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Em outubro de 2023, o médico Paulo Buss — ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) da instituição — previu, em artigo publicado na página do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, que se o conflito que se iniciava entre as forças armadas israelenses e militantes do Hamas na Faixa de Gaza não tivesse um rápido desfecho, a região passaria “de uma prisão a céu aberto a um grande cemitério”. Hoje, cerca de um ano após o ataque que vitimou 1,2 mil israelenses, em 7 de outubro de 2023, estima-se que mais de 50 mil palestinos já pagaram com suas próprias vidas pela vingança comandada por Benjamin Netanyahu.

Radis conversou com o professor-emérito da Fiocruz sobre suas previsões no artigo escrito junto com o embaixador Santiago Alcázar e Luis Eugênio Souza, presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública. O trio publicou também, na mesma época, uma carta na revista científica Lancet em que reforçavam suas considerações e já denunciavam um ataque em grandes proporções a um hospital em Gaza. “Naquele momento, nós citamos um exemplo. Agora, eu posso dizer que os exemplos se multiplicam todos os dias com a mesma brutal consequência sobre o sistema, os serviços, os profissionais de saúde e sobre a população civil”, diz Paulo Buss à reportagem.

Em entrevista realizada no fim de agosto, o médico fala sobre as atuais condições, percepções e motivações do confronto, como os brasileiros acompanham a situação e que futuro é possível para Gaza, que na sua visão pode levar até três décadas para se reerguer, além de ter de lidar com uma geração de pessoas com sequelas físicas e emocionais. Ele afirma não haver outra palavra para nomear o que vem ocorrendo com os palestinos de Gaza nos últimos doze meses que não seja genocídio. “Nós estamos frente a uma guerra absolutamente desigual entre forças armadas regulares muito bem equipadas contra populações civis”. A maior matança deste século em uma mesma região, afirma ele.

Todas as recomendações por respeito a medidas humanitárias, tratados e convenções de guerra têm sido ignoradas pelas forças de Israel e, com isso, temos visto um massacre contra a população palestina em Gaza. Um ano depois, como o senhor avalia a realidade desses ataques e a situação naquela região? 

Lamentavelmente as coisas só pioraram. Em dez meses de ataques o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza já divulgava mais de 40 mil mortes, número confirmado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nós estamos atingindo um número absolutamente brutal. No século 21, nunca houve no mesmo território, em uma área tão concentrada, um número tão grande de civis mortos em tão curto espaço de tempo. Porque, mortes de militares em um conflito militar é algo triste, doloroso, que todos nós, pacifistas, temos que lamentar, mas se espera. Já uma concentração dessas, principalmente da população civil — envolvendo crianças, idosos e mulheres — isso é, do ponto de vista de conflitos militares, com certeza o fato mais marcante deste século.

Nós temos inúmeros conflitos militares acontecendo no mundo: guerras civis, conflitos entre nações, mas na Faixa de Gaza é onde se concentra o maior número de mortos de população civil num território por quilômetro quadrado. E essas mais de 40 mil pessoas que perderam suas vidas foram destroçadas por bombardeios. Ou seja, não foi em combate, elas foram destruídas por bombas, por mísseis e não de modo que poderiam ter alguma chance de sobreviver, como num combate corpo a corpo.

Portanto, a maior parte das crianças, dos idosos e das mulheres que morreram foi devido a bombardeios, que são absolutamente inesperados. Não se sabe quando e onde a bomba vai cair, não se vê o agressor e os ataques são dirigidos indiscriminadamente contra edifícios que reuniam grande número de civis, como centros de refugiados, escolas e instalações das Organizações das Nações Unidas (ONU), além de escolas e hospitais do Ministério da Saúde da Faixa de Gaza. Então os bombardeios tiveram ainda um agravante, que foi serem intencionalmente jogados contra alvos civis, sob alegação de que combatentes do Hamas estivessem ali e isso não tem condições de ser comprovado.

“Muitos analistas dizem que está se cometendo um genocídio em Gaza, porque há a intenção de matar em grupos concentrados e em instalações que não deveriam estar sendo bombardeadas.”

Há uma clara desigualdade de forças, não é mesmo? Além das mortes diretas, que outras consequências esses ataques estão deixando?

