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Médico, sanitarista, pesquisador e professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Jairnilson Silva Paim esteve à frente de importantes movimentos na década de 1970 que originaram grandes conquistas sociais, como a Reforma Sanitária Brasileira e a constituição do campo da Saúde Coletiva. Participou também da criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979. Tudo isso em meio às arbitrariedades e repressões de uma ditadura civil-militar.

Anos mais tarde, tais iniciativas pavimentaram a criação de um sistema de saúde universal, equânime e integral no Brasil. O SUS, nosso Sistema Único de Saúde. Paim, que lá esteve, enaltece a força da coletividade: “Ainda que eu tenha participado desse movimento e da criação dessas entidades, preciso ressaltar o caráter fundamentalmente coletivo dessa atuação”, enfatiza.

Autor de livros consagrados, como O Que é o SUS (Editora Fiocruz, 2009) e a Reforma Sanitária Brasileira: Contribuição para a compreensão e crítica (Editora Fiocruz, 2008), Paim foi entrevistado por Radis por conta dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964, fato que marcou o cerceamento da liberdade política e do pensamento crítico no país por mais de duas décadas. 

Na entrevista, ele analisa as sequelas deixadas pelo regime militar e conta como foi viver e militar nesse período sombrio. “A resposta da nossa geração foi a luta contra a ditadura e a aposta na democratização da sociedade, do Estado, da cultura, da educação e da saúde”, afirma.

Jairnilson Paim. — Foto: Acervo pessoal.
Jairnilson Paim. — Foto: Acervo pessoal.

Quais foram as principais mudanças no modelo de saúde pública ocorridas no Brasil antes e depois do governo militar? 

Antes da ditadura civil-militar implantada em 1964, especialmente na década de 1950 e início dos anos 60, discutia-se no âmbito da saúde pública convencional se a saúde conduziria ao desenvolvimento ou se seria apenas um subproduto do desenvolvimento econômico. Nas publicações da época não se constatava uma sistematização das distintas dimensões da saúde, seja como estado da vida, área do saber ou setor produtivo. Nem havia o conceito de complexo econômico industrial da saúde (CEIS) elaborado, muito menos políticas formuladas nessa perspectiva.

Assim, os que entendiam saúde como assistência médica, argumentavam que a sua expansão não levaria ao desenvolvimento, elevando simplesmente os gastos governamentais. Já aqueles que acreditavam ser a saúde um fator de desenvolvimento, baseavam-se no conhecido ciclo da pobreza-enfermidade, a partir do qual uma população saudável — entendendo saúde como estado vital — contribuiria para o desenvolvimento e este por sua vez, virtuosamente, produziria mais saúde. Enquanto muitos sanitaristas progressistas abraçavam esta tese e colaboravam, talvez involuntariamente, para que os economistas do governo evitassem investir no setor saúde, prometendo que a saúde resultaria do desenvolvimento econômico. 

Assim, deixavam que a assistência médica, componente limitado do setor saúde, fosse apenas assunto de interesse dos médicos e dos empresários que já apostavam na ampliação dos seus negócios ou, no máximo, para aqueles profissionais preocupados com a expansão da medicina previdenciária e com a administração de hospitais, serviços de urgência e postos de assistência médica (PAM), bem como seus contratos e convênios.

Somente no bojo da conjuntura das reformas de base propostas pelo governo João Goulart parece emergir uma discussão ampla da saúde, com uma perspectiva mais integrada, tal como revela a 3ª Conferência Nacional de Saúde, em 1963, que contemplou a descentralização, a municipalização e ações básicas de saúde, entre outros temas relevantes, visando à implantação de um sistema nacional de saúde unificado.

Com o golpe, essa temática é ignorada, a discussão é interrompida, interditada e reprimida, enquanto a saúde pública não era priorizada. A ênfase do governo federal, explicitamente, era sobre a assistência médico-hospitalar, reduzindo ou contendo os investimentos públicos e privilegiando a iniciativa privada.

Como o senhor enxerga o movimento de privatização da saúde acentuado àquela época e que impactos ou sequelas a ditadura civil-militar deixou à saúde pública brasileira?

