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Com esperança nos olhos, a médica então recém-formada Lúcia Souto — ao lado de outros três jovens colegas — escolheu o caminho da medicina comunitária para “estar ao lado do povo”. A experiência na Baixada Fluminense, em meados dos anos 1970, em um tempo em que ainda não existia SUS, fez com que ela compreendesse na prática que “a saúde é determinada socialmente”. Essa visão marcaria para sempre a médica sanitarista, atual presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que foi testemunha e personagem ativa na construção do Movimento da Reforma Sanitária e nas mobilizações que levaram à 8ª Conferência Nacional de Saúde e gravaram a saúde como um direito de cidadania na Constituição Brasileira.

Na série de matérias comemorativas dos 40 anos de Radis, outra testemunha da redemocratização brasileira e da criação do SUS, escolhemos o nome de Lúcia Souto para esta entrevista especial sobre quatro décadas de lutas por saúde, democracia e direitos. Voz atuante da saúde coletiva, ela é médica formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1974, e pesquisadora do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Foi deputada estadual por dois mandatos (entre 1991 e 1999) e acompanhou de perto as lutas pela implementação do SUS. Na conversa com Radis, ela ressalta que a conquista da saúde como um direito exigiu mobilização e coragem, pois foi o mesmo que “remar contra a maré” — e é hoje um “legado gigantesco e exemplar”. “É muito real a presença do SUS na vida do povo brasileiro”, afirma. Lúcia também fala da grande liderança de Sergio Arouca nesse campo, com quem dividiu os anseios pela universalização da saúde, a mobilização popular, a política e a vida — Lúcia e Arouca foram casados até a morte do sanitarista, em 2003. Além de participar ativamente da concretização da Conferência Nacional Livre Democrática e Popular de Saúde, que ocorreu em 5 de agosto de 2022, ela espera que a 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) seja um marco histórico como foi a Oitava, em 1986. Para Lúcia, sempre foi preciso ousadia para lutar por mudanças.


Você já definiu o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira como um “projeto civilizatório”. Como se deu a construção dessa ponte entre saúde e democracia?

“Saúde e democracia” é o nome de um documento histórico do Cebes, que se tornou uma referência do movimento da Reforma Sanitária. É a interpretação dessa dinâmica social e política da sociedade de perceber que era necessária ousadia para realmente abrir caminho para a democracia brasileira, totalmente destruída pela ditadura militar. Foi havendo uma consciência da importância de uma grande mobilização da sociedade brasileira em torno de direitos e, especialmente, do direito universal à saúde. Esta já era uma luta global que surgiu após a Segunda Guerra Mundial com a necessidade de se criar um Estado de Bem-Estar Social. A partir do exemplo do Reino Unido com o relatório Beveridge, que foi nossa inspiração, e que originou a criação do National Health Service (NHS), o sistema de saúde inglês, essa agenda pública foi percorrendo outros países da Europa, com a ideia de que a saúde é um direito, assim como a preocupação de se construir uma sociedade de direitos. Mais tarde o Brasil capta a necessidade de trabalharmos com a ideia de direitos universais e de cidadania e de formar uma grande mobilização da sociedade em torno dessa pauta. 

A 8ª Conferência pode ser chamada de Constituinte Popular da Saúde”

E qual foi o papel do campo da saúde coletiva e da 8ª Conferência Nacional de Saúde nessa luta pelo direito à saúde?

