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  1. Entrevista

“Sem condições seguras, não há retorno pleno às aulas defensável”

Entrevista com Andressa Pellanda

Redes de ensino de várias partes do Brasil se preparam para o retorno pleno às aulas presenciais, deixando de funcionar em esquema de rodízio, no qual as turmas são divididas em dois grupos e cada uma frequenta a escola em semanas alternadas, ou em formato remoto. Para Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é urgente a volta às aulas presenciais para a garantia da educação, da proteção, da saúde mental de crianças, jovens e adultos, mas não é possível ignorar evidências de que não existem condições adequadas para um retorno seguro na grande maioria das escolas brasileiras.

Ela cita, em entrevista à Radis, que apenas 30% dos professores consideram adequada a ventilação natural de seus locais de trabalho, e 39% das escolas não têm estrutura de lavagem de mãos. “Os direitos humanos são complementares e não devem competir entre si. Isso significa que o Estado não deve relegar à população a decisão entre o direito à educação ou à saúde, por exemplo”, afirma Pellanda, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (USP), pós-graduada em Ciência Política (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e bacharel em Comunicação Social (USP).

Diversas redes de ensino de todo o Brasil retomaram o ensino presencial. Estamos em um momento adequado para a volta às aulas neste formato?

Enquanto é sabido que o retorno às atividades presenciais é essencial e urgente, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação reafirma o que está registrado em seus posicionamentos, estudos e materiais: não se pode ignorar evidências de que não existem, plenamente, garantias de condições adequadas para um retorno seguro às aulas presenciais como deveriam na grande maioria das escolas brasileiras. A variante Delta, que se espalha pelo país com transmissibilidade muito alta, reforça a preocupação por assegurarmos o direito à vida de estudantes e trabalhadores da educação, mesmo com a vacinação dos profissionais da educação. A grande maioria dos territórios do Brasil não se adequa aos indicadores elaborados pela Fiocruz no documento Recomendações para o Planejamento de Retorno às Atividades Escolares Presenciais no Contexto da Pandemia de Covid-19 (leia no box ao lado). É preciso corrigir os rumos e dar as condições adequadas para a garantia plena dos direitos humanos. 

A Fiocruz lançou em agosto uma versão atualizada e ampliada do documento que publicou originalmente em março reunindo um conjunto de orientações e recomendações a respeito das atividades escolares em um cenário de pandemia. Sob coordenação da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS), o material é baseado em evidências e informações científicas e sanitárias.

Os protocolos para o retorno seguro passaram a considerar, nos ambientes escolares, medidas protetivas prioritárias: adaptação para ventilação e melhoria da qualidade do ar; uso de máscaras com comprovada eficácia; definição de estratégia para rastreamento e monitoramento de casos e contatos na escola e medidas para suspensão de atividades presenciais; manutenção do distanciamento físico de, pelo menos, 1,5 metro; e orientações sobre higienização contínua das mãos.

A decisão sobre o melhor momento para a reabertura deve seguir, de acordo com o documento, as orientações dos indicadores epidemiológicos, sem que se esqueça dos grandes malefícios do afastamento prolongado das atividades presenciais na saúde de crianças, jovens e adultos, bem como dos prejuízos para a educação e a formação de toda uma geração. O grupo da Fiocruz frisa que o plano de retorno às atividades presenciais de ensino deve ser aprovado após ampla discussão com a comunidade escolar, e que é importante o envolvimento dos alunos na tomada de decisões.

Neste longo período de pandemia, houve planejamento suficiente para o retorno presencial com segurança? As escolas ganharam estrutura necessária para esses novos tempos? 

É preciso que as escolas tenham infraestrutura adequada para a retomada, e este não é o caso de muitas delas. Problema de infraestrutura é o segundo maior desafio para o retorno às aulas nas redes municipais, segundo levantamento da Undime (que agrega dirigentes de Educação) — a falta de internet lidera. Apenas 30% dos professores consideram adequada a ventilação natural de suas escolas (Saeb 2019). Segundo dados do Unicef, 39% das escolas não têm estrutura de lavagem de mãos. E dados do Censo Escolar apontam que a média de alunos por turma no Brasil é de 22 alunos. É preciso investir em infraestrutura, formação de professores e condições de trabalho, aliado a uma agenda de saúde pública de enfrentamento à covid-19, com aceleração da vacinação e melhores campanhas e controle dos protocolos sanitários em todos os serviços. Sem essas políticas concomitantes, não haverá educação de qualidade em sala de aula — pois sem infraestrutura e condições seguras para essa educação — e não haverá retorno pleno que seja defensável — porque sem condições sanitárias para isso. É preciso que se tomem medidas de forma urgente para enfrentar esses problemas e para retornar com capacidade total o quanto antes. 