Nós estamos frente a uma guerra absolutamente desigual entre forças armadas regulares muito bem equipadas contra populações civis. Embora, como eu havia dito, seja alegado que essas forças militares regulares altamente armadas e treinadas estão bombardeando essas instalações porque ali supostamente haveria combatentes militares do Hamas, ainda que isso não se comprove. Por isso, muitos analistas dizem que está se cometendo um genocídio em Gaza, porque há a intenção de matar em grupos concentrados e em instalações que não deveriam estar sendo bombardeadas, segundo as próprias regras da Convenção de Genebra sobre guerra.

Com isso, dos quase 105 ambulatórios de atenção primária que existiam, só há 45 parcialmente funcionando e dos 36 hospitais então existentes para atender a uma população de mais de dois milhões de pessoas, apenas 16 encontram-se funcionando também de forma parcial. Então, além das mortes, dos feridos e dos sequelados — física e mentalmente — nós ainda temos a falta de acesso atual, crescente, e muito elevada das condições de atendimento de saúde. Praticamente todo o sistema de saúde foi destruído. Dezenas, centenas de médicos e enfermeiras morreram. Centenas de pessoas que trabalhavam nas Organizações Não-Governamentais (ONGs) de caráter humanitário ou de saúde que estavam no território também morreram. Então, se perderam tanto vidas de civis quanto vidas de profissionais de atenção humanitária e de saúde, nacionais e estrangeiras, com destruição enorme da infraestrutura que atendia as pessoas.

Não só da infraestrutura de hospitais, ambulatórios e centros de saúde, mas também de questões fundamentais para o abastecimento de água e tratamento dos esgotos. Instalações de fornecimento de água foram explodidas e o resultado é que a população vive com escassez tremenda de água. Fruto disso, as condições de higiene são absurdamente ruins, o que tem levado a um conjunto enorme de infecções, principalmente intestinais, que ocorrem pelo abastecimento de água contaminada. Além disso, tem esgoto a céu aberto que serve para contaminar mais ainda o ambiente. 

Falando mais diretamente dessas questões de saúde, quais os reflexos da guerra em níveis sanitários e epidemiológicos?

Um dos resultados é que, recentemente, houve o alerta da OMS, de que foi detectado nessas águas o vírus da poliomielite, que se multiplica dentro do intestino da pessoa infectada e esse vírus é uma cepa muito patogênica, isto é, muito forte. Isso levou a OMS a fazer um alerta de que podemos ter um surto inédito de poliomielite, que já estava praticamente controlada no mundo inteiro, agora, com os ataques israelenses a Gaza. Com toda a destruição, que já comentei, e a grande população de crianças concentradas em microespaços, a possibilidade de proliferar poliomielite é tremenda. E os serviços de saúde que estão destruídos não têm condições de fazer essas imunizações com os bombardeios diários que estão sendo cometidos. Então teria que haver pelo menos um final de semana de cessar-fogo para vacinar as crianças. [No início de setembro, poucos dias após a entrevista, a ONU conseguiu estabelecer um acordo para iniciar a vacinação na região depois da confirmação da detecção de um caso de pólio em Gaza, doença que estava erradicada há 25 anos no local. Em 12/9, estimava-se que mais de 100 mil crianças já haviam sido vacinadas].

O mesmo acontece para as diarreias ou com as hepatites, que são doenças transmitidas por alterações de saneamento e concentração de lixo. O lixo, os escombros, os corpos que estão sob escombros. Como eu lamentavelmente fiz esse prognóstico, de que uma prisão a céu aberto se transformaria em um grande cemitério a céu aberto, hoje essa é uma realidade em Gaza. Sob aqueles escombros existem centenas, possivelmente milhares, de corpos que não foram retirados, produzindo também focos possíveis de infecção, além de animais mortos.

Nós temos, então, mortos, feridos e sequelados. E não só dentre a população adulta, mas principalmente entre crianças e adolescentes. Imagine o que é viver um horror desse durante mais de 300 dias. Eles estão marcados para sempre. O futuro daquelas crianças, daqueles adolescentes, é o prognóstico também de que nós teremos um grupo enorme de pessoas com sequelas para sempre, do ponto de vista mental.

