Quando era criança, na cidade de Jucás, no centro-sul do Ceará, o menino Carlile Lavor acompanhava curioso a atuação do pai, farmacêutico, que sempre era convocado a resolver “os casos complicados” de saúde. Corriam os anos 1940 e as condições de vida eram duras. Muitas pessoas morriam por causas evitáveis, principalmente crianças, como ele. Ele decidiu se tornar médico para tentar resolver os mesmos problemas que o pai enfrentava.
Na faculdade, não encontrou as respostas que procurava, até se interessar pela medicina preventiva. Já formado, os caminhos profissionais o levaram ao Distrito Federal, onde, ao lado da esposa e parceira Míria, conseguiu aproximar o conhecimento de saúde da vida das pessoas. Juntos, eles reuniram auxiliares de saúde, em um projeto que seria o embrião dos futuros agentes de saúde. Anos depois, a ideia se consolidou no Ceará, quando selecionaram, contrataram e capacitaram 6 mil mulheres pobres para atuarem em suas comunidades.
“Esse foi o começo dos agentes de saúde”, diz com tranquilidade o sanitarista Carlile Lavor, 84 anos, 60 deles dedicados à medicina. Ao telefone, falando de Fortaleza, ele conta à Radis como as origens dos agentes comunitários de saúde (ACS) se confundem com a sua trajetória profissional e de sua esposa, relembra como foi implementar a estratégia no interior do Ceará, no fim dos anos 1980 — destacando a importância de agentes e enfermeiros no processo — e avalia a atual Estratégia Saúde da Família (ESF).
Em sua análise, ele destaca avanços, aponta questionamentos e defende que a saúde da família foi embrião do próprio SUS: “O agente de saúde ajudou o SUS a nascer”, diz, com a mesma convicção que afirma que foi o ACS “o primeiro a levar algo de saúde às famílias pobres”. Pai de quatro filhos e avô de quatro netos, ele continua atuante na Fiocruz Ceará (da qual foi coordenador durante os últimos 14 anos), onde hoje se dedica a acompanhar a formação de pesquisadores, em Fortaleza, a monitorar a saúde da família em Tauá, que considera “um município-laboratório”, e a colaborar na formação de novos médicos na Universidade Regional do Cariri (Urca), no Crato.
Tudo com a disposição de quem é pioneiro: “A formação do médico é essencial. E para formar um médico comprometido com o SUS e com a vulnerabilidade de saúde da população, é preciso experimentar”, ensina o mestre, que continua pautando sua atuação na defesa de uma aproximação da saúde com a comunidade: “É difícil alcançar a população e fazer o que o SUS deseja sem saúde da família de qualidade”, defende.
O senhor foi um dos responsáveis pela criação do programa de agentes de saúde, no Ceará, no fim dos anos 1980. Que experiências contribuíram para a construção da proposta, que é considerada uma das iniciativas precursoras da Estratégia Saúde da Família no Brasil?
A Universidade Federal do Ceará (UFC) foi, segundo o Paranaguá [professor e médico José Paranaguá de Santana, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde — Nethis/Fiocruz], a primeira universidade a criar um instituto de medicina preventiva ligado à faculdade de medicina, mas com autonomia. O diretor era Joaquim Eduardo de Alencar, um discípulo do Samuel Pessoa [sanitarista paulista (1898-1976), foi um dos pioneiros em pesquisas sobre parasitologia médica]. A criação dos departamentos e institutos de medicina preventiva foi estimulada pelos Estados Unidos, a partir do estudo das coortes de Framingham [estudo de coorte a longo prazo sobre o sistema cardiovascular dos habitantes da cidade estadunidense de Framingham, que começou em 1948], que identificaram a importância de investigar o estilo de vida para entender as doenças do coração. Caminhar, manter alimentação saudável, medir a pressão, tudo isso fazia parte de uma visão que defendia a importância de estudar a vida das pessoas fora do hospital.
Como era o estudo?