As forças que tomaram de assalto o Estado brasileiro naquela época adotaram o liberalismo econômico como doutrina orientadora das políticas implementadas, cortando gastos sociais, de modo que a privatização da saúde representou uma política estatal, radicalizada entre 1968 e 1973. Entenderam, desde então, que o setor saúde pode ser um locus de acumulação, realização e reprodução do capital, buscando no Estado o respaldo jurídico-político para o empresariamento da medicina e a expansão dos negócios e do mercado.

Entre as sequelas dessa política, podem ser mencionadas a crise do setor saúde, a redução do orçamento do Ministério da Saúde e a elevação da mortalidade infantil e das taxas de desnutrição, tuberculose, malária, doença de Chagas, transtornos mentais, acidentes de trabalho e de trânsito, entre outros, além de epidemias como a da meningite.

Essa política cristalizou uma dicotomia entre a chamada saúde pública, confinada no Ministério da Saúde, e a assistência médico-hospitalar, concentrada na medicina previdenciária dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs, a exemplo do IAPC, IAPB, IAPM, IAPETEC, IPASE e depois INPS e INAMPS), nas empresas médicas, nas instituições filantrópicas, nos hospitais, laboratórios e consultórios particulares. A unificação desses serviços em um sistema nacional de saúde foi até tentada nos últimos governos dos generais, mas não obtiveram êxito.

Tomando como base as informações publicadas em sua obra clássica O que é o SUS, por que os militares optaram por concentrar esforços em ações individuais (curativas) em detrimento das preventivas (coletivas) e que consequências o negligenciamento da saúde pública acarretou ao Brasil nos anos que sucederam o golpe?

Do ponto de vista ideológico, o liberalismo econômico aposta no individualismo e no mercado como ordenador das relações sociais. Só admite, em princípio, a intervenção estatal naquilo, e somente naquilo, que o indivíduo e a iniciativa privada não possam fazer. Não tem compromisso com direitos sociais nem com a redução das desigualdades na sociedade. 

A saúde pública convencional, derivada e dependente dessa doutrina, fica restringida ao controle de epidemias ou endemias, à vigilância sanitária, à vigilância epidemiológica, às campanhas sanitárias, programas de imunização e prevenção, ao saneamento e, no limite, na atenção à saúde dos pobres.

E até mesmo essa saúde pública tradicional que segue o modelo americano da Fundação Rockefeller foi negligenciada pela ditadura. Algumas das consequências e impactos dessas políticas de certo modo foram enumeradas na resposta anterior. Elas atravessam o setor saúde, comprometem as condições de saúde da população e seus determinantes, prejudicando até mesmo o saber em saúde, seja na consciência sanitária dos indivíduos e grupos sociais, seja na produção de conhecimentos científicos quando ignoram a determinação social e ambiental da saúde.

Jairnilson Paim. — Foto: Egberto Siqueira – ISC-UFBA.
Jairnilson Paim. — Foto: Egberto Siqueira – ISC-UFBA.

Ainda no governo militar, o senhor também cita em sua produção literária ter havido uma grande fragmentação dos serviços de saúde no país. Como enxerga essa fragmentação?

Em um estudo censurado pelo governo militar durante a 5ª Conferência Nacional de Saúde (1975), havia argumentos e dados que indicavam um “sistema de saúde” do período autoritário com as seguintes características: insuficiente, mal distribuído, descoordenado, inadequado, ineficiente e ineficaz. Essa fragmentação, porém, tem raízes históricas e sociais. 

Assim, inúmeros intelectuais, cientistas sociais e outros pesquisadores contribuíram para pensar o Brasil, suas instituições e políticas. Esse fenômeno da fragmentação expressa a assimetria de poder entre as classes sociais, interesses diversos de grupos e corporações, dependência econômica e político-ideológica de países do Norte global, séculos de violência contra indígenas e de escravidão das negras e negros, fragilidade da cidadania e da organização de trabalhadores, patrimonialismo, clientelismo, insuficiente consciência política da população etc. Como escreveu Darcy Ribeiro, aos trancos e barrancos assim o Brasil deu no que deu…

A resposta da nossa geração foi a luta contra a ditadura e a aposta na democratização da sociedade, do Estado, da cultura, da educação e da saúde. Nesse particular, emergem, posteriormente, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB), a construção da Saúde Coletiva e o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Falando um pouco de sua vivência, como foi cursar Medicina no período mais rigoroso do regime militar?