“Não chega comida, não chega água, não chega remédio, não chega vacina. Esse é o quadro!”

As mortes por armas de fogo e bombardeios são a parte visível da guerra, mas em termos de saúde pública, o que se espera em condições como essas? Que consequências os meses de destruição e privações podem acarretar à vida dos sobreviventes?

Além de tudo isso que foi relatado, a gente tem também a questão da fome em Gaza, que precisa ser mencionada. Temos relatos importantes da ONU que mostram que o grau de desnutrição em toda a população, mas particularmente nas crianças e nos idosos, é assustador. E criança com desnutrição na primeira infância, de zero aos seis anos, é uma criança que não consegue formar o número de células no sistema cerebral que vai ser decisivo para as condições dela no futuro. Então, além de tudo, vamos ter uma população com sequelas da desnutrição na infância, que vai lhes tirar a chance de se estabelecerem minimamente como uma pessoa capaz de sobreviver à competição que o mundo capitalista coloca. Ai de quem não souber disputar e ganhar para poder ter mais, sobreviver, ter bens, continuar comendo etc.

Além da água, tem toda a questão da comida, que não chega em Gaza. Então, esse é o quadro que infelizmente se agravou. Porque cada vez mais nós temos casas, apartamentos e habitações humanas destruídas. Serviços coletivos destruídos, infraestrutura destruída, não chega comida, não chega água, não chega remédio, não chega vacina. Esse é o quadro! 

Em outubro de 2023, o senhor já condenava o maior ataque a um hospital, que havia ocorrido no território de Gaza, matando de imediato quase 500 pessoas e deixando outras mais de 300 feridas, em uma publicação da Lancet. Hoje, que fato o senhor destacaria em uma nova publicação internacional? Qual dos horrores promovidos por esses ataques mereceriam ganhar as manchetes mundiais?

Dada a proporção que tomou os bombardeios, eu diria que não é mais possível destacar um exemplo ou um grande acontecimento. Agora eu destacaria os ininterruptos ataques sobre serviços de saúde e sobre a infraestrutura necessária e imprescindível para saúde, que é acesso a alimentos, a medicamentos, material cirúrgico e médico e vacinas. Essas situações não interrompidas que permitiriam um refresco, o respirar dessas populações, é o que eu destacaria. Porque fatos isolados existem, há dezenas, centenas deles. Naquele momento, nós citamos um exemplo [do hospital bombardeado].

Agora, os exemplos se multiplicam todos os dias com a mesma brutal consequência sobre o sistema, os serviços, os profissionais de saúde e sobre a população civil, produzindo o que eu já falei: mortes, sequelas físicas e mentais, desnutrição que é uma sequela importantíssima, entre tantas atrocidades que a gente vê que são cometidas na região.

Por que essa ‘guerra’ ainda não terminou? Que interesses a sustentam?

As forças que sustentam economicamente e militarmente Israel continuam operando. Apesar da retórica da paz, os Estados Unidos continuam dizendo que estão perto de um acordo, mas na realidade em nenhum momento cortou o suprimento de armas, mísseis e bombas que mantém essa situação. Então existe aí também, além da questão sanitária, que nós falamos um pouco, a questão geopolítica e que as forças israelenses são supridas, principalmente, por suprimento militar norte-americano, que insiste em dizer para o mundo: “Nós estamos perseguindo a paz”, mas vão convencer a quem?

E, por outro lado, após abstenção dos Estados Unidos, há mais de três meses o Conselho de Segurança da ONU determinou um cessar-fogo que não foi seguido pelas partes litigantes, principalmente por Israel. Então o que nós temos é uma absoluta desobediência ao Órgão, ao conjunto de países que formam o Conselho de Segurança da ONU, que não consegue convencer nem impor a ninguém as decisões que ele toma.

A própria ONU está fracassando e quando a gente fala fracasso das Nações Unidas, não é fracasso do secretário-geral, do secretariado ou do prédio da ONU. É o fracasso da comunidade internacional, é o fracasso dos países, é o fracasso de cada um dos Estados membros, particularmente os membros do Conselho de Segurança. Porque muitos deles são fornecedores de armas dos dois lados e quem lucra com isso tudo, quem está sorrindo de orelha a orelha, é a indústria armamentista, particularmente a norte-americana. Os lucros que eles reportaram nesses últimos anos de conflitos militares, que são mais de 130 no mundo inteiro, é uma coisa abismante. E os gastos militares também.

