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Uma anta parada no meio da estrada é uma sobrevivente da devastação. Em volta, somente cinzas e silêncio. O céu está coberto de fumaça e o calor ultrapassa 40o C. As lentes do fotógrafo Peter Ilicciev registram a solidão do animal, assim como revelam imagens da destruição provocada pelos incêndios que atingiram aproximadamente 27% do Pantanal — a segunda maior planície inundável do mundo — somente em 2020. Quando o fotógrafo chegou, no início de outubro, na região de Cuiabá e em outras cidades afetadas no Mato Grosso, com uma equipe da Fiocruz enviada para avaliar os impactos das queimadas sobre a saúde, o bioma havia registrado em setembro o maior número de focos de incêndio da história, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A persistência das queimadas, tanto em quantidade quanto em alcance, faz de 2020 o pior ano do Pantanal quanto à devastação pelo fogo — bioma considerado o mais preservado do país até 2018, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).Os pesquisadores saltam da caminhonete, na estrada, para deixar frutas e água para os animais sobreviventes que vagueiam sobre a terra assolada pelo fogo. O risco é que muitos ainda pereçam por não ter o que comer. O que antes era o habitat desses animais havia se transformado em cemitério da vida silvestre. O fogo que se espalha pelo Pantanal e deixa um rastro de cinzas tem gerado impactos na biodiversidade que serão sentidos por muitos anos, como alertam especialistas, mas também provoca riscos para a saúde humana com o aumento da poluição e a elevação das temperaturas. Existem palavras para descrever tamanha destruição? Por acreditar na força das imagens, Radis traz algumas cenas registradas pelo repórter fotográfico Peter Ilicciev na região do Pantanal mato-grossense. É um grito de alerta: a vida pede socorro, no Pantanal e em todo o planeta. As fotos são acompanhadas de relatos, depoimentos e avaliações dos impactos provocados pelo fogo por quem está ou esteve perto do cenário da destruição.

Peter Ilicciev

Olhar sobre as cinzas

O fogo ardia noite adentro na entrada de Poconé, município a 100 quilômetros de Cuiabá. A equipe de pesquisadores enviada pela Fiocruz ao Pantanal passava de carro pela estrada e avistou o incêndio. No desespero de quem deseja ajudar — sentimento comum entre brigadistas, voluntários e moradores da região —, eles pararam o carro e tentaram conter as chamas como podiam. Quem narra o episódio é o fotógrafo Peter Ilicciev, que registrava a cena em sua máquina fotográfica, quando foram surpreendidos por uma espécie de explosão e obrigados a recuar. O fogo era maior do que eles podiam intervir — no percurso, Peter perdeu o celular. “São trinta anos de profissão. Já fiz muitas tragédias, mas essa foi uma das que mais me marcou”, conta.

Quando convidado para compor a equipe da Fiocruz que iria avaliar os impactos das queimadas no Pantanal sobre a saúde, ele não pensou duas vezes para aceitar. “Não dá para ficar escondido dentro de casa, fingir que não é comigo. Se você tem a oportunidade de fazer alguma coisa, faça a sua parte. Eu fiz a minha, registrando”, pontua. Ele descreve o cenário visto na região como “um filme de terror”. “A gente circulou uma semana de carro. Vimos quilômetros e quilômetros de mata queimada. É uma coisa que você não acredita. O cheiro de carcaça e animal morto é muito forte, um calor absurdo que vai deixando você fraco”, diz. Peter conta que alguns animais conseguiam escapar do fogo e se refugiavam nas redondezas, ou perambulavam pelas estradas procurando comida — ele também se emociona ao lembrar o empenho dos pesquisadores em ajudar, deixando alimento e água nos refúgios. As cenas que registrou são um retrato da destruição, mas também um alerta. “É uma experiência que vou levar para sempre. Faz parte da nossa profissão: a gente precisa ajudar a contar essas histórias para as pessoas”.

Canto de alerta

“Fogo na beira do rio

Fogo na lei do Brasil

E no boné do guarda florestal

O passarinho sumiu

A baraúna caiu

Não tem bombeiro lá no Pantanal

Quem foi que matou

Minha sabiá?

