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Muito além da regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a venda de produtos à base de maconha para fins medicinais, o neurocientista Sidarta Ribeiro defende que o futuro da medicina está no uso de psicodélicos como a maconha, o LSD e a ayahuasca. Essas substâncias aumentam as sinapses do cérebro e podem ser a chave para doenças como Alzheimer, Parkinson e depressão, aponta o pesquisador de 48 anos que ajudou a fundar o Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ao permitir a venda de remédios à base de cannabis nas farmácias, mas manter a proibição do cultivo no país, a Anvisa deu apenas um passo simbólico, mas nada efetivo, segundo Sidarta, pois a maconha medicinal vai continuar pouco acessível para a população. Atualmente, as empresas precisam importar os componentes da planta, já que ela não pode ser cultivada em solo brasileiro — o que encarece a venda para as pessoas que dependem do tratamento com essas substâncias.

A ciência do cérebro, no entanto, aponta em outra direção e o uso de psicodélicos na saúde tem um “futuro promissor”, nas palavras do neurocientista que estuda há quase três décadas a biologia da mente. “Não se trata do consumo indiscriminado, mas em doses muito baixas e muito esporadicamente”, explica em entrevista exclusiva à Radis. Um dos campos científicos em que o Brasil possui maior destaque internacional é a neurociência e Sidarta é um dos responsáveis por isso: o Instituto do Cérebro da UFRN, que ele fundou e do qual hoje é vice-diretor, promove pesquisas sobre o que acontece na mente durante os sonhos e os efeitos de substâncias encontradas em plantas como a cannabis para a saúde humana. Os estudos desenvolvidos por seus pesquisadores já comprovaram, dentre outras coisas, que o DMT (dimetiltriptamina) presente na ayahuasca, bebida do Santo Daime, atua como antidepressivo e que o LSD (dietilamida do ácido lisérgico, obtida a partir de um fungo) pode ajudar a conter o declínio mental que acompanha doenças como o Alzheimer.

Essas conclusões têm sido chamadas de “renascimento psicodélico” e são, para Sidarta, a constatação científica de conhecimentos milenares da humanidade. Contudo, ainda há um longo percurso até reconhecer os benefícios dessas substâncias, pois as evidências se chocam com interesses da indústria farmacêutica e preconceitos entranhados na sociedade. “O grande pesadelo é que a maconha é uma farmacopeia inteira. Se essa planta puder ser cultivada em casa, ela quebra a indústria, pois compete com muitas substâncias que estão na farmácia”, sintetiza.

Outro tema de interesse do neurocientista é a bioquímica dos sonhos. Ele defende que aquilo que sonhamos durante a noite é fundamental para entendermos o que acontece conosco durante o dia. As conclusões de quase três décadas de estudo sobre o papel dos sonhos e do sono estão reunidas no livro “O oráculo da noite”, lançado pela Companhia das Letras em 2019. “Prestar atenção aos sonhos é compreender as possibilidades existentes no presente com base nas experiências vividas no passado”, pontua.

O futuro dessas e de outras pesquisas pioneiras no Brasil está, de acordo com Sidarta, sob ameaça diante dos cortes de bolsas e do cenário de perseguição contra as universidades. Integrante da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sidarta também faz parte desde 2015 do Conselho Consultivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e é seu coordenador científico desde 2018. É professor titular de neurociências da UFRN, com doutorado em Comportamento Animal pela Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos. Com a Radis, ele conversou sobre política de drogas e o uso de psicodélicos na saúde, o papel dos sonhos no cotidiano e o futuro da ciência brasileira.

Em dezembro, a Anvisa regulamentou a maconha medicinal. Ao permitir a venda nas farmácias, mas manter a proibição do cultivo, o que essa decisão significa?