O estudo aconteceu em Framingham, que fica perto da Universidade de Harvard, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Em 1948, eles começaram a acompanhar 5.900 pessoas, com 30 anos ou mais, para ver o estilo de vida e descobrir como apareciam as lesões de coração (infarto, AVC, e outras doenças nas artérias). Eles acompanharam, primeiro, durante muitos anos, estas 5.900 pessoas; depois, passaram a acompanhar os filhos dessas pessoas e criaram uma série de coortes. Com o grande número de exames e seus resultados, eles viram que a pesquisa nas comunidades era muito importante para entender as doenças crônicas; para as questões agudas, claro que era muito melhor ver no hospital, onde um caso grave chega, você trata e o resultado é bom, ou não. Mas uma doença crônica, tipo uma lesão arterial da coronária ou das artérias cerebrais, ela se forma durante um longo tempo, o que não é possível ver em hospital, mas é possível ver na comunidade. Diante destas constatações, eles perceberam a importância do estudo das comunidades para prevenção, ficaram muito animados e estimularam as universidades latino-americanas a desenvolverem departamentos de medicina preventiva. No Ceará, foi criado o Instituto de Medicina Preventiva, que depois também foi criado na USP [Universidade de São Paulo], tanto em São Paulo como em Ribeirão Preto, e na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], em Campinas, além de várias outras universidades do país.
Como você se ligou ao tema?
Fui bolsista no Instituto de Medicina Preventiva do Ceará, enquanto cursava os últimos anos de medicina, na UFC. A lógica do Instituto era formar pesquisadores nas áreas básicas da Medicina. Eu me dediquei à microbiologia. Depois de terminar o sexto ano, completei a formação no instituto que hoje se chama Paulo de Góes (IMPG), no Rio de Janeiro. Estudei lá um ano, microbiologia e imunologia, e voltei ao Ceará. Mas realmente aprendi com profundidade a lidar com as doenças, principalmente as doenças da criança, que eram as que mais me interessavam — no sertão do Ceará, a mortalidade infantil era altíssima — quando eu fui trabalhar na Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, no Distrito Federal.
Como foi a experiência?
A unidade era o hospital-escola da Universidade de Brasília (UnB), criada sob a inspiração de Darcy Ribeiro. Luiz Carlos Lobo [um dos fundadores do curso de medicina da UnB], que havia sido aluno do Chagas Filho [sanitarista Carlos Chagas Filho (1910-2000)], queria implementar algo novo na medicina. Ele queria formar médicos que atendessem mais a população do sertão, a população pobre, algo que não fosse só o modelo do INSS, ou do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, política pública de saúde que vigorava antes da criação do SUS]. Ele procurou formar um médico generalista, capaz de atender de maneira integral, nas cidades, à população pobre, que morria em alta escala, principalmente as crianças. Passei 10 anos na Universidade de Brasília. Foi lá que realmente aprendi sobre as doenças da população pobre, e fui entender como seria possível prevenir as doenças das crianças, que morriam em larga escala.
Quais eram os principais problemas?
Começavam pela desnutrição, seguiam-se infecções (intestinais, de pulmão, de ouvido ou de garganta, nas meninges, sarampo, coqueluche). Esse conjunto de desnutrição e infecções levava geralmente a criança à septicemia e ao óbito. Tudo isso a gente acompanhava no hospital em Sobradinho [DF]. Nós éramos 80 médicos, em dedicação exclusiva, cuidando de uma cidade de 25 mil habitantes, então tínhamos tempo para estudar com profundidade. Toda criança que morria, a gente estudava as causas e procurava saber como seria possível prevenir. Foi aí que aprendi que podia prevenir as doenças da criança, porque sabia que essas doenças eram provocadas por situações de família. Mas não sabia como chegar até elas. Foi aí que recebi ajuda da minha mulher, Míria Campos Lavor.
Você fala muito dela como parceira profissional…
Ela teve um papel fundamental. Míria era assistente social, também contratada pela Universidade de Brasília. Como eu já disse, eu não sabia como chegar às famílias, mas ela sabia. Eu sabia que o aleitamento materno, a higiene e a vacinação eram importantes, mas não sabia como convencer as famílias a fazerem isso. Nos 10 anos que a gente ficou em Brasília, a Míria fez isso. Aprendemos a fazer junto à população das cidades satélites de Brasília, cinco anos em Sobradinho, depois cinco anos em Planaltina. Nesta última, a gente participou de um trabalho com o professor Frederico Simões Barbosa [sanitarista pernambucano (1916-2004), um dos primeiros a conduzir estudos epidemiológicos de longa duração], que havia trabalhado com esquistossomose e tinha experiência na Organização Mundial da Saúde — além do Paranaguá, que fazia residência conosco, na mesma área.