A comunidade escolar tem sido ouvida sobre a retomada?

A gestão democrática e a construção participativa é um dos principais caminhos para sucesso em políticas emergenciais, de acordo com a relatora da Organização das Nações Unidas para o Direito à Educação, Koumbou Boly Barryl. E o Brasil não soube cumprir com esse pressuposto básico.

Qual o impacto da vacinação de adolescentes de 12 a 18 anos nessa equação? E como fica a situação daqueles menores de 12 anos?

É bem importante que adolescentes estejam vacinados para redução da taxa de contágio e para proteção desses grupos. Os menores de 12 anos precisam também entrar o quanto antes no calendário de vacinação, já que é uma população que também está vulnerável às novas cepas.

É justo falar que houve um movimento de diversos setores, mais fortemente ligados às escolas particulares, pela reabertura mesmo quando estávamos no pico da pandemia? Como foi o enfrentamento a essa investida?

Houve, sim, um movimento negacionista de pressão do mercado e de escolas privadas para a volta às aulas no momento com maiores contaminações e mortes de toda a pandemia no Brasil. Foi dessa pressão que surgiram as propostas negacionistas de tornar a educação atividade essencial, o que é um total contrassenso anticientífico. Fizemos um movimento de produção de notas técnicas e de conhecimento científico sobre o tema, além de forte mobilização social, que segurou a pauta e conseguimos suspender a votação.

Algumas medidas foram (ou ainda estão sendo) discutidas neste sentido. Por exemplo, o Projeto de Lei 5.5595/2020, agora parado no Senado, que visava tornar a educação presencial uma “atividade essencial” para possibilitar o retorno imediato das aulas. 

No caso do PL 5.595/20, apresentado em uma das piores fases da pandemia, havia uma tentativa de manipulação narrativa, já que no conceito jurídico “essencial” não é sinônimo de “importante”. Não há dúvidas de que a educação é importante, mas ela não pode ser considerada serviço essencial porque ao obrigar a reabertura de escolas em massa e sem seguir os protocolos, haveria um risco enorme de ainda maior descontrole da pandemia e milhares de mortes por covid-19. Os termos da delimitação constitucional de serviços essenciais se vinculam à risco iminente à integridade física das pessoas e à segurança pública.

A Câmara dos Deputados aprovou em 21 de abril o PL 5595/20, que busca tornar a educação infantil, os ensinos fundamental e médio e a educação superior serviços essenciais, impedindo assim a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas — exceto se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do estado ou município. 

Como avalia o acesso ao ensino remoto emergencial?

O ensino remoto foi um grande fracasso: as políticas desenvolvidas foram absolutamente descoladas da realidade nacional e da maioria dos estudantes de falta de acesso à internet banda larga e a dispositivos adequados para uma boa aula remota. Isso aconteceu por falta de gestão democrática na construção das políticas emergenciais: estudantes e educadores alertaram desde o começo sobre os desafios que enfrentavam e pouco foi feito para adaptar, especialmente no ensino médio, à realidade dos estudantes. 

A luta pelo direito à internet, neste contexto, ganhou apoio expressivo?

A luta pelo direito à internet foi bastante ampla, conseguindo aprovar no Congresso o PL 3.477/20, que prevê internet gratuita a alunos e professores da rede pública, e derrubar o veto de Bolsonaro ao texto. Ainda falta muito, no entanto, para que a política se torne realidade, porque passa por financiamento para tal, que foi cortado ou contingenciado.

Foram postas em prática medidas significativas para reduzir a desigualdade no acesso? 

Diversas redes de ensino — dado a falta de acesso de milhões de estudantes e profissionais da educação a condições mínimas em seus domicílios para que os processos de ensino-aprendizagem se efetuassem, como equipamentos e recursos tecnológicos diversos —, optaram por não implementar os calendários letivos de forma remota e passaram a manter, nessa modalidade, atividades essenciais e de vínculos entre família e escola. Outras redes, sem processos participativos de formulação de políticas, tomaram o caminho de seguir implementando os calendários letivos programados antes da pandemia, em plataformas privadas, excluindo as populações em maior situação de vulnerabilidade e entrando em uma seara também de violação de privacidade de dados. Entre um exemplo e outro, uma gama de diferentes caminhos foram trilhados, para responder à situação emergencial inédita com que as comunidades escolares de todo o país se depararam. Esse cenário teve dois agravantes fundamentais: a falta de participação e gestão democrática das políticas públicas emergenciais e a falta de financiamento adequado às áreas sociais. Apesar das recomendações e dos esforços de especialistas de todas as áreas, em âmbito nacional e internacional, as políticas de austeridade, sob a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, seguiram vigentes e ceifando vidas e direitos de toda a população, impactando especialmente as populações em maior situação de vulnerabilidade.