Com pessoas ousadas como Sérgio Arouca e com o uso de uma epistemologia libertária, a criação do conceito de saúde coletiva trabalha com a ideia da determinação social no processo saúde-doença. Arouca, Cecília Donnangelo, são muitos os autores que trazem esse sentido original, da criação desse campo de conhecimento no Brasil. Outra dimensão é a questão democrática, visto que a saúde é democracia e democracia é saúde. E a 8ª Conferência Nacional de Saúde foi fruto dessa compreensão, mesmo que não houvesse ainda um consenso sobre a ampla participação social. Houve divergências, mas prevaleceu a característica de ser uma grande conferência popular de saúde e a primeira com participação, pois das sete anteriores, a única que teve um vestígio de presença [popular] mais ampla foi a terceira, no governo João Goulart. As outras foram técnico-administrativas. Para mim, a 8ª Conferência pode ser chamada de Constituinte Popular da Saúde. Foi uma conferência maravilhosa e uma grande felicidade pública naquele momento: já havia presença de povos originários, do movimento feminista, do movimento negro. Havia pluralidade de sujeitos políticos, coletivos e organizações de bairro. Os movimentos populares com a temática da saúde eram absolutamente importantes em vários locais do Brasil. Não foi apenas uma manifestação acadêmica e, sim, da sociedade brasileira articulada para se expressar de forma conjunta. Todas as diretrizes aprovadas entraram na Constituição de 1988, com o artigo 196, “Saúde é direito de todos e dever do Estado”, e a implementação através de políticas econômicas e sociais reconhece a questão de que a saúde é determinada socialmente e que não é uma mercadoria, mas um direito. 

O que representou a conquista da saúde como direito naquele contexto?

Isso é importante porque, naquele contexto, o Estado de Bem-Estar europeu estava completando 30 anos, mas ao mesmo tempo emergia a ideia de fim da sociedade e o início da era dos indivíduos, ou seja, a base do neoliberalismo. Tivemos que remar contra essa maré. Afirmamos na Constituição de 1988 a saúde como direito universal e de cidadania. Isso é importante porque requer ousadia, requer uma interpretação política da realidade que percebe que é o momento de criar alguma coisa, o sentimento de que estávamos fazendo parte da construção de um país. Como o Arouca disse em sua fala de abertura da conferência: “Não se trata apenas de um cuidado, e sim de um projeto civilizatório”. Mesmo porque em um projeto de sociedade ultraneoliberal não cabe um sistema de saúde. Assim como não há compatibilidade com nenhum direito universal. A construção da política pública de saúde como direito de cidadania é exemplar e uma referência. Não é apenas dar assistência médica, o que já seria muita coisa, visto que no país a saúde era apenas para quem tinha carteira assinada. Os outros trabalhadores, em geral, eram considerados indigentes, não tinham direito a nada. Outro país se abriu a partir daquele momento. 

Como se deu o seu envolvimento com a medicina comunitária na Baixada Fluminense?

Fomos para a Baixada. Éramos um grupo de quatro médicos: eu, Antônio Ivo de Carvalho, José Noronha e Anna Leonor Ostrower. Eu e Antônio Ivo fomos da mesma turma da Faculdade de Medicina da UFRJ. Nós nos formamos em 1974 e muitos de nossa turma foram presos durante a ditadura, inclusive ele e eu. A partir da prisão, passamos a frequentar a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) para pedir apoio. A CNBB teve um papel importantíssimo na época da ditadura militar, de apoio, sustentação e solidariedade. E fomos conversar com Dom Ivo Lorscheiter porque não queríamos participar de movimentos corporativos da classe médica que estavam também nessa movimentação sobre a Reforma Sanitária. Queríamos ir ao encontro do povo brasileiro, onde o povo estivesse. A nossa disposição era tamanha que iríamos para onde o D. Ivo sugerisse. Ao final da conversa, ele disse: “Vocês não precisam ir tão longe, vocês podem ir para a Baixada Fluminense”. O bispo de Nova Iguaçu, D. Adriano Hypólito, que também foi bastante perseguido pela ditadura, nos recebeu, fomos conversar e, ao final, ele disse: “As portas da Diocese estão abertas para vocês realizarem o trabalho que quiserem”. Então iniciamos o atendimento médico, criamos um pequeno ambulatório em um bairro chamado Cabuçu [Nova Iguaçu]. E começamos o trabalho em Nova Iguaçu que, na época, era a sétima cidade em população do país, e em Belford Roxo, que naquele momento ainda era distrito, considerado o local mais violento do mundo. 