Como era o trabalho?
Nós reunimos a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, a coordenação de Saúde de Planaltina, a universidade, com o professor Frederico Barbosa, e a Fundação do Serviço Social, com a Míria. Fizemos uma experiência com os chamados auxiliares de saúde, que seriam os embriões dos futuros agentes comunitários de saúde. Depois de 10 anos em Brasília, eu e Míria voltamos ao Ceará.
“Eu sou de Jucás, uma cidade que era bem pobre, no interior do Ceará. Lá, eu via uma grande quantidade de crianças morrendo. Eu não aprendi na faculdade de medicina como mudar isso. Formavam para trabalhar em hospital, formavam especialistas.”
Você considera que a opção que fez pela saúde coletiva é resultado de um contexto daquela época ou você já tinha perfil para trabalhar com as populações mais vulneráveis?
Eu sou de Jucás, uma cidade que era bem pobre, no interior do Ceará. Lá, eu via uma grande quantidade de crianças morrendo. Eu não aprendi na faculdade de medicina como mudar isso. Na faculdade, a gente via os casos complicados. Formavam para trabalhar em hospital, formavam especialistas. Em Jucás, não tínhamos nada disso. Como eu não sabia como ajudar, e nem aprendi isso na faculdade, eu não deixei passar a oportunidade de participar dessa experiência em Brasília. A faculdade era voltada a formar um médico que pudesse resolver este tipo de problemas. Eu cheguei lá como professor de microbiologia, mas também para aprender a trabalhar com esses colegas, e juntos descobrirmos como ajudar a população mais pobre. Aprendi como fazer, do ponto de vista médico, e a Míria aprendeu como chegar às famílias. Meu objetivo era fazer as famílias mudarem o seu comportamento para deixar de acontecer aquilo que estava acontecendo.
E o que aconteceu quando vocês voltaram ao Ceará?
Eu e Míria fomos aprovados em concurso como sanitaristas da Secretaria de Saúde do Estado para trabalhar em Iguatu (distante 360km de Fortaleza), cuidando de 14 municípios. Nós morávamos em Jucás. Foi um momento de dedicação exclusiva para nós dois, quando tivemos tempo de estudar e adaptar a experiência de Brasília. Embora Planaltina fosse a cidade mais pobre do Distrito Federal, na época, a situação era muito melhor do que a maioria das cidades em que trabalhávamos. Em Planaltina, toda casa tinha água, todo mundo ganhava um salário mínimo, todos tinham assistência de um centro de saúde, havia vacina. Em Jucás não havia nada disso. Então tivemos que adaptar a experiência dos auxiliares de saúde para o interior do Ceará, onde havia outro tipo de doenças, ainda mais complicadas, já que não tinha água, a população era muito mais pobre e a educação também era bem inferior. Ficamos lá sete anos, quando o governador Tasso Jereissati me chamou para ser o secretário de Saúde do estado, em 1987.
“O primeiro trabalho das 6 mil mulheres foi encontrar todas as gestantes, trazê-las para fazer o pré-natal e ligá-las ao sistema: conversar sobre saúde, vaciná-las e orientá-las sobre como cuidar dos meninos quando nascessem. Esse foi o começo dos agentes de saúde.”
Como aconteceu?