Não costumo falar da minha vivência durante a ditadura. Aliás, em meus textos e entrevistas, evito tratar de questões pessoais ou subjetivas. Prefiro analisar os fenômenos e fatos na sua dimensão coletiva, social, objetivamente, sempre que possível. Mas, respondendo à sua pergunta, diria que essa vivência foi mais expressiva e dolorosa ao ingressar na Universidade. 

No momento do golpe, eu tinha apenas 15 anos e nada entendia de política. Recordo que as primeiras percepções que tive do regime militar foram logo nos primeiros dias daquele tenebroso abril, quando soldados armados impediram que meus amigos e eu chegássemos à praia que frequentávamos para nadar e pescar, próxima de um quartel do Exército, no bairro do Monte Serrat, em Salvador. Ou quando ordenaram, arrogantemente, que meu pai apagasse as luzes do carro ao passar por uma patrulha numa blitz. 

Somente dias depois chegavam as notícias da perseguição ao presidente Goulart e seus ministros, da traição do Congresso Nacional, da prisão do governador [Miguel] Arraes e do prefeito de Salvador, entre outros, da invasão de sindicatos e da repressão aos estudantes e suas entidades.

Nos anos seguintes, soube por um deputado federal de oposição, amigo da família, da invasão da UnB [Universidade de Brasília] pelos militares, quando fizeram um ‘corredor polonês’ para espancarem os estudantes, além de outras tantas prisões e arbitrariedades contra intelectuais, cientistas, professores, trabalhadores e líderes sindicais. Novas informações críticas me chegavam através das letras de música e de amigos ligados ao teatro e à poesia.

Já na Faculdade de Medicina da UFBA tive algum conhecimento e análise política, junto ao Diretório Acadêmico, no jornalzinho que criamos e nos discursos das lideranças estudantis do Diretório Central dos Estudantes (DCE), da União dos Estudantes da Bahia (UEB) e da União Nacional dos Estudantes (UNE) — a UEB e a UNE eram consideradas clandestinas).

E sobre a repressão política daquele período?

Em 1968, nós nos mobilizamos diante do assassinato, pela repressão militar, do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, no Calabouço (um restaurante no Rio de Janeiro), em março, bem como nas assembleias, nos comícios ‘relâmpagos’ e nas passeatas do movimento estudantil do Maio 68, nos grupos de estudo, nas greves de estudantes e na ocupação da Faculdade de Medicina [da UFBA], no Terreiro de Jesus, durante o mês de junho, depois invadida pelos milicos.

1968, “o ano que não terminou”, conforme o livro de Zuenir Ventura. Para mim, terminou tentando visitar amigos presos nos quarteis, após o Congresso da UNE em Ibiúna, e finalmente encarando o AI-5, em 13 de dezembro. Mais um golpe dentro do golpe. Assim, vários colegas foram afastados da Universidade pela aplicação do Decreto nº 477 (26/2/1969) e nós que permanecemos na UFBA construímos alguns espaços de discussão, criando o Encontro Científico de Estudantes de Medicina (Ecem), que só foi possível ser realizado em 1969 (Salvador) e em 1970 (Fortaleza), promovendo seminários e debates junto ao Diretório Acadêmico e a centros de estudos, como o do Hospital Aristides Maltez. 

Como representante da minha turma no Departamento de Medicina Preventiva, recém-criado, passamos a discutir os problemas de saúde da população, a organização dos serviços de saúde e a participação comunitária, desenvolvendo as chamadas atividades extramuros nos bairros periféricos de Salvador e nos municípios de Cruz das Almas e Conceição de Almeida, inclusive pesquisa e educação em saúde.

Contudo, na minha formatura em Medicina, foi proibida a cerimônia de colação de grau e a realização de discursos do paraninfo e dos estudantes, restando a realização de uma missa na Catedral Basílica pelo Cardeal D. Avelar Vilela. Sou parte, então, da ‘geração de 1968’, com seus fracassos e vitórias, equívocos e acertos.

Jairnilson Paim. — Foto: Acervo pessoal.
Jairnilson Paim. — Foto: Acervo pessoal.