Como essa atuação junto ao movimento de associações de moradores contribuiu para construir uma visão ampliada de saúde?

O contexto era bem adverso, com grupos de extermínio, o prefeito era nomeado pelo governo militar, não havia democracia. O que havia era a ausência completa do direito de ter direitos. Fazíamos o atendimento três vezes na semana, como generalistas, e como naquele momento houve o início do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foi trazido um projeto de extensão do Instituto para a Baixada. Fizemos todo um trabalho com agentes comunitários de saúde daquele bairro, com uma ficha familiar para fazer o cadastro das pessoas. Era um trabalho muito intenso, de formação de pessoas. Simultaneamente ao atendimento, começamos a nos reunir à noite com os bairros que tinham abertura com as comunidades eclesiais de base e a cada noite visitávamos um novo local. Eu me lembro que a primeira vez que perguntei para uma pessoa sobre qual era o principal problema de saúde daquele local, a moradora respondeu: “iluminação pública, pois quando não tem luz, a gente é assaltado, tem violência e isso é um problema de saúde”. Então realmente ficou bem claro que a saúde é um processo determinado socialmente. Fomos fazendo os encontros e mimiografávamos um pequeno boletim, a partir dos relatos recolhidos nos bairros. E foi nesse contexto que surgiu o Movimento Amigos de Bairro (MAB), que começou muito ligado à área da saúde e se tornou a maior associação de moradores do Brasil naquela época. Mais tarde, já em 1986, eu morava no bairro da Prata (que hoje faz parte de Belford Roxo), quando houve a epidemia de dengue que começou no Rio de Janeiro e em Nova Iguaçu. Havia uma inquietação, pois as pessoas suspeitavam de que fosse uma contaminação da Bayer, indústria química localizada em Belford Roxo. Eu já desconfiava de que não seria uma contaminação, mas alguma doença infecciosa nova, e decidimos denunciar porque havia uma explosão de casos e ninguém sabia o que poderia ser. Fizemos então o fechamento da Dutra, a maior rodovia do país. Foi algo histórico, noticiado em todo o Brasil, com uma mega movimentação denunciando o descaso das autoridades. Ressoou forte porque era o povo da Baixada em defesa do direito à saúde. E nessa época era necessário pagar uma taxa para ter o direito de reivindicar se você quisesse ir à Prefeitura pedir melhorias em estrutura, saneamento, etc. Era uma negação total dos direitos.

Como testemunha e participante desse processo que inscreveu o direito à saúde na Constituição Brasileira, que passou pela criação do Cebes (que hoje você preside) e da Abrasco, pela 8ª Conferência Nacional de Saúde e pela implementação do SUS, qual é o legado dessa luta 40 anos depois? 

É um legado gigantesco e exemplar. E, ao mesmo tempo, é muito real a presença do SUS na vida do povo brasileiro. A característica de ser tripartite, essa relação interfederativa, é a maior novidade que tivemos quanto às políticas públicas. Depois o SUS é imitado, no bom sentido, por outras ações, como o Sistema Único de Assistência Social (Suas), o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), o Sistema Nacional de Pontos de Cultura. É um legado irreversível. Imagine aquela Constituinte de 1988, em que a maioria era o Centrão, não era esquerda e muito menos democrática, mas configurava a transição para a democracia. Ao observar que toda essa pauta foi aprovada por aquele Congresso, é que nós vemos como é importante a participação popular. Uma coisa para a qual o Arouca sempre chamou a atenção foi que na área da saúde a gente fez várias coisas simultâneas. Além da articulação com os movimentos sociais, havia o registro da experiência de forma acadêmica pelos núcleos de saúde coletiva e medicina preventiva. Existiu uma “escrivivência” nesse processo, como diria Conceição Evaristo. Um exemplo é a criação do Cebes. Como o David Capistrano falava: “temos que ter uma revista crítica, um pensamento crítico na área da saúde”. Assim surgiu a revista Saúde em Debate, que existe até hoje, muito conceituada. Havia a noção de que precisávamos disputar hegemonia na sociedade brasileira com ideias. Posteriormente houve a criação da Abrasco. Mas as dificuldades também existem. Já em 1988, quando foi aprovada a Constituinte, no governo de José Sarney, existiu uma resistência organizada, como eu mencionei anteriormente sobre o Centrão. Aí o Sarney disse que o que está na Constituição Brasileira não é sustentável, não dá para fazer. E começou a lenga lenga neoliberal: “Não tem dinheiro. Como nós vamos fazer isso?”. Por isso acho que o legado fica mais robusto, porque se não fosse o processo e o método de construção, eu não sei se a gente teria resistido. 