Já dominávamos muito bem a experiência de trabalho dos agentes de saúde. Logo no começo do governo, tivemos a oportunidade de contratar 6 mil mulheres para serem agentes. As mulheres mais pobres, que precisavam de um salário mínimo para sobreviver. Naquele momento, o Ceará enfrentava uma grande seca, e nesses momentos, o governo federal mandava algum dinheiro para os estados não deixarem o povo morrer de fome. O governador Tasso queria, ao invés de dar uma bolsa aos atingidos, oferecer algum trabalho. Ele consultou então os secretários e eu sugeri a contratação das mulheres. Foi criada então uma comissão em cada município, com representantes do sindicato dos trabalhadores, da Igreja Católica, do estado e da Prefeitura que, em quatro meses, selecionaram 6 mil mulheres. À medida que elas eram selecionadas, eram treinadas. Uma estratégia muito simples. Eram todas mulheres muito pobres, mas com duas qualidades importantíssimas: primeiro, uma relação muito boa com as vizinhas, para poder conversar com elas; segundo, tempo. Precisavam passar o dia caminhando, de casa em casa. O primeiro trabalho das 6 mil mulheres foi encontrar todas as gestantes, trazê-las para fazer o pré-natal e ligá-las ao sistema: conversar sobre saúde, vaciná-las e orientá-las sobre como cuidar das crianças quando nascessem. Esse foi o começo dos agentes de saúde.
Por que vocês decidiram contratar somente mulheres, neste momento? Qual a principal contribuição da Míria e das mulheres na construção da Estratégia Saúde da Família?
Eu sabia muito da parte médica — o que era preciso fazer para que as crianças não adoecessem nem morressem — mas o trabalho era, essencialmente, educativo, feito junto à família. Eu não sabia fazer isso; a Míria era assistente social e tinha toda a experiência do trabalho feito nas comunidades, inclusive lá em Brasília. Eu tinha ideia do que fazer, mas quem realmente executava o trabalho, junto às famílias, quem treinava os agentes de saúde, era a Míria. Como é que chega à casa? Como selecionar as mulheres? Isso era essencial. Eram muitas mulheres pobres. Quais seriam escolhidas para que de fato realizassem bem o trabalho de agente? Tudo isso era ela que fazia. Era preciso ter criatividade, por exemplo, para convencer uma mãe, que nunca havia ouvido falar em vacinas, a vacinar seu filho. Não era fácil convencê-las de que os filhos precisavam tomar uma injeção para que não tivessem sarampo ou coqueluche. Era toda uma tecnologia de serviço social, que ela unia à pedagogia do Lauro de Oliveira Lima [educador cearense (1921/2013)] e do Paulo Freire [educador pernambucano (1921/1997)]. Foi a Míria que selecionou, capacitou e acompanhou as agentes. Elas eram avaliadas mensalmente, eram pessoas muito simples, algumas até analfabetas. Mas eram avaliadas mensalmente, para que os enfermeiros, que passaram a ser os coordenadores dos agentes, pudessem aprender quais as dificuldades que os agentes encontravam na aproximação das famílias, às vezes um problema de ordem religiosa, outras com o manuseio da vacina em área rural.
“Era preciso ter criatividade, por exemplo, para convencer uma mãe, que nunca havia ouvido falar em vacinas, a vacinar seu filho.”
Qual era o papel dos enfermeiros, neste momento?
Era importante que um enfermeiro conversasse mensalmente com cada agente de saúde, para entender, por exemplo, por qual motivo aquela família não trouxe o filho para vacinar. Foi um motivo religioso? Foi porque não teve dinheiro para pagar a passagem? Foi porque não teve tempo de levar o menino ao centro de saúde? Como os assistentes sociais eram poucos, nós contamos com os enfermeiros. Era importante a presença deles, também, por conta da vacinação. Para isso era importante que cada município contratasse um enfermeiro, de modo que a vacina pudesse ser aplicada em cada um deles.
“O enfermeiro passou a ser a ligação da população com os médicos, com as maternidades, com tudo.”
Em que medida a interiorização dos profissionais de saúde, como enfermeiros, foi importante para a consolidação da saúde da família no país?
Todo município passou a ter enfermeiro; antes, não tinha. Naquela época, no Ceará, havia apenas 30 cidades que contavam com enfermeiros. E eles atuavam somente nos hospitais. O que estabelecemos foi que cada município passasse a ter uma unidade de vacina, com enfermeiro. O estado pagava os agentes de saúde, mas os enfermeiros eram pagos pelo município. O enfermeiro passou a ser a ligação da população com os médicos, com as maternidades, com tudo. Então foi muito importante essa relação entre o município e o estado na instalação de toda essa rede.