Quem incendiou

Vai ter que pagar

Não quero ver esse país pegando fogo

Na fogueira do feroz destruidor”

Música “Eu quero ver”, de Carlinhos Vergueiro, Landinho Marques e J. Petrolino

Peter Ilicciev

Ciclos rompidos

O acúmulo de cinzas brancas sobre o solo, além daquela de cor preta, é um sinal de que o fogo foi recorrente e destruiu toda a matéria orgânica, incluindo as sementes, restando apenas detritos minerais sobre a terra. “Isso nos remete a um impacto de muita violência a longo prazo, porque compromete o banco de sementes e a biota do solo, que são as estruturas que permitem a restauração do ecossistema após a chuva”, avalia Márcia Chame, coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre (CISS) e da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss), da Fiocruz. Para ela, os incêndios são a síntese dos impactos humanos e de diversos problemas, como as secas prolongadas e a diminuição do escoamento de água no Pantanal — e, infelizmente, se nada for feito, a perspectiva é que esse cenário continue.

“Em 2019, o Pantanal não encheu e a vazão dos rios tem diminuído a cada ano, em função de múltiplos fatores, como a construção de usinas hidrelétricas, o barramento de águas, o uso para mineração e irrigação, o desmatamento nas nascentes e a perda de mata ciliar e das áreas de reserva legal”, avalia à Radis. A esse cenário de crise ambiental se soma, segundo a pesquisadora, a ação de pessoas que efetivamente colocam fogo para ampliar a área de produção agropecuária e a urbanização — “além do escape das queimadas legalizadas, que muitas vezes não são feitas com cuidado”. A bióloga também destaca que os reflexos são sentidos diretamente por comunidades tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e pescadores.

Márcia coordenou a equipe de pesquisadores da Fiocruz que esteve na região para avaliar os impactos sobre a saúde, não somente de seres humanos, mas também de animais silvestres e domésticos e para todo o ecossistema — e descreve que, em quarenta anos de pesquisa de campo, nunca viu tantos animais mortos. Em um raio de dois quilômetros, os pesquisadores encontraram ao menos 14 antas mortas — animais de grande porte que, em geral, ficam espalhados em áreas extensas. “O cenário é de enorme devastação, com muitos indivíduos de muitas espécies mortos, calcinados. Outros mortos muito provavelmente pelo calor e pela queima pulmonar. Outros ainda vivos, buscando alimentos, desorientados, magros, famintos, desesperados”, ressalta.

Ela também chama a atenção para o impacto direto das queimadas sobre a saúde humana. “As pessoas que combatem o incêndio e os moradores da região respiram fuligem e material particulado bem fino que chega ao pulmão, além de substâncias tóxicas”, explica. Os efeitos serão sentidos no presente e no futuro. Para o ser humano, há o risco de doenças respiratórias e pulmonares e do aumento de câncer; para o ecossistema, a perda do equilíbrio e da capacidade de renovação, pelo comprometimento da cadeia produtiva e alimentar, com reflexos para todo o bioma e para as atividades humanas, como a produção pesqueira. “Esse é o momento de aumentar a vigilância sobre a emergência de zoonoses, que são doenças que nós compartilhamos com os animais e eles conosco, além de vetores”, alerta. Estudos da Fiocruz indicam a circulação de 16 vírus de importância médica e seis novos vírus desconhecidos pela ciência — que podem vir à tona com a destruição do espaço natural e provocar endemias ou epidemias em humanos.

“O Pantanal é um bioma constituído por um mosaico de formações amazônicas e do Cerrado. Entender isso é fundamental para manter esse ecossistema com uma saúde razoável a médio prazo e, quem sabe, restabelecê-lo a longo prazo com as lições aprendidas”, analisa a pesquisadora. Ela indica a necessidade de mudança nas políticas ambientais e de reforço na fiscalização sobre o fogo criminoso e legalizado, e também ressalta que é preciso planejar ações conjuntas de preservação do futuro pantaneiro. “Esse bioma tem um papel fundamental na dinâmica de todo o continente e é uma enorme riqueza para o Brasil”, conclui.