“Todo mundo precisa de cuidado de saúde. É uma necessidade profunda do povo brasileiro.”

Que dificuldades e impasses surgiram na implementação do SUS?

Estamos diante de uma questão que toca a alma das pessoas. Todo mundo precisa de cuidados de saúde. É uma necessidade profunda do povo brasileiro. E logo depois de 1988, teve a eleição do Collor, com um projeto ultraneoliberal. Tentaram tirar a participação popular e não conseguiram. E muita coisa foi cerceada, por exemplo, a questão do sangue, com um comércio abusivo para a pessoa doar, sem nenhum critério de qualidade. Houve um amplo movimento para debater política nacional do sangue, mas a luta é tão grande que a lei só foi aprovada em 2001. Assim como a questão da saúde indígena e da reforma psiquiátrica. Enquanto deputada estadual na década de 1990, participei das visitas a instituições como a Casa de Saúde Doutor Eiras em Paracambi (RJ), em que as pessoas estavam deitadas no chão, comendo lavagem, muitas com mais de 30 anos de internação. A Colônia Juliano Moreira (RJ) também tinha uma situação muito complicada e sempre fiquei pensando como a figura de Arthur Bispo do Rosário veio daquela estrutura. Veja também o massacre em Barbacena (MG). Depois também me deparei com a situação de idosos na Clínica Santa Genoveva e presidi a CPI sobre esse caso, em que 102 idosos morreram em menos de dois meses, dopados, desidratados e desnutridos nesse processo. Havia a indústria da loucura e a do sangue. Não importa se irá matar pessoas, o importante é ganhar dinheiro. Portanto, a confrontação na base da sociedade do que é direito e do que é mercadoria não é uma abstração teórica. Era algo muito concreto. Pessoas vivendo uma situação sub-humana como em um campo de concentração. Enfim, as consequências das dificuldades geradas por esses governos neoliberais.

Qual foi a influência de Sergio Arouca em sua trajetória e como você também influenciou a trajetória dele?