“Nós atingimos 2,3 trilhões de dólares em gastos militares no mundo em 2023.”

De quanto estamos falando e onde esses valores deveriam ser empregados?

Nós atingimos 2,3 trilhões de dólares em gastos militares no mundo em 2023, segundo fontes que acompanho sistematicamente, um instituto de Genebra (Suíça) e outro de Estocolmo (Suécia), que são números aceitos mundialmente. Esse crescimento se deveu particularmente ao aumento de gastos militares dos Estados Unidos, da Otan [na Ucrânia] e da Rússia. Embora China e Irã também tenham elevado seus gastos. Mas enquanto esses gastos militares são brutais e crescentes, falta dinheiro para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Quer dizer, nós temos produzido destruição, mortes, sequelas, estamos destruindo o que depois vamos ter que reconstruir. Enquanto isso, o dinheiro que deveria estar indo para mitigar os problemas do clima, a perda da biodiversidade, a fome que está instalada no mundo, o tratamento da poluição por plástico dos oceanos e todas as demais questões, há uma absoluta falta de recursos financeiros. Todo dinheiro disponível nos orçamentos desses grandes países em vez de irem para a chamada ajuda oficial para o desenvolvimento, estão indo para a guerra, estão indo para gastos militares. 

Então, é uma contradição. O mundo está vivendo uma contradição ética e política, eu diria, brutal. O mundo pós-segunda guerra, esse mundo do Século 21, é um mundo absurdo, porque no fundo tudo isso que nós estamos assistindo em Gaza parte do conflito de poder pela hegemonia política do mundo.

“O mundo está vivendo uma contradição ética e política, eu diria, brutal.”

Há projeções que tentam prever o futuro da região e do povo palestino no pós-guerra. Uma delas — também publicada na Lancet — estima que mais de 186 mil pessoas podem morrer por consequências diretas e indiretas do atual genocídio em Gaza. Como se reerguer de um cenário desses?

A ONU está preparada, ela tem estratégias de intervenção muito bem estabelecidas pela experiência que possui, pelas forças de paz e ações de ajuda humanitária que aprendeu desde sua criação, há quase 80 anos. Ela aprendeu a lidar com situações de conflitos e situações pós-conflitos, mas para isso precisa receber recursos. A ONU existe com recursos financeiros outorgados pelos países associados. São eles que organizam e estruturam a ONU. Da mesma maneira, em relação ao desenvolvimento. Os países sabidamente mais pobres — e muitos deles pobres por conta do histórico de exploração — precisam de recursos dos mais ricos para se desenvolverem, mas esse recurso, como eu disse, está sendo utilizado para financiar a guerra. Quando for para reconstruir, que é uma missão que a ONU terá, o dinheiro precisará vir também daqueles países que têm maior capacidade, que tem o Produto Interno Bruto (PIB) per capita maior, que tem capacidade maior para derivar recursos para a agenda internacional do desenvolvimento, para a agenda internacional da restauração de países destroçados pela guerra, pela violência etc.

Que amparo organismos internacionais como a OMS e a ONU deverão fornecer à Gaza? E por quanto tempo?

A Faixa de Gaza é um território mínimo, do ponto de vista geográfico [cerca de 365 km² de área], com 2,5 milhões de pessoas. Tem uma altíssima densidade populacional. Tudo ali foi destruído e vai ter que ser removido e reconstruído. A remoção vai ser um problema absoluto. E imagine a reconstrução. Vai levar 20, 30 anos para Gaza voltar a ser o que era. Isso se o fluxo de dinheiro for suficiente. E nós não sabemos que futuro vamos ter para as ações humanitárias dos órgãos internacionais. Que é isso que eu falei: retirar escombros e reconstruir casas, hospitais, escolas, mobiliário, tubulação de água, redes de esgoto. Imagina o que é fazer uma cidade. Isso se o dinheiro fluir para lá e se essa fluição de dinheiro atender a situação dos dois Estados, Israel e Palestina, que não é o que Israel aparentemente deseja, ainda que muitos políticos e população de Israel gostariam.