O senhor acredita que a saúde da família pode ser considerada um dos embriões do próprio SUS?
Nós começamos com a contratação das 6 mil mulheres pelo Estado. Logo em seguida, veio o SUDS [Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, criado em 1987, que é precursor à criação do SUS, em 1990], que foi implantado pelo Hésio Cordeiro [sanitarista mineiro (1942/2020)] e nos ajudou a ter mais profissionais nos municípios. O SUDS foi essencial para esse processo. Aqui no Ceará, a primeira pessoa que chegou à casa de todo o indivíduo pobre foi o agente de saúde. Naquele momento, o Inamps era só para quem tinha carteira assinada, carteira de trabalho; o estado tinha algumas unidades de saúde, principalmente na capital. Mas eram poucas e precárias.
“O agente de saúde foi o primeiro a levar algo de saúde às famílias pobres. Levou a prevenção do sarampo, da coqueluche, da difteria, fez acompanhamento das mães no pré-natal, ajudou a levar essas mães para a maternidade.”
E qual foi o papel do agente de saúde?
O agente de saúde foi o primeiro a levar algo de saúde às famílias pobres. Levou a prevenção do sarampo, da coqueluche, da difteria, fez acompanhamento das mães no pré-natal, ajudou a levar essas mães para a maternidade. Nessa época, 30% dos partos na área rural eram feitos em casa; as mães não sabiam nada sobre isso. Se tinham direito à maternidade, se era bom ou ruim. O agente de saúde foi a primeira pessoa que chegou a essas pessoas, orientado pelos enfermeiros. Foi realmente o começo do SUS, aqui.
Qual a principal contribuição dada pelo agente comunitário de saúde nesse processo?
Foi fazer o elo entre a comunidade e o sistema de saúde, foi ajudar o SUS a nascer. Em Fortaleza havia centro de saúde e vários postos do Inamps, chamados PAMs. Em 1989, foram postas para funcionar muitas unidades de saúde em Fortaleza, cada uma com um pediatra, um clínico e um ginecologista-obstetra. Era uma rede de atenção primária, mas ainda sem agentes de saúde. A população de Fortaleza já estava acostumada — havia muitas filas, era trabalhoso conseguir —, mas já se sabia que existia pré-natal, que havia pediatra. Mas já havia muitas unidades, que funcionavam com estas três especialidades, o que ajudou a reduzir a mortalidade infantil, do mesmo jeito que o agente de saúde e o enfermeiro fizeram no interior.
Qual é a sua avaliação da Estratégia Saúde da Família, hoje? O que avançou e o que ainda é preciso avançar?
O Hésio Cordeiro criou um curso de mestrado em Saúde da Família, na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Nós criamos, aqui na Fiocruz Ceará, uma rede para formação de mestres em Saúde da Família, chamada Renasf [Rede Nordeste em Saúde da Família]. Depois, isso serviu de modelo para que Fiocruz e Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva] criassem o ProfSaúde. Em 2024, 740 pessoas começaram o mestrado em Saúde da Família. De Roraima ao Rio Grande do Sul, todos os estados receberam alunos. Você imagina o que é isso? Não havia nada disso antes, com exceção do curso do Hésio e outro em Santa Catarina. Algo em larga escala, para formar pesquisadores em saúde da família, nada existia. Isso é um grande avanço! Hoje, temos 50 mil equipes de saúde da família no país. É um super avanço! São 280 mil agentes comunitários de saúde. Metade deles já fez o curso técnico. Então você imagina a quantidade de gente já trabalhando. Mas, por outro lado, temos alguns problemas importantíssimos para resolver.
Quais?
Os profissionais, entre eles médicos e enfermeiros, já não são mais selecionados dentro da lógica de saúde da família. São médicos, recém-formados, que querem ganhar um dinheirinho, para depois fazer uma residência em outra especialidade; passam ali rapidamente pela saúde da família, dois, três anos, e vão embora. O nosso médico, que está na saúde da família, a grande maioria, não está interessado e está ali para ganhar dinheiro; e nem foi formado para isso. Outra coisa, que acontece aqui no Ceará: O estado coordenou a implantação [da ESF] durante 20 anos. Depois, a Secretaria do estado passou a se interessar pela medicina altamente especializada, pelos grandes hospitais e as policlínicas, deixando de ter um papel de coordenação da atenção primária e da saúde da família, que ficou a cargo de cada um dos municípios.
