, agronegócio, reúso de água, águas industriais, água potável, incineração de resíduos e estações de tratamento de água, entre outras. O setor também está sendo ameaçado com a proposta de revisão do Marco Legal do Saneamento. O artigo 10-A, que trata sobre o chamamento público anterior ao contrato, vai permitir que os municípios contratem empresas privadas para fazer a coleta e tratamento de seu esgoto em lugar de companhias estaduais ou municipais.
A Abes é contrária à revisão, por considerar a medida antidemocrática e com potencial para desestruturar totalmente o setor já que acabará com o subsídio cruzado [municípios mais rentáveis, mais ricos, subsidiam os municípios mais pobres]. “Esse artigo induz as operadoras públicas e privadas a competir apenas por municípios superavitários, deixando os deficitários ao encargo dos municípios e estados”. Para a entidade, “os mais prejudicados serão os brasileiros mais pobres, que vivem sem acesso à água potável e esgoto tratado e sujeitos a contrair todo tipo de doenças, o que só piorará o quadro social do país”.

SAIBA MAIS
Pesquisa “Quem são os donos do saneamento no Brasil?”
- Folder – https://br.boell.org/pt-br/2018/04/16/quem-sao-os-proprietarios-do-saneamento-no-brasilo folder
- Vídeo – https://www.youtube.com/watch?v=tL31Y0ReTeY&feature=youtu.be
- Facebook – https://www.facebook.com/proprietariosdosaneamento/
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