Significa reduzido acesso para a população de baixa renda e até mesmo para a classe média. A Anvisa regulamentou remédios à base de maconha de uma maneira extremamente conservadora, porque vetou o plantio. O que eles estão permitindo é somente que possamos importar os componentes da maconha para produzir os remédios no Brasil. Isso só vai favorecer as grandes empresas. O acesso vai continuar difícil. O mevatyl [medicamento à base de cannabis] custa atualmente nas farmácias cerca de R$ 2800. Isso mostra que a maconha já está legalizada no Brasil, mas é só para os ricos. Se o extrato fosse produzido aqui, poderia chegar nas mãos do consumidor com preço muito baixo. A resolução também limita a concentração de THC [Tetra-hidrocanabinol] a 0,2% [a venda de produtos com concentração acima desse índice somente é permitida para pacientes em estado terminal, com todas as alternativas de tratamento esgotadas, e receita médica específica]. Portanto, foi um avanço muito mais simbólico do que efetivo.

O que a maconha medicinal representa hoje para a ciência e em que direção apontam os estudos nessa área?

Eu costumo usar uma frase: a maconha está para a medicina do século 21 como os antibióticos estiveram para a medicina do século 20. Ela possui efeitos anti-inflamatórios e pode ser usada para o alívio da dor crônica, o que permite o seu emprego em muitas doenças. A lista é grande: vai de esclerose múltipla a Alzheimer, depressão, Parkinson, ansiedade, autismo e Crohn. A gente não sabia há dez anos, mas a maconha tem propriedades antitumorais. Já se conhecia o resultado de que ela ajudava no alívio das dores para os pacientes em quimioterapia, mas estudos recentes indicam que ela é eficaz no combate às células cancerígenas. Os horizontes da maconha medicinal são muito vastos.

Existe ainda muita resistência em relação ao THC (tetra- -hidrocanabinol) como se houvesse uma maconha “boa” e outra “ruim”. Por que isso acontece?

O THC tem sido demonizado na mídia, como se existisse um canabinoide do bem (o CBD ou canabidiol) e outro do mal. Mas a gente já sabe que o THC é muito terapêutico. Essas substâncias, como o THC, o LSD e o DMT [presente na ayahuasca, bebida ritual indígena] promovem um grande aumento das sinapses cerebrais. É evidente que serão de interesse para a geriatria. O futuro da geriatria é o uso de cannabis. A maconha é uma invenção humana, para servir às necessidades humanas e já existe há milhares de anos. Ela é um remédio e uma commodity que pode mudar a economia no futuro. A gente vai ter que lidar com isso nos próximos anos.

Por que existe resistência da indústria farmacêutica com relação aos psicodélicos?

A maconha é um grande pesadelo para a indústria farmacêutica, não só porque pode ser cultivada em casa de maneira segura e confiável. No Brasil, existem sete mil pessoas com habeas corpus para produzir em casa. E quando feito sob controle, a gente tem verificado que a produção é adequada. O grande pesadelo é que a maconha é uma farmacopéia inteira. Se essa planta puder ser cultivada em casa, ela quebra a indústria, pois compete com muitas substâncias que estão na farmácia.

Psicodélicos na saúde

A história dos chamados psicodélicos — substâncias que produzem efeitos sobre a experiência consciente — é milenar. No Brasil, eles podem ter uso religioso, como ocorre no Santo Daime e na União do Vegetal, que utilizam uma bebida alucinógena (a ayahuasca), ou na tradição da Jurema indígena. Pesquisas recentes revelam que as substâncias encontradas nesses alucinógenos podem ser utilizadas no tratamento de diversas doenças. Um estudo coordenado pelo neurocientista Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN, descobriu que a ayahuasca tem efeitos antidepressivos. Em janeiro, um programa da FDA (agência norte-americana que regula produtos alimentícios e farmacêuticos) ampliou o acesso legal ao MDMA — substância do ecstasy — para tratamento médico de casos de transtorno pós-traumático. O cérebro humano é uma farmácia que produz substâncias capazes de induzir o sono e as mais variadas emoções, desde percepções simples no cotidiano até experiências alucinatórias semelhantes a um sonho. Em seu livro, Sidarta explica que os neurotransmissores endocanabinoides possuem efeitos análogos ao da maconha. Para o pesquisador, a comprovação dos efeitos farmacológicos dessas plantas — já conhecidas e utilizadas pela humanidade há milênios — irá revolucionar a ciência e os tratamentos médicos.