E outros conflitos vão surgindo na região…

Sim, agora, com o avanço das ocupações ilegais de Israel na Cisjordânia, outro território que compõe a Palestina, aquela região também está sendo destruída e estão ocorrendo mortes ali. Claro que não nas proporções catastróficas da Faixa de Gaza, mas a Cisjordânia, do outro lado do Rio Jordão, também vem sendo sistematicamente atacada, quando não pelas forças regulares, pelos colonos, que também querem fazer dela um território israelense, com ocupações ilegais. Agora, com as ações de Israel no Irã, como a morte de um grande líder militar do Hamas em território iraniano ocasionada por um ataque israelense, cria-se uma possibilidade muito concreta de ocorrer uma regionalização da guerra ali.

O Irã ameaçou retaliar, não retalhou ainda, mas no Sul do Líbano, ao Norte da Faixa de Gaza, já tem sinais de que a guerra pode envolver agora o Hezbollah, que é um grupo armado mais radical e melhor equipado do que o Hamas, que ocupa e se distribui no território libanês [No fim de setembro, após a entrevista, os ataques na região se intensificaram]. Então nós podemos ter um conflito agora no Norte da Faixa de Gaza, na região do Sul do Líbano, entre Israel e o Hezbollah e há também o risco da entrada do Irã na guerra e com isso a possibilidade de escalonar destruição, mortes, sequelas, feridos, destruição de infraestrutura. Tudo o que estamos vendo em Gaza, pode ocorrer agora em outros territórios da mesma região e as consequências sobre a saúde são arrepiantes, para dizer o mínimo.

E aí eu queria citar essa questão das demais guerras no mundo, porque as guerras com “charme”, um charme negativo, horripilante, digamos, são Gaza e Ucrânia ou melhor — Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] contra a Rússia e forças regulares de Israel contra o Hamas — e essas duas guerras estão acompanhadas de inúmeros outros conflitos militares. E o principal deles desse momento, fora ambas, é o conflito do Sudão. O Sudão tem 2 milhões e meio de pessoas que estão deslocadas de suas casas. É provavelmente a maior população do mundo em risco de fome, hoje, por conflito militar e não queria deixar de mencioná-los.

Fale um pouco sobre a atuação institucional da Fiocruz e como o Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) tem atuado em relação a esses conflitos.

O Cris foi criado há 15 anos [em 2009] e tem duas grandes funções: a gestão da cooperação internacional da Fiocruz, isto é, gerenciar todas as unidades com área de relações internacionais na instituição, coordenando os esforços da cooperação internacional, e uma segunda função, chamada observatório, que nós articulamos e organizamos quinzenalmente seminários sobre grandes temas internacionais. Já realizamos dois seminários sobre Gaza, chamados Saúde como Ponte para a Paz [assista-os aqui e aqui]. Nós também produzimos a cada 15 dias uma publicação chamada Caderno do Cris, uma espécie de ‘raio-x’ da situação internacional da saúde. São mais de 200 páginas produzidas quinzenalmente por mais de 40 autores. E essas guerras também estão tratadas lá. [Acesse as publicações aqui].

De que forma a saúde pode ser essa ponte para a paz que o senhor cita?

Nós lançamos essa proposta em um dos seminários do Cris/Fiocruz, escrevemos em nossas publicações e estamos propondo agora que a Presidência do G20 aceite discutir a questão estratégica da saúde como ponte para paz na Declaração dos Ministros da Saúde. Na década de 1980 e 1990, no conflito que ocorreu na América Central, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), na gestão do brasileiro Carlyle Guerra de Macedo, conseguiu uns dias de cessar-fogo, que eram os dias de imunização. Naqueles dias as forças paravam, a troca de tiros e bombas também. Parava-se tudo com segurança, os profissionais de saúde podiam aplicar todos os tipos de vacina existentes nas crianças e adultos daquela região em conflito. Nós propusemos ao G20 que todos parassem para fazer a imunização na região de conflito em Gaza. Mas a nossa proposta [de saúde para a paz] se estende ainda mais.