O senhor é reconhecidamente uma das lideranças do movimento da Reforma Sanitária, tendo também participado da criação de importantes entidades de pensamento crítico e de democratização da saúde, como o Cebes e a Abrasco, no fim dos anos 1970, e do próprio campo da Saúde Coletiva. Qual foi a importância desse movimento de militância durante o governo autoritário para a consolidação da Reforma Sanitária Brasileira, que posteriormente levou à criação do SUS?

Ainda que eu tenha participado desse movimento e da criação dessas entidades, preciso ressaltar o caráter fundamentalmente coletivo dessa atuação. O livro de Sarah Escorel, intitulado Reviravolta na Saúde, o meu sobre a Reforma Sanitária Brasileira — de livre acesso pela Editora Fiocruz — e dois mais recentes, o de Lígia Vieira da Silva (O campo da Saúde Coletiva) e o organizado por Sonia Fleury (Teoria da Reforma Sanitária Brasileira), recuperam parte dessa história. 

Sem dúvida, as obras revelam a importância da militância durante os governos autoritários, assim como da ação política de sujeitos individuais e coletivos para o avanço da RSB, sobretudo na 8ª Conferência Nacional de Saúde e na Assembleia Nacional Constituinte, culminando com a constituição do campo da Saúde Coletiva e com a criação e implantação do SUS. 

Apesar dos percalços e do muito que ainda se há de fazer, na minha opinião, essas lutas tiveram êxito. 

“Defender a democracia é defender o direito à saúde e o SUS”

É possível pensar na manutenção de um sistema equânime e universal como o SUS em um governo não democrático? Por que defender o SUS é defender a democracia?

Responderia a primeira questão com um rotundo não! Por isso, distintas gerações no Brasil têm lutado pela democratização da saúde, entendendo, presentemente, que defender a democracia é defender o direito à saúde e o SUS.

Enquanto muitos de nós denunciávamos o golpe de 2016 contra a presidente Dilma, as ameaças à democracia, o desmonte dos direitos sociais, a “cidadania em perigo” (título do livro lançado neste ano pelo Cebes), as tentativas de golpe perpetradas por neofascistas, desde 2019, que desembocaram nas ações terroristas de dezembro de 2022 e nos ataques golpistas violentos contra os três poderes do Estado brasileiro no dia 8 de janeiro de 2023, outros preferiam acreditar que as “instituições estão funcionando” e que a democracia não estava em risco.

Mas a sociedade brasileira continua ameaçada de retrocessos, apesar da eleição do presidente Lula e do empenho desse terceiro governo composto por forças políticas e sociais muito heterogêneas cujo lema é “união e reconstrução”. Portanto, todas as pessoas, instituições e entidades que defendem, efetivamente, o SUS precisam se organizar e atuar politicamente, mobilizando corações, mentes e braços para avançar no aprofundamento da democracia e ampliar as bases políticas e sociais que sustentam a RSB, os direitos humanos, o SUS e, em última análise, o direito universal à saúde. 

A revista Radis, o Conass [Conselho Nacional das Secretários de Saúde], o Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], as universidades públicas, a Fiocruz, as escolas de saúde pública e institutos de saúde coletiva têm sido, historicamente, parceiros no processo da RSB.

Que caminho seguir?

A experiência e os acúmulos recentes, a partir da pandemia da covid-19, quando o Conselho Nacional de Saúde, a Abrasco, o Cebes, a Rede Unida, entre outros, constituíram o sujeito coletivo denominado Frente pela Vida, devem ser acionados intensamente para que os compromissos assumidos pelo presidente Lula, em 5 de agosto de 2022, assim como as deliberações da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2023, possam ser concretizados.

Defender o trabalho da Ministra da Saúde, Nísia Trindade, e sua equipe contra as investidas dos setores conservadores e até mesmo do chamado ‘fogo amigo’, propugnando pelo avanço das políticas em consonância com a RSB e com o SUS democrático são, atualmente, ações fundamentais do movimento sanitário e das trabalhadoras e trabalhadores de saúde.

Os espaços democráticos ampliados pelas conselheiras e conselheiros de saúde nos níveis local, municipal, estadual e nacional, como as pré-conferências de saúde em curso, necessitam ser ocupados na conjuntura pelos movimentos sociais progressistas para sensibilizar a sociedade e construir alianças no sentido de alcançarmos uma correlação de forças favorável à radicalização da RSB, ao controle social das políticas públicas e à consolidação do SUS.

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