Quais as perspectivas para o uso de psicodélicos na saúde e como isso pode beneficiar concretamente a vida das pessoas?

Eu diria que é um cenário bastante promissor. Basicamente o que a gente observa é que são substâncias que promovem o aumento de sinapses no cérebro. A ciência já constatou benefícios com o uso de psicodélicos para diferentes doenças. As evidências vão desde o uso do DMT para tratar casos de depressão até os efeitos do LSD como estimulante cognitivo. Outros estudos apontam resultados positivos com o emprego do ecstasy no tratamento de estresse pós-traumático, em pessoas que voltaram de situações de guerra. O Instituto do Cérebro tem avançado nessas pesquisas. É o caso do trabalho de Dráulio Araújo e Fernanda Palhano mostrando que a ayahuasca é um antidepressivo mais potente que os disponíveis no mercado. Não se trata do consumo indiscriminado, mas em doses muito baixas e muito esporadicamente. É possível fazer um resgate cognitivo combinando a atenção aos contextos de vida e o uso de psicodélicos. Não é apenas a droga. É a droga combinada à psicoterapia. Essa é uma grande esperança, por exemplo, para comunidades que sofrem de traumas. O problema é como essas substâncias serão monetizadas pela indústria farmacêutica, pois interessa para eles lucrar com algo que só será usado de vez em quando? As pessoas precisam e as evidências científicas apontam para esse horizonte.

Com todas as evidências científicas, por que o uso da maconha medicinal ainda gera resistência?

A rejeição à maconha acontece basicamente por dois fatores. O primeiro é o componente cultural, porque seu consumo sempre esteve associado à contracultura, principalmente na década de 1960 e 70. Isso deu a ela uma cor política. A segunda razão é econômica, porque não interessa à indústria farmacêutica uma planta com esse potencial e que pode ser cultivada em casa. As drogas todas são potencialmente perigosas e potencialmente curativas, depende da dose.

Como você enxerga a política de drogas hoje no Brasil?

É uma política equivocada de incentivo ao encarceramento em massa. O Brasil é hoje a terceira maior população carcerária do mundo. A consequência é o fortalecimento do crime organizado. O Estado alimenta de soldados os exércitos das facções. Isso evidentemente afeta mais os negros, os pobres e as mulheres. A “guerra às drogas” legitima praticamente todo o tipo de violência. Qualquer um que ande pelas ruas pode ser afetado por ela a qualquer momento. Essa guerra mata pessoas que não usam drogas, por isso é uma violência extremamente não específica. É uma maneira de coerção à sociedade como um todo.

Por que a proibição não é solução?

A proibição das drogas, bem forte desde os anos 1960, não diminuiu o consumo. O impacto social é gravíssimo. O consumo de drogas só aumentou com a proibição. Além de brutal, é uma política ineficaz. Maconha custa caro porque é proibida. Se fosse legalizada, seria bem barata. A cannabis fez parte da farmacopeia do mundo ocidental em quase todo o século 19 e início do 20. Mas a partir de determinado momento, foi empreendida uma campanha moral contra ela. A proibição passava muito pela repressão sexual. Enquanto isso, um conjunto de cientistas era financiado pelo Estado americano e pela indústria para dizer que o cigarro fazia bem. O que funciona é o que o Brasil fez em relação ao tabaco. A redução do consumo foi conseguida com propaganda negativa, coibição da propaganda positiva e restrição nos locais de uso. E não com a proibição do tabaco.

O que justifica que a maconha tenha um tratamento diferente do álcool e do tabaco?

Uma característica da guerra às drogas é que ela ocorre em um ambiente em que algumas substâncias são demonizadas e outras são glorificadas. Não existem drogas do demônio nem de Deus. A propaganda positiva do álcool, com pessoas bem sucedidas tomando bebida alcoólica em locais agradáveis, é extremamente insidiosa. Não tem nada no rótulo dizendo que é perigoso. Porém, se olharmos o dano causado à sociedade, seja ao indivíduo ou à coletividade, com base em dados da pesquisa do David Nutt, na Grã-Bretanha, o álcool é a droga mais perigosa. Falta ciência nesse debate e sobra hipocrisia. Sou favorável à regulamentação de todas as drogas. Essa não é apenas uma opinião pessoal, mas coincide com a moção aprovada por unanimidade na reunião da SBPC em 2018, da qual sou diretor [moção por uma política de drogas progressista e não proibicionista].