No seu entendimento, o brasileiro tem uma dimensão real do que está acontecendo em Gaza ou as informações ainda estão muito distantes?

Eu diria que as informações chegam e são divulgadas na grande imprensa numa proporção, a meu ver, adequada. Eu hoje estava assistindo à televisão de manhã, ligada na GloboNews e estavam noticiando a guerra, quando tem um grande acontecimento brutal, o Jornal Nacional, que muita gente assiste, transmite. O problema é que, na vida cotidiana, nós vivemos também uma guerra constante do Brasil. A gente tem praticamente uma guerra civil aqui no Rio de Janeiro, entre os militares, a Polícia Civil, a Polícia Militar, os milicianos, traficantes etc. Nós temos o cotidiano da nossa guerra. Então essa violência social que o Brasil tem ocupa a mente dos brasileiros. O brasileiro, como qualquer outra pessoa comum, que não seja um analista por profissão, está preocupado com a vida cotidiana dele, com ganhar os recursos para ter comida em casa, pois nós temos uma desigualdade imensa no Brasil.

Ou seja, 99,9% da população olha para o seu cotidiano e eu não acho isso anormal. É importante sim que as pessoas tenham sentimento crítico em relação à realidade que vivem para escolher melhor os deputados e senadores, os vereadores, os prefeitos e o Presidente da República. Inclusive porque agora teremos eleições para resolver esses problemas que estão do nosso lado, inclusive a violência urbana, no Rio de Janeiro, mas não falo só do Rio. Estou falando de Manaus, de Fortaleza, da violência contra os indígenas, da violência contra os negros… 

São muitas tragédias para se administrar?

Sim e eu não acho anormal que a solidariedade ao povo palestino também exista no coração da maioria dos brasileiros, porque eles são um povo, são pessoas, e o brasileiro é solidário com o sofrimento alheio, isso não podemos negar. Mas a massa de problemas que o brasileiro vive faz com que ele tenha que cuidar das coisas cotidianas, da violência cotidiana, que ele identifica, inclusive da violência social, da violência econômica, da violência ambiental. Porque nós vivemos hoje, por exemplo, um momento de incêndios criminosos que é violência, que é crime.

Temos que entender que vivemos no Brasil em uma sociedade violenta. Ela é solidária, mas é violenta. Você pode ser solidário e querer a paz do Oriente Médio, mas antes de tudo, você quer ter a paz social, econômica, ambiental no Brasil. Então, por isso pode parecer que o tema da Palestina chega pouco ao Brasil. Eu acho que chega na medida que haja espaço na mente, no coração, na alma dos brasileiros, depois de ter resolvido seus conflitos cotidianos.

E como o senhor vê o papel da imprensa independente? Da comunicação pública nesse contexto?

Como meios de comunicação, nós temos obrigação de comunicar sobre a violência internacional, sobre os conflitos internacionais, e o máximo possível fazer com que os nossos compatriotas — quem nos lê, quem nos assiste, quem nos ouve — sejam capazes de discernir sobre causas e consequências e se posicionarem, inclusive procurando identificar precisamente qual é a posição dos atores políticos brasileiros sobre isso. Porque a hora que eu começo a valorizar a questão da paz, da saúde internacional, eu também vou ver como os atores nacionais operam.

Quanto mais nós pudermos colaborar para a não-alienação e quanto mais críticos nós pudermos ser em relação às posições dos ‘Senhores da Guerra’, que querem manter a guerra por interesses econômicos, como disse anteriormente, melhor. E que quando tentam conter a guerra é para o preço do petróleo não subir — não é porque está havendo mortes — é tentando evitar o conflito no Oriente Médio crescer, porque do contrário vai aumentar o custo da produção do petróleo, ele vai ficar mais caro, vai subir a gasolina, vai ter inflação. É simples assim. 

Tem que colocar a questão: a quem interessa essa guerra? A quem interessa mantê-la? A quem interessa que seja uma guerra, vamos dizer assim, que se pode deixar morrer criança? É um pensamento do tipo: ‘É preciso correr o sangue, mas tem que ser controlado para que a indústria norte-americana não sofra com o aumento de preço do petróleo e nem com a inflação’. É tão louco quanto isso que eu estou dizendo, infelizmente é assim!

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