A gente teve trajetórias paralelas, não no mesmo lugar. Eu estava na Baixada, mergulhada no dia a dia e naquelas lutas todas. A influência veio no processo político em que nos encontramos. Fomos do mesmo partido (PCB), ele como candidato a deputado federal e eu como estadual no mesmo momento. Foi um encontro transcendental entre a gente. Eu já havia passado por dois casamentos e ele também, mas nos encontramos também afetivamente. Foi uma experiência grande, profunda, um encontro bastante intenso e fértil. E para mim ele é uma figura transversal da política brasileira, realmente uma referência. É de se tirar o chapéu toda vez que nos aproximamos daquela coragem, das suas contribuições. E as contribuições do Arouca influenciaram a todos. Por exemplo, a gestão dele na Fiocruz é absolutamente inovadora e corajosa. Ele coloca a questão da gestão democrática e participativa em andamento. Isso não é pouca coisa. Foi incansável na luta política brasileira. Era um cara que se expunha a todos os riscos, porque ele não tinha um projeto interessado, ele tinha era um projeto de país. Quando assumiu, no governo de César Maia, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, trabalhei com ele. Ele queria que houvesse 100% de cobertura de Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. Ele também promoveu uma reunião histórica, no Rio de Janeiro, com todos os secretários municipais de capitais do Brasil. Juntamente com Eduardo Jorge, secretário municipal de saúde de São Paulo na época, articularam esse evento para apresentar ao Ministério da Saúde que era necessário ampliar o financiamento da atenção primária no Brasil, da Saúde da Família, que era importante ter um aumento em escala deste programa. A reunião gerou um documento chamado Carta do Rio e foi importante por conseguir reunir todos os secretários municipais, independentemente de partidos políticos, com o objetivo de consolidar e ampliar o SUS no Brasil. Ele foi um parlamentar exemplar e costumava brincar que a Fiocruz significava tanto que a instituição tinha até um parlamentar só para ela. Era respeitadíssimo e muito influente no Congresso Nacional e teve uma votação muito consagradora no Rio de Janeiro. Na primeira gestão do governo Lula, ele ocupou a cadeira de secretário do Ministério da Saúde com uma gestão participativa e dinâmica e propôs para a frente de partidos que apoiaram Lula que se fizesse a convocação da Conferência Nacional de Saúde logo no primeiro ano de governo, com o objetivo de marcar esse encontro entre governo e participação social. Então, para mim, Arouca é gigante. Um ser indispensável. 

O Programa Radis nasceu em julho de 1982, a partir da criação de três publicações que faziam um diálogo direto com o Movimento Sanitário. Como você avalia o papel da comunicação e da informação em saúde na construção do Movimento da Reforma Sanitária e do SUS?

Gostaria de parabenizar o Programa Radis porque realmente o trabalho de vocês é fundamental. E a comunicação é algo estratégico. O Arouca tinha uma visão de que a comunicação é realmente a chave. Não há democracia sem uma comunicação libertária e emancipadora. E vou me ancorar no Noam Chomsky, em seu livro Mídia: Propaganda Política e Manipulação, que em determinado trecho fala sobre a rejeição da população americana em participar da Primeira Guerra Mundial e como isso mudou em seis meses, pela campanha promovida pela Comissão de Propaganda. Outro exemplo é o nazismo, em que usavam palavras que tocavam nos sentimentos, simples, rápidas e duras. É algo parecido com o que vivemos agora, com a comunicação tóxica desse governo. A comunicação é absolutamente parte integrante da guerra híbrida que nós estamos vivendo. O fato de a sociedade brasileira estar intoxicada por mentiras flagrantes mostra a importância da comunicação na disputa de uma nova hegemonia nas sociedades humanas. Mas com essa vivência trágica catastrófica que tivemos, acredito que aprendemos um pouco. Nesse ponto, acho que Radis está à frente há 40 anos. E quarenta anos não são dois dias. Também é um legado dessa luta do SUS. É algo formativo. É um instrumento de luta das pessoas com acesso às matérias maravilhosas que vocês produzem. Também acredito que as nossas organizações aprimoraram a sua comunicação nesse contexto catastrófico da pandemia e dos quatro anos desse governo. O Cebes agora tem um programa chamado Cebes Debate, onde podemos trazer muitas pessoas para discutir assuntos urgentes nessa temática de saúde e direitos. E a Abrasco criou o Ágora Abrasco. Enfim, acho que estamos com mais consciência crítica de que a comunicação é fundamental e vamos ter que fazer mudanças importantes. No golpe de 2016 e em todos os golpes que já foram dados no Brasil, toda vez que se pensou em mudar essa sociedade escravocrata e a divisão de renda neste país, a mídia teve um papel dominante, hegemônico. Portanto, não há democracia sem uma ampliação fundamental da mídia democrática, que não seja oligopolizada. 

Vivemos um contexto político de radicalização dos discursos de ódio e de crescente violência política, em que a pauta de defesa da democracia tornou-se vital. O que as lutas do passado nos ensinam sobre o presente?