Como você vê a discussão sobre desmedicalização e em que medida as pesquisas sobre psicodélicos podem ajudar com alternativas ao sofrimento psíquico?

Essa é uma boa questão. Os medicamentos não estão sendo eficazes. Mesmo com o uso indiscriminado de medicação, o sofrimento psíquico não diminuiu. Ao contrário, aumentou. Houve uma simplificação grosseira da psiquiatria. Antidepressivo é receitado por qualquer médico, não só por algumas especialidades, sem nenhuma base científica. As pessoas embarcaram na medicalização achando que estavam comprando um passaporte para a felicidade. Como já apontam estudos mais recentes, os efeitos colaterais do uso de antidepressivos são muito grandes quando comparados com os benefícios, que são muito pequenos.

Alguns autores chegam a dizer que comportamentos “discordantes” são enquadrados como transtornos mentais. Como é possível romper com esse modelo biomédico?

O que hoje é considerado louco foi, no passado, alguém capaz de “ouvir as vozes” dos deuses. A figura do faraó, no Egito, estava muito associada à loucura. Os líderes da Antiguidade manifestavam experiências de psicose e usavam essa característica para conduzir os povos. A própria psiquiatria já tem demonstrado que o uso indiscriminado de medicamentos antipsicóticos não tem trazido resultado. As substâncias que têm efeitos psicoativos só podem ser compreendidas na interação de três elementos: a droga, o corpo que recebe essa droga e o contexto social. Mas tudo isso é desconsiderado. Elas são vendidas como se só houvesse um elemento, a própria substância, sem considerar o corpo e menos ainda o contexto. Precisamos reconhecer e valorizar as experiências que levam em conta os contextos de vida de cada paciente, como é o caso dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O Brasil possui uma referência nesse sentido, que pode ajudar a romper com uma visão retrógrada de psiquiatria.

Não é apenas um sonho

Em seu livro “O oráculo da noite”, lançado recentemente, você chama atenção para o fato de que os sonhos podem ajudar a compreender a condição humana. Por que os seres humanos deixaram de prestar atenção em seus sonhos?

Os sonhos perderam importância com o advento da ciência e do capitalismo. Entramos no mundo do racionalismo e das técnicas e passamos a caminhar rápido demais. Com isso, deixamos de prestar atenção nos sonhos. É uma contradição que no momento em que temos mais capacidade técnica de melhorar o mundo, estamos perdendo a chance de encontrar soluções para os problemas que afetam a humanidade como um todo. Eu argumento que isso está associado à perda da importância dos sonhos para a atividade humana. Desde os primeiros registros da experiência humana, são encontrados relatos de sonhos. Eles estão presentes em todas as civilizações, com um papel muito central na vida das pessoas: no Egito, na Mesopotâmia, na Grécia, em Roma. Com o nascimento do capitalismo mercantil, há cerca de 500 anos, tornou-se inaceitável tomar uma decisão comercial ou política com base na interpretação dos sonhos. O que antes podia ser encarado como uma inspiração transcendente ou uma revelação passa a ser visto com descrédito ou como mero reflexo de reações orgânicas. Os sonhos então foram relegados a almanaques baratos, baseados em chaves interpretativas, sem nenhuma relação com o contexto de vida do sonhador.

O que o sonho significa?

O sonho evoluiu há milhões de anos como passagem de atividade elétrica por uma série de memórias, por meio de uma substância chamada dopamina, para evitar desfechos negativos e buscar soluções positivas. Eles têm importante papel no funcionamento do cérebro, na organização e estruturação de memórias. Prestar atenção aos sonhos é compreender as possibilidades do presente com base nas experiências vividas no passado. Isso gerou uma espécie de oráculo probabilístico. É como se pudéssemos imaginar o futuro a partir das memórias do passado. O sonho é, portanto, uma simulação da realidade com base em fragmentos de memórias.