“O governo federal passou a valorizar muitos os médicos, principalmente depois do programa Mais Médicos. Ao invés do enfermeiro e do agente de saúde, que foram a base, no começo do programa, o médico passou a ser a figura mais importante.”
Qual o resultado disso?
Uns municípios avançaram mais, outros avançaram menos, alguns não avançaram nada. Contratam médicos, enfermeiros e agentes, mas a formação desses profissionais não está direcionada ao trabalho que precisam fazer. Esse é um dos grandes problemas. Além disso, o governo federal passou a valorizar muito os médicos, principalmente depois do programa Mais Médicos. Ao invés do enfermeiro e do agente de saúde, que foram a base, no começo do programa, o médico passou a ser a figura mais importante. Agora, cada município aqui quer uma faculdade de medicina. Só entre julho e agosto de 2024, foram criados 28 cursos de medicina no Brasil. Se o importante é ter mais médicos, então eu quero uma faculdade de medicina, pensaram. Entraram as empresas, que ganham muito dinheiro com isso, e estão formando muito mais médicos. Mas esse profissional está longe de ser o médico direcionado ao atendimento daquela população e a resolver seus problemas. Hoje temos mais médicos, mas que estão resolvendo pouco e que estão encaminhando muita gente para os especialistas, já que não estão preparados. Hoje, nos países desenvolvidos, todo médico tem que ter uma residência de três anos, pelo menos. Aqui, não. Terminou medicina, já pode ser contratado pelo Mais Médicos.
O problema está então na formação dos profissionais…
A formação é muito pequena e está criando problema, porque as filas estão se acumulando muito nas policlínicas e nos hospitais, porque a resolutividade é baixa. Isso é um problema na formação de médicos, enfermeiros e agentes de saúde. Entre os dentistas, a formação é melhor, porque na odontologia está bem caracterizado o que é a especialidade e o que é a prática generalista; na medicina, não. Espera-se que o profissional faça uma residência, então ele não sai preparado para trabalhar sozinho. Por outro lado, é importante que o estado mantenha a coordenação da saúde da família. Os prefeitos mudam a cada quatro ou oito anos. E eles nem sempre estão bem orientados como o programa deve ser. Daí contratam o médico que chega à porta, sem exigir formação adequada para o trabalho. É médico, está contratado, porque o importante é atender as consultas. O problema hoje do Mais Médicos é que muitos doentes ficam na fila de espera dos especialistas. Esse é hoje, aqui no Nordeste, um dos problemas graves das administrações e uma das maiores queixas da saúde, mesmo com muito mais médicos — mas com pouca resolução.
Um dos objetivos da implementação da Fiocruz no Ceará foi fortalecer a saúde da família. Como foi a experiência de ficar 14 anos à frente da unidade?
Como eu falei, em 2024 nós tivemos 740 alunos no mestrado em Saúde da Família. Nós temos mais 130, no doutorado. Mas o tempo do mestrado é muito curto para se pesquisar esses graves problemas. O mestrando faz uma pesquisa e apresenta uma dissertação, mas problemas graves como esses, sobre como formar melhor os profissionais, não é possível resolver com uma pesquisa de dois anos. É por isso que estamos trabalhando em um projeto que estou chamando de município laboratório. Ele permite um acompanhamento mais longo, de modo que a gente possa ver, com todas as condições políticas, dificuldades e recursos, como a gente consegue formar melhor os profissionais. Mas há outro problema, sobre a coordenação. A ideia da ESF era que houvesse uma equipe, com o agente de saúde e o enfermeiro — e que o enfermeiro de fato coordenasse o trabalho do agente de saúde, vendo de perto os problemas que ele encontra nas famílias e aprendendo, também, a resolvê-los. Essa ideia de coordenação se perdeu. Como o estado deixou de assumir esse papel, e cada município faz o seu, geralmente a preparação da equipe de coordenação é pobre, com destaque para um município ou outro.