Sinais no céu

“Nem toda a fumaça que toma o céu do Pantanal poderá encobrir as consequências das queimadas. Não é somente sobre o futuro, é também sobre o agora.

Embaixo, soterrada, a vida.

Imersos, atônitos, nós.

Culpados: alguns.

Condenados: todos!”

Eriki Terena, Terra Indígena Taunay/Ipegue — Mato Grosso do Sul

Peter Ilicciev

Agro é fogo

“O Pantanal tem gente e essa população é majoritariamente composta por indígenas e negros. São comunidades guardiãs de práticas agroecológicas e de sementes crioulas, que estão com essas famílias há gerações”. Quem diz é Franciléia Paula de Castro, conhecida como Fran, quilombola e pantaneira, engenheira agrônoma e educadora popular da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Mato Grosso. Segundo ela, que tem atuado diretamente no apoio a famílias de pequenos agricultores e comunidades tradicionais, o modo de vida desses povos é adaptado ao ecossistema — e o desequilíbrio ambiental afeta diretamente a sobrevivência de todos eles. “São esses povos os protetores dos recursos naturais, e protegem as nascentes dos rios, porque sobrevivem do ecossistema pantaneiro e compreendem o equilíbrio e a dinâmica entre as cheias e a seca”, afirmou durante a Ágora Abrasco (13/10).

O avanço do agronegócio sobre o Pantanal não é novo, constata Fran. Uma carta assinada (2/10) por centenas de movimentos sociais e organizações, reforçada pela campanha #AgroéFogo, destaca que os incêndios criminosos têm por objetivo devastar a floresta para consolidar a grilagem. “Os grileiros se aproveitam da leniência do governo para incendiar o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia e, assim, destruir a vegetação das terras públicas, em sua maioria devolutas e tradicionalmente ocupadas, buscando consolidar processos de grilagem”, diz o texto. 

Fran relata que comunidades tradicionais em Poconé (MT) e região, em razão da seca e dos impactos climáticos, não conseguiram fazer boa colheita esse ano, o que prejudica a segurança alimentar e a perpetuação de sua cultura. “Imagina uma comunidade que tem uma semente passada de geração a geração há 200 anos. Não conseguir reproduzi-la em razão da seca não é apenas uma perda do alimento, mas também cultural e ancestral para esses povos”, pontuou. O alerta da educadora popular é de que o modelo de desenvolvimento agrícola centrado no capital estrangeiro “tem negociado nossas florestas com base em interesses de lucro”. “O modelo que queima o Pantanal hoje é o mesmo que queima o Cerrado e a Amazônia”. E completou: “Das nossas florestas, só as cinzas restarão?”.

Peter Ilicciev

Voz dos brigadistas

“Estamos inseridos num grande desastre ambiental sem precedentes que ocorre no Pantanal mato-grossense. Todos nossos integrantes sentem os efeitos dos incêndios florestais na nossa saúde física e mental. Ainda temos o problema da umidade relativa do ar muito baixa. E também a questão emocional de ver muitos animais morrerem queimados e, pior ainda, de sede e de fome.”

Paulo Barroso, coronel do Corpo de Bombeiros e coordenador do Posto de Atendimento a Animais Silvestres no Pantanal — PAEAS

De quem é a culpa?

Sem recursos, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anunciou, em 22/10, que vai interromper o trabalho das brigadas que atuam no combate aos incêndios florestais. O órgão afirmou, em nota, que possui R$ 19 milhões em pagamentos atrasados. Apesar do pior ano em queimadas no Pantanal, também houve queda no ritmo de multas e autuações do Ibama na região, como repercutido pela imprensa em setembro. Em discurso gravado para a ONU (22/9), o presidente Bolsonaro culpou “índios e caboclos” pelas queimadas no Brasil. Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu a criação de gado na região como forma de conter os incêndios — uma tese conhecida como “boi bombeiro”, desmentida por especialistas. Para Wanderlei Pignati, professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o grande responsável pelos incêndios é o agronegócio. “Os rios que formam o Pantanal nascem dentro das plantações de soja, de milho, de algodão e das pastagens. Com as nascentes desmatadas, diminui-se a vazão desses rios”, avaliou, durante debate online promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 13/10.