Nós atualizamos o Movimento da Reforma Sanitária com a criação da Frente pela Vida. Entidades históricas da Reforma Sanitária Brasileira protagonizam este novo movimento como Cebes, Abrasco, Rede Unida, Sociedade Brasileira de Bioética, Conselho Nacional de Saúde e muitas outras. Trouxemos uma agenda brilhante e fundamental no processo da pandemia, desde a Marcha Virtual de Brasília, no auge do isolamento, o Plano Nacional de Enfrentamento à covid-19, a luta “O Brasil precisa do SUS”. Conseguimos chamar muitas pessoas, artistas, lideranças comunitárias. Houve a reunião com o Fórum de Governadores, com o Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], enfim, movimentamos esse campo até para compensar e enfrentar o projeto de destruição do governo nessa área. Atingiram o seu objetivo, mataram 700 mil pessoas no Brasil, dois terços evitáveis, impediram a população brasileira de ter renda e de fazer isolamento, assim como a situação de deboche sobre aqueles que estavam infectados e em situação muito debilitada provocada pela covid-19. O que aconteceu no Brasil foi gravíssimo. Mas nós estivemos presentes e fomos reconhecidos, levamos o documento ao Ministério da Saúde, ao Judiciário, ao Congresso Nacional e fizemos em 7 de abril deste ano, com a herança do que há de melhor do movimento da Reforma Sanitária Brasileira, a convocação para a Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde. Contamos com uma grande presença online e fisicamente de parlamentares de vários partidos e da sociedade civil. No dia 5 de agosto, em São Paulo, conseguimos realizar a Conferência onde nós encaminhamos o documento da Frente pela Vida com diretrizes que eu considero importantíssimas nesta atualização do movimento da Reforma Sanitária. 

Que reivindicações resultaram da Conferência Livre?

A primeira delas é que a saúde seja 100% pública. O objetivo não é fácil, mas precisamos ter a ousadia de colocar isso na agenda. A segunda diretriz é ter o financiamento adequado e sustentável. O SUS sempre foi subfinanciado e, com o golpe de 2016, mudou de patamar para o desfinanciamento. Não há política pública sem dinheiro, mesmo com o blá blá blá neoliberal e a conversa fiada de que não sabemos gerir. Nós é que precisamos ensinar ao setor privado como gerir. É um papo furado de que é necessária uma Organização Social (OS) para gerir o SUS. É preciso mudar o financiamento padrão. Hoje você tem 9,6% do PIB na área da saúde, sendo que mais de 60% é para 25% das pessoas que possuem planos e seguros de saúde. Isso é insustentável. A terceira diretriz é a formação da carreira de estado para os profissionais do SUS. A precarização pela qual têm passado estes profissionais ficou muito evidente na pandemia. Havia lugares em que as pessoas nem recebiam salário. E, ao mesmo tempo, eles são colocados como heróis que estão na linha de frente. É algo humilhante, estas pessoas passaram por uma degradação enorme. 

O que a pandemia revelou sobre o SUS?

A pandemia nos mostrou que o SUS é fundamental para o Brasil. E com essa crise climática passaremos por outras pandemias. A situação no mundo é muito crítica e extrema, fruto desse capitalismo extrativista, predador, que destrói tudo que está à sua frente: vidas e direitos. É uma necropolítica com todas as suas letras em maiúsculo. Os países precisam ter a consciência de que é necessário proteger a vida e a saúde das populações do mundo. Nós só não fomos mais gravemente atingidos por causa do SUS, porque existe uma instituição pública centenária como a Fiocruz, como o Butantã. Outro ponto decisivo é a saúde como eixo estratégico de desenvolvimento porque não só permite a segurança e a soberania sanitária ao país, como gera inúmeros empregos de qualidade e coloca o Brasil na ponta da ciência e da tecnologia. Isso é fundamental. E, por fim, a diretriz da democracia. Precisamos ampliar e radicalizar a democracia no Brasil e isso realmente é uma tarefa importante, por isso houve a Conferência Livre, que já é uma etapa preparatória para a 17ª Conferência Nacional de Saúde. E na 17ª nós vamos jogar muito peso. Ela precisa ser tanto ou mais histórica do que foi a 8ª: Como refundar o Brasil em novas bases? Não vai ser fácil. Em um país de 216 milhões de habitantes, somente com uma sociedade crítica e organizada conseguiremos. É ter a análise de que só com ampla participação a gente vai ter base popular e política para fazer a agenda de refundação do país que a gente precisa realizar.