A profissionalização de gestores em saúde poderia ajudar a resolver isso?
O Brasil perdeu muito de saúde pública. O mundo inteiro avalia os resultados. Aqui, porém, a preocupação com a avaliação diminuiu muito. Então, os municípios avaliam pouco os resultados. A mortalidade está diminuindo? Os homicídios estão aumentando? Os hospitais estão mais lotados? A resolutividade está menor? Essa preocupação com a avaliação caiu muito. A Cecília Minayo, que é uma das pesquisadoras que mais orientou a ideia de avaliação qualitativa, falou em um dos seus trabalhos de triangulação de métodos, que para se encontrar o problema, a avaliação quantitativa é muito importante; mas para que se veja como resolver, aí a qualitativa vai ajudar muito. Mas perdemos muito a ideia de avaliação quantitativa, que nos permite verificar se estamos melhorando, ou não. Se você faz uma avaliação só qualitativa, nem sempre é fácil chegar a conclusões que todo mundo aceite. Aqui, no começo, a avaliação da mortalidade infantil passou a ser algo muito importante, em cada município, com a coordenação do estado. Todo mês sabíamos qual município não andava bem; daí nós, da secretaria de saúde do estado, investigávamos para saber o que estava acontecendo. Havia números para nos indicar quais municípios iam bem, e quais não iam. Não havia dúvida. Mas quando você fica só na avaliação qualitativa, às vezes gera dúvidas e perde muito da ciência.
Você considera então que é preciso qualificar melhor a produção de informação sobre saúde coletiva?
Isso. A OMS todo ano publica quais os países que estão avançando mais e quais estão avançando menos. O Brasil não olha para esses dados. Esperança de vida, por exemplo. Hoje é um dado importante de avaliação, mas ninguém dá bola. Como é que está a mortalidade no país? O IBGE divulgou que, em 2020, a nossa esperança de vida melhorou, em plena pandemia, quando morreu gente em grande quantidade. Não se dá bola para uma avaliação realmente de qualidade. Essas são verdades que são importantes que se diga.
E qual o papel da comunicação neste cenário?
Quando a gente começou o trabalho no Ceará em 1987, uma das coisas que fizemos foram cursos para radialistas. O rádio era o veículo que mais se comunicava com o pessoal do interior do estado, que tinha pouca escolaridade. Jornal, pouca gente lia. Revista, então, muito pouca gente. Mas o rádio, todo mundo escutava. Então foi muito importante explicar para o radialista a importância da vacina, porque fazer o pré-natal, porque o aleitamento materno ajudava a dar mais saúde para as crianças. Naquele momento, as mães faziam muito mingau só de água com arrozina [preparado com farinha de arroz], ou com maisena. Enchia a barriga do menino, que parava de chorar, mas faltava leite. As pessoas pobres não tinham como comprar leite. O aleitamento materno é uma das medidas mais importantes para a alimentação da criança, não só para sua nutrição, como também para criação de suas defesas. O leite materno, como se sabe, tem muitos anticorpos contra as infecções mais comuns. O rádio, naquela época, foi essencial para fazer esse trabalho. Hoje, a comunicação continua sendo muito importante. Muita gente lê a Radis (e outras revistas), o que indica que o papel de vocês, comunicadores, é essencial.
E como você avalia a chegada da internet?
A internet hoje está em tudo. Até na própria eleição assumiu um papel de importância. O problema é que as mensagens que circulam na internet muitas vezes são muito simples, nem sempre educativas. Às vezes você passa uma notícia para frente, sem analisar se é verdadeira… No rádio havia um pouco mais de critério. Mas os dois continuam, e as rádios estão, inclusive na internet. A comunicação é cada vez mais importante no mundo, agora o desafio é fazer com que essa comunicação seja mais verdadeira, mais educativa.
Carlile, em 2024 você chegou aos 84 anos de idade e 60 anos de medicina. Quais são suas atividades hoje?