Em contrapartida, temos uma realidade em que as pessoas dormem cada vez menos horas e em pior qualidade. O que isso traz de prejuízos para os seres humanos?

O sono é necessário à saúde mental e física de qualquer pessoa. É um comportamento muito antigo na evolução dos animais. Hoje sabemos, por meio da ciência, que o sono é fundamental para desintoxicar o cérebro das toxinas que ele mesmo produz. Além disso, nós consolidamos e reestruturamos memórias. Dormir mal ou de maneira fragmentada é um dos fatores de risco para o Alzheimer, além de depressão, diabetes, ansiedade e obesidade. No entanto, a noite foi completamente invadida por tudo que é elétrico e eletrônico. O aprendizado é muito dependente do período em que passamos dormindo. Deixamos cada vez menos tempo para o sono e, consequentemente, para o cérebro produzir os sonhos. O grande perigo disso é a gente se desumanizar.

Em seus estudos, você faz um reencontro com Freud, com muita frequência rejeitado pela neurociência. Por que esse retorno ao pai da psicanálise é importante para os estudos do cérebro?

A neurociência viveu um profundo divórcio com a psicanálise, que começou sobretudo nos anos 1950. Durante muito tempo Freud foi demonizado como alguém “não científico”. Mas hoje alguns de seus principais postulados já foram comprovados pela ciência experimental e muitos cientistas da área biomédica não se dão conta disso. Essa rejeição ocorreu quando a neurociência passou a acreditar que não era preciso fazer uma leitura da subjetividade. Também se deu com a descoberta dos antipsicóticos, que foram utilizados como uma panaceia para o tratamento da psicose, porque “acalmavam” as pessoas que estavam em surto. Quando a farmacologia disse que não precisava ouvir os sonhos nem saber sobre os contextos de vida para tratar a psicose, ocorreu o divórcio entre psicanálise e neurociência. Mas as contribuições da chamada psicologia profunda derivadas de Freud e Jung são fundamentais para entender a mente humana.

Que benefícios concretos as pesquisas sobre sono podem trazem para a saúde e a educação?

Em nosso modelo de educação, as pessoas aprendem, fazem uma prova para descarregar todo o conhecimento e depois esquecem tudo o que aprenderam. Isso ocorre pela maneira como é feito o aprendizado, sem valorizar o sono como um meio de fixar as memórias. Existem estudos no Instituto do Cérebro que apontam para a importância do sono no aprendizado escolar. Porém, no sentido contrário, somos levados a abandonar tudo aquilo que é natural, como nossa capacidade de dormir e de sonhar. E buscamos a solução em medicamentos para dormir e depois para ficar acordado. Estamos diminuindo cada vez mais o tempo do sono e o tempo do sonho. Seja pelo estresse, pela poluição sonora, pelas más condições de vida e de moradia, pelo uso indiscriminado da tecnologia ou por ter que acordar cedo no dia seguinte para trabalhar.

Como o uso das tecnologias disseminado no cotidiano afeta o funcionamento do cérebro, o sono e até os sonhos?

Estamos nos tornando ciborgues muito rapidamente, com a presença massiva das tecnologias em nossas vidas. A espécie humana saiu das cavernas há muito pouco tempo, se compararmos com a história do planeta. Ainda não aprendemos a lidar com a tecnologia. É como se tivéssemos ganhado um software novo que continuou rodando na máquina antiga. Não é por acaso a epidemia de fakenews que se espalha por todo o mundo. Quando a gente descobre uma coisa nova e poderosa, também pagamos um preço alto pelo seu uso indiscriminado.

Como a ciência brasileira é impactada pelos cortes de bolsas e investimentos?

Estamos vivendo um grande retrocesso na ciência brasileira. O impacto do que está acontecendo agora será sentido por muitas gerações. Porém, perder o bonde da história no século 21 é diferente de perder há 50 ou 60 anos. Hoje está em vigor uma emenda constitucional (EC) que inviabiliza o desenvolvimento do país. A EC 95 não prevê nenhum tipo de crescimento no investimento. Ao contrário, a tendência é um decréscimo. Ao mesmo tempo, vivemos um debate sobre que projeto de país nós queremos ter: se a nossa vocação é vender soja e minério ou produzir conhecimento. Se olharmos para o resto do mundo, países como a Coreia do Sul — que chegou a ter a maioria de sua população analfabeta — conseguiu se desenvolver ao investir em educação, ciência e tecnologia. O corte de bolsas no Brasil vai no caminho inverso. Significa que alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado e pesquisadores não terão dinheiro para comprar insumos de pesquisa, fazer a manutenção de equipamentos, viajar para congressos e até mesmo para sobreviver no mês seguinte.