Qual é o papel da mobilização popular nesse momento?

Para preparar a Conferência Livre, realizamos mais de 120 pré-conferências em vários lugares e foi algo muito surpreendente. O bloco já está na rua. E acho que a 17ª será fundamental. É preciso a retomada das conferências. E fomos nós, da saúde, que inauguramos isso. O único conselho nacional que não foi destruído durante o governo atual foi o Conselho Nacional de Saúde (CNS), porque está previsto em lei. Veja a importância dessa movimentação que criou barreiras e resistências intransponíveis, já que não conseguiram destruir nem desativar o CNS. Em relação à 17ª, com o lema “Amanhã será outro dia”, estamos trabalhando para que seja uma conferência absolutamente vigorosa, que possa expressar o anseio da população brasileira por um novo momento. E acho importante dizer sobre a violência que ocorreu na reta final da eleição: essa escalada tem o objetivo da intimidação, do medo, de querer ganhar no grito. A violência é a antítese da política. Mas acho que o Brasil está criando uma frente de salvação nacional equivalente. Já temos aqui na América Latina uma articulação que está se constituindo com a vitória, na Colômbia, de Gustavo Petro e Francia Márquez. E eles também estão enfrentando essa mesma violência endêmica que nós temos aqui, sendo que a nossa atualmente está mais epidêmica. E é preciso ter clareza que nada disso acontece à toa. Existem grandes lobbies nessa guerra híbrida da extrema direita global que é o capital ligado à indústria de armamentos, que está a pleno vapor no Brasil; a questão do garimpo, com um projeto bilionário de capitalismo extrativista, que queima a Amazônia e tudo o que vê pela frente. Isso afeta a possibilidade de vida no planeta. O objetivo é desregulamentação de tudo. Mas tenho a esperança de que conseguiremos superar isso.

“A população brasileira optou por viver.”

O que esperar do futuro do SUS e do direito à saúde no Brasil? Por que a luta pelo SUS e pela democracia é tão estratégica neste momento? 

A defesa do SUS é vital porque é uma política pública intimamente ligada à vida das pessoas. Na pandemia isso ficou escrachado. As pessoas compreenderam que o SUS é essencial e esteve presente com a questão da vacina. Aquele movimento das pessoas irem se vacinar espontaneamente declarando “Viva o SUS!” é algo muito emocionante. A maior parte da população brasileira não deixou de se vacinar, mesmo com uma campanha contrária vinda do próprio presidente. A população brasileira optou por viver. Isso é a demonstração da importância dessas políticas de produção de dinâmicas sociais de vida, porque estamos nas dinâmicas sociais de produção de morte. E o país precisa produzir dinâmicas sociais e políticas de vida, de cultura, de arte, de alegria, de prazer. O SUS representa isso, representa a possibilidade de criarmos qualidade de vida e bem-estar. Ele foi sabotado e negligenciado, mas não foi destruído. Está aí e ainda é reconhecido. O Brasil está na clandestinidade. E para enfrentar isso só mesmo com a democracia. Em que Brasil nós queremos viver? Não queremos viver nesse sofrimento, nessa exaustão, nessa tortura cotidiana.  

Que Brasil e que saúde você gostaria de ver retratada pelas páginas de Radis nos próximos 10 anos?

O meu sonho é: “Brasil se afirma como uma potência em promover a saúde como direito universal e contribui decisivamente para o mundo na quebra de patentes, para realmente construir a proteção da vida e da saúde dos povos”. Será uma revolução.

https://radis.ensp.fiocruz.br
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