De que maneira a emenda do teto de gastos tem afetado o orçamento da área e a implementação do Plano Nacional de Educação?

Chegamos em 2021 com um cenário geral de estudantes de todo o país em uma situação de exclusão escolar e em violação de uma série de direitos que vão além do ensino e aprendizagem, como proteção social e alimentação segura e saudável. Não houve dúvidas em todos os setores sociais acerca da importância da escola como lugar de garantia de direitos e dos profissionais da educação como atores primordiais para tanto. Para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, isso sempre foi uma certeza. Monitoramento de grupo de organizações da sociedade civil mostra retrocessos na maioria das metas estipuladas na Agenda 2030, acordo de países coordenado pela ONU para o desenvolvimento sustentável. Das 11 metas do Relatório Luz 2021 para a educação, oito delas tiveram retrocesso, duas estão ameaçadas e outra está estagnada.

A PEC 13/2021 pretende anistiar a União, estados e municípios que não aplicaram os percentuais mínimos de receita na manutenção e desenvolvimento do ensino entre 2020 e 2021. Isso significa que os recursos não foram aplicados no ensino remoto?

A PEC 13 foi um subterfúgio para ajudar gestores que não fizeram sua parte, seja em investimentos em ensino remoto, seja em obras de infraestrutura nas escolas. E, pior, sua aprovação pode significar um precedente terrível para o financiamento da educação: o perdão ao calote.

A PEC 13/2021 anistia entes federativos e agentes públicos pelo descumprimento da Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE) no exercício financeiro de 2020 e 2021 e pelo descumprimento da obrigação de investir no mínimo 70% dos recursos do Fundeb com pagamento dos profissionais da educação básica. O texto também unifica os pisos da saúde (15%) e educação (25%), de modo que, nesse período, os entes somente se sujeitam à meta de aplicar 40% da receita na saúde em conjunto com a educação. 

O governo vem encaminhando propostas como das escolas segregadas para pessoas com deficiência, da educação domiciliar e dos vouchers para creches. O que esses projetos falam sobre a educação no Brasil de hoje?

A falta de investimentos e de medidas para garantir condições de infraestrutura, acesso, permanência e qualidade para todas as pessoas que são sujeitos de direito da educação gerou uma exclusão escolar que não está presente nos dados, pois vai além do indicador de matrícula. São milhões de estudantes excluídos dos processos educativos e em situação de vulnerabilidade, pobreza, fome, trabalho infantil, explorações e violências diversas. Os recortes de gênero, raça, território e sociais são marcantes e escancaram as desigualdades estruturais. São milhões de pessoas invisibilizadas, tocadas por políticas emergenciais de base excludente. O governo federal tem, ao contrário da agenda do Plano Nacional de Educação, um programa baseado em negacionismo científico, em privatizações, em fundamentalismos, em militarismos e em discriminações. São retrocessos a passos largos.

Quais são os desafios impostos à educação no mundo pós-pandêmico? É possível recuperar conteúdos atrasados diante de um cenário de escassez de investimento?

Os direitos humanos são complementares e não devem competir entre si. Isso significa que o Estado não deve relegar à população a decisão entre o direito à educação ou à saúde, por exemplo. No debate sobre reabertura das escolas, esse elemento é central: é urgente a volta às aulas presenciais para a garantia da educação, da proteção, da saúde mental, mas em um cenário de falta de segurança sanitária e sem condições de infraestrutura nas escolas, o direito global à saúde de toda a comunidade escolar — especialmente das e dos profissionais da educação e também das famílias e, por consequência, de toda a sociedade — fica comprometido. Dessa forma, a posição da Campanha Nacional pelo Direito à Educação sempre foi a mesma: o retorno às atividades presenciais é essencial e urgente, mas não pode passar por cima da garantia de condições para um retorno seguro. Essa garantia passa pelo controle da pandemia, pela elaboração participativa e democrática de diagnósticos e de protocolos de retorno, pelo financiamento e investimento em infraestrutura que assegure condições materiais de segurança nas escolas, e pela transparência nas políticas e na disponibilização de dados não só para a construção da reabertura, como também no monitoramento do andamento dos trabalhos e dos casos de contaminação.

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