A minha preocupação sempre foi saúde pública, mas nos primeiros 10 anos eu fui microbiologista, que era minha especialidade; eu trabalhava em laboratório, fazendo diagnóstico dos doentes complicados, aqueles que estavam com infecção. A partir de Brasília, as coisas mudaram. Quando voltei de lá, passei no concurso para sanitarista. Hoje, continuo na Fiocruz, onde tenho dois trabalhos principais. Um deles é acompanhar um município, que chamo de laboratório, que é o município de Tauá [município cearense da região do sertão dos Inhamuns]. Foi lá que eu e Míria experimentamos primeiro o curso técnico dos agentes de saúde no Ceará, quando estávamos na Escola de Saúde Pública. A primeira etapa do curso foi aprovada pelos ministérios da Saúde e da Educação, em 2003 e 2004, e teve a participação de 100 agentes de saúde. A prefeitura de Tauá se dispôs a trazê-los da área rural, hospedá-los uma semana por mês. De lá para cá, passei a acompanhar o município, e nesses últimos quatro anos, acompanhei de maneira muito mais intensa; a partir de 2023, quando passei a coordenação da unidade da Fiocruz para a Carla [Carla Freire Celedonio Fernandes, atual coordenadora da Fiocruz Ceará], comecei a me dedicar muito a esse trabalho de laboratório de Tauá.
E a outra experiência?
A outra experiência que acompanho é um curso de formação médica na Universidade Regional do Cariri (Urca), no Crato [no Sul do Ceará]. Lá começou o curso de medicina, e eles me chamaram para ajudar. Tenho ido lá há três anos, porque considero que a formação do médico é essencial. E para formar um médico comprometido com o SUS e com a vulnerabilidade de saúde da população, é preciso experimentar, como fizemos na Universidade de Brasília. No Crato, eu tenho dado palpites para ver se de fato a gente consegue formar médicos que gostem e que acreditem no SUS.
“É difícil alcançar a população e fazer o que o SUS deseja com a medicina mais especializada, sem saúde da família de qualidade.”
Qual a grande contribuição da saúde da família para a consolidação do SUS?
No Ceará, nos últimos 20 anos, a secretaria de saúde optou pela medicina especializada. Primeiro, trabalhamos 20 anos com atenção primária, com agentes de saúde, enfermeiros; depois saúde da família, com médico; nos últimos 20 anos, com atenção especializada. O estado foi dividido em cinco regiões, e cada região com um hospital superespecializado. O problema, hoje, é a fila das pessoas nos hospitais. Como os médicos da saúde da família resolvem pouco, muita gente é encaminhada para o hospital e para as policlínicas. Diz-se muito que o SUS garante saúde para todos. Então as pessoas buscam atendimento, e se não tiver, vão à Justiça, mesmo que o tratamento custe um milhão de dólares ou a pessoa tenha que ir aos Estados Unidos; a pessoa tem direito e a Constituição diz que o Estado tem que fazer saúde. Essa é a forma mais cara de se fazer saúde, com medicina especializada. E o mundo todo sabe, a Europa, o Japão, a Austrália e o Canadá sabem, que com saúde da família, que é o nome que a gente usa aqui para atenção primária, sai mais barato e com muito mais resultado. É difícil alcançar a população e fazer o que o SUS deseja com a medicina mais especializada, sem saúde da família de qualidade.
Depois de quase 50 anos da Conferência de Alma-Ata — e de o mundo ter passado por uma pandemia — qual é, para o senhor, o grande desafio para a saúde, de um modo geral?
Alma-Ata ainda é um farol. A conferência foi baseada nas experiências que aconteciam na Europa, na China e na União Soviética, quando se mostrou, de maneira clara, que a atenção primária, que aqui se traduziu como saúde da família, é um caminho que é possível, com os recursos de cada povo, que pode dar resultados se houver uma aproximação com a população — isso que o agente de saúde fez. Hoje, muitos doentes já chegam com raiva do médico, porque o deixou na fila, ou o encaminhou para ser tratado na policlínica, ou não sai nunca aquele exame ou aquela consulta especializada. A relação não é boa e a população reclama. Ainda acredito muito em Alma-Ata; acho que é possível oferecer um bom atendimento à saúde, sim, se a gente utilizar a saúde da família, que é o nome brasileiro da atenção primária.
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