A ciência e as universidades brasileiras também vivenciam um contexto de ataques e perseguições, que questionam até mesmo a sua existência. Quais os impactos desse “movimento anticiência”?

As pessoas precisam compreender que os avanços disponíveis em seu cotidiano foram decorrentes de pesquisas científicas. Sem o trabalho de Johanna Döbereiner [1924-2000], em Seropédica [RJ], sobre fixação de nitrogênio com bactérias não teria sido possível a revolução agrícola [As pesquisas da engenheira agrônoma são consideradas fundamentais para a produção de alimentos mais saudáveis e baratos]. E esses resultados só são conseguidos com maciço investimento público, como acontece em todo o mundo. Não vamos desenvolver o país sem universidades. Ciência é política de Estado. Não pode estar sob os caprichos desse ou daquele governo. Há outro ponto que gostaria de enfatizar: precisamos reagir à proposta que está colocada de fusão da Capes com o CNPq. O trabalho desenvolvido por essas instituições ao longo de décadas tem um legado que não pode ser jogado fora. Não foi feita nenhuma consulta sobre a mudança. E a comunidade científica está totalmente contra. É preciso enfatizar que não haverá futuro se continuarmos nesse caminho de desinvestimento em ciência e tecnologia.

“O grande oráculo da noite: a história e a ciência do sonho”

É possível prever o futuro por meio dos sonhos? Os primeiros ancestrais dos humanos, ao desceram das árvores na Idade da Pedra e iniciar um longo percurso até os dias de hoje, já sonhavam e possivelmente se guiavam pelos sonhos para fazer escolhas de sobrevivência. Essa é a chave utilizada por Sidarta Ribeiro, em seu livro “Oráculo da noite”, para retomar a centralidade dos sonhos na história da humanidade, nas mais diversas culturas e religiões: eles são uma espécie de mapa traçado à noite para guiar os passos durante o dia. No entanto, deixaram de ter importância com o advento da mentalidade racionalista que acompanhou o nascimento do capitalismo e da ciência moderna. E é para resgatar a sua relevância que o neurocientista utiliza os conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro e afirma que os sonhos são mecanismos da mente para simular futuros possíveis com base em memórias do passado — essenciais para a evolução da espécie humana e para a compreensão da subjetividade de cada pessoa.

Não são nenhuma mágica, portanto. Ou antes, são fruto da magia bioquímica do cérebro. Nas mais de 400 páginas da obra lançada pela Companhia das Letras, Sidarta reúne conhecimentos da antropologia, psicologia, história e biologia, colhidos em três décadas de estudo, para entender por que e como sonhamos. O livro enfatiza que os sonhos, assim como o sono adequado, são vitais para a saúde do corpo e da mente, pois ajudam a reestruturar memórias, a produzir ideias e sentidos, a “desintoxicar” o cérebro. Sidarta também faz um reencontro com o pioneirismo de Sigmund Freud, pai da psicanálise, retomando postulados da chamada “psicologia profunda” que foram rejeitados no passado pela neurociência, mas já encontram comprovação em estudos recentes.

Com uma leitura instigante e fluida, o livro defende ideias como a de que o aprendizado escolar depende essencialmente do sono para fixar memórias. E é, acima de tudo, um convite para que possamos prestar mais atenção em nossos sonhos para entendermos nossa própria realidade. O neurocientista aposta que, ao deixar de sonhar ou pelo menos de valorizar as “viagens noturnas”, os seres humanos entraram num beco sem saída, pois perderam a principal utilidade que os sonhos tiveram desde os registros históricos mais remotos: imaginar saídas, soluções e alternativas para o futuro.

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