Do ar aos pulmões

Nuvens de fumaça que viajam até regiões afastadas do Pantanal e da Amazônia, como São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro, são um retrato da extensão do desastre ambiental provocado pelas queimadas — e indicam o impacto para a saúde de diferentes populações. As partículas liberadas no ar pelos incêndios são levadas pelo vento, pois o Pantanal encontra-se em uma rota de correntes de ar. Ao chegar em grandes cidades, revelam a cor cinza da destruição e podem provocar fenômenos como a chuva preta. “Um ponto chave é a emissão de poluentes atmosféricos, derivados da queima de biomassa (floresta, pastagem e matéria orgânica). A população residente no Pantanal que entrou sem nenhuma proteção para combater o fogo é a mais atingida pelas emissões primárias de poluentes, com destaque para bombeiros, brigadistas e voluntários”, ressaltou Eliane Ignotti, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) em debate online da Abrasco, em 13/10.

Sem cessar, os incêndios se mantinham 24 horas por dia, sete dias por semana, o que não dava possibilidade para a poluição se dispersar na atmosfera. “A população mato-grossense estava respirando e inalando partículas em quantidade de 5 a 6 vezes acima do limite considerado aceitável”, afirmou Eliane. Segundo ela, o Brasil tem entre 45 e 50 mil mortes anuais prematuras em razão da exposição à poluição atmosférica. A inalação de fumaça e material particulado aumenta o risco de doenças pulmonares e cardiovasculares, além de ter potencial cancerígeno, como destaca nota da Fiocruz sobre as queimadas (19/10). Os mais vulneráveis são brigadistas, gestantes, crianças e idosos, além daqueles que vivem em povoados próximos às áreas atingidas. “Estas populações encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade biológica, considerando a exposição aguda e crônica ao calor e às altas concentrações de partículas inaláveis”, afirma o documento.

O bioma Pantanal
“Acho que as águas iniciam os pássaros. / Acho que as águas iniciam as árvores e os peixes. / E acho que as águas iniciam os homens. (…) Todos somos devedores dessas águas. / Penso que os homens desse lugar são a continuação destas águas”. Os versos do poeta pantaneiro Manoel de Barros, nascido em Cuiabá (MT), refletem a simbiose entre o ecossistema e as comunidades tradicionais que habitam o Pantanal. Considerado Patrimônio Natural Mundial pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), esse bioma representa uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta. Ele é formado por um mosaico de biodiversidade resultante do encontro entre outros biomas, como a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica e o Chaco argentino — o que se reflete na variedade de espécies encontradas.

  • Localização: Sul do Mato Grosso e noroeste do Mato Grosso do Sul
  • Extensão: Cerca de 150 mil km2 (IBGE)
  • Fauna e flora: A biodiversidade abriga 263 espécies de peixes, 41 de anfíbios, 113 de répteis, 463 de aves e 132 de mamíferos catalogadas. Onças-pardas, onças-pintadas, lobos-guarás, antas e cervos-do-pantanal são algumas das espécies típicas de mamíferos, que se somam ao jacaré-de-papo-amarelo e ao jacaré-do-pantanal, dentre outras, além de peixes de grande parte como os jaús. Espécies raras em outras regiões vivem em populações abundantes, como a ave símbolo da região, o tuiuiú.
  • Conservação: Somente 4,6% do Pantanal encontram-se protegidos por unidades de conservação (UC), de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Segundo levantamento do Programa de Monitoramento dos Biomas Brasileiros por Satélite (PMDBBS), em 2009, o bioma mantinha 83,07% de cobertura vegetal nativa.
  • Comunidades: Em suas terras vivem comunidades quilombolas, povos indígenas, ribeirinhos e outras populações pantaneiras que sobrevivem do extrativismo e da agricultura familiar. 
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