Se é possível fazer um balanço da pandemia da covid-19, os números são a primeira ferramenta de apoio que vem à mente. Eles são sucintos, mas rigorosamente abrangentes e representativos. Não deixam de causar surpresa (ou pânico), mas conseguem encapsular os acontecimentos de maneira precisa, ou o mais próximo desse rigor. Desde o primeiro caso relatado no Brasil, no dia 26 de fevereiro de 2020, os protocolos de segurança e as iniciativas de controle da doença foram negligenciadas, ignoradas e boicotadas pelo governo federal. Atitude que produziu o número mais marcante na trajetória da infecção no país: os quase 700 mil óbitos registrados.
A quantidade assustadora de vítimas da covid-19 no Brasil, porém, não se resume a dados, estatísticas e porcentagens. São familiares, parentes, amigos, colegas de trabalho, pessoas. E para falar delas o pragmatismo dos números nos escapa. Exatamente por isso, o documentário Quando falta o ar escolhe registrar os momentos que estão além dos dados. O filme segue os passos de alguns profissionais do SUS durante o primeiro ano da pandemia de covid-19, quando o conhecimento sobre a doença ainda era primário e a perspectiva de uma vacina, remota.
A força desse tema alcançou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, organização norte-americana composta pelos jurados da premiação do Oscar. Quando falta o ar chegou às listas finais e decisórias do prêmio. Mas apesar de não ter sido selecionado como finalista, foi altamente celebrado por artistas, cientistas, políticos e intelectuais, que movimentaram a campanha “#SUSnoOscar”.
Diferente da abordagem jornalística — da notícia dura e da sobrecarga de atualizações —, o filme relata o trabalho íntimo e diário dos profissionais de saúde e se propõe a apresentar o caráter sistemático, vigilante, mas delicado que exige esse atendimento em saúde. E revela quando os gestos constroem um vínculo sensível, afetivo e acolhedor, apesar da distância física e da severidade da situação.
As imagens, por esse motivo, seguem um ritmo mais lento — que acompanha, segundo as diretoras e irmãs Helena e Ana Petta, o tempo do cuidado. Aproveitam-se minutos inteiros capturando, por exemplo, as enfermeiras do Hospital das Clínicas, em São Paulo, conversando com os pacientes e dando banho de leito em casos em coma. Somos guiados pelas vielas do Morro da Conceição em Recife através das caminhadas e visitas domiciliares dos médicos e agentes comunitários de saúde (ACS) da Unidade Básica de Saúde (UBS) da região. E, ainda, somos confrontados com a realidade pandêmica dentro do Complexo Penitenciário Lemos de Brito em Salvador (BA), onde assistimos às consultas e conversas dos presos com a médica do local.
Filmado também em Manaus e no Pará, o filme procura (e encontra), dessa forma, as camadas inexploradas da pandemia; as janelas que descortinam, por exemplo, a rotina física e extenuante de cavar a terra, abrir valas e transportar corpos das equipes funerárias do Cemitério Municipal de Castanhal (PA) e do SOS Funeral.
Nesse mesmo ímpeto, a música e a religiosidade ganham um espaço especial em Quando Falta o Ar. Elas encorpam a narrativa, cada uma do seu jeito, e, de acordo com Helena Petta, mostram a complexidade do tema e da abordagem escolhida, já que foram conteúdos revelados pelo contato com os personagens. Mais do que isso, ainda, a canção e a espiritualidade na verdade aliviam a dor e o cansaço de uma luta coletiva e diária e trazem novas perspectivas para o exercício da saúde.
Assim, a trama nos oferece o que existe de humano nos desafios técnicos e científicos. Concilia-se as duas coisas: enquanto uma médica do Hospital das Clínicas acredita que em cada paciente existe uma alma atenta que, mesmo desacordada, nos ouve, outra no Hospital Municipal de Castanhal confia em seus xamãs e nas curas que viu seu pai e seu avô indígenas fazerem.
Também se percebe essa articulação quando ouvimos a sensibilidade romântica do cantor Amado Batista: a pedido de um idoso em recuperação na UTI que presta uma homenagem à falecida esposa. E, em outro momento, a força política das canções dos Racionais MCs e de Billie Holiday: em resposta ao racismo e à opressão do sistema penitenciário, a médica do Complexo em Salvador coloca Diário de um Detento e Strange Fruit nas consultas com os detentos.
Além disso, ao se concentrar nas pessoas, em quem cuida e é cuidado, a narrativa valoriza a capilaridade e a grandeza do SUS em chegar nas entranhas de um Brasil pobre, vulnerável e desprivilegiado, mas também plural, resiliente e corajoso. Um Brasil que, quando mais precisou, teve à sua disposição um sistema público de saúde independente e sólido, que trabalhou em prol do seu povo, apesar das determinações negacionistas e da subtração financeira feitas pelo governo federal durante os anos mais críticos da pandemia. “A gente precisa ficar de pé aqui. O SUS precisa ficar de pé. O SUS é uma política de Estado, não de governo. Não vão ser esses caras que vão destruir o SUS porque ele está dentro da gente. Nós somos o SUS”, afirma categoricamente a voz em off de uma das médicas entrevistadas.
Quando falta o ar, nesse sentido, não esconde seu posicionamento e deixa seu recado. Somos confrontados com o desconforto de uma verdade dolorosa: ouvimos o ruído das máquinas e o barulho do ar comprimido para recordar a crise de oxigênio em Manaus e a magnitude dos hospitais de campanha lotados. No mesmo tom, ouvimos o som de uma respiração profunda, quase ofegante, que angustia e evidencia a gravidade do vírus em descontrole.
Comprometido em honrar a resistência e o empenho dos profissionais do sistema público de saúde — principalmente as mulheres, que representam 70% da força de trabalho no sistema —, o documentário serve como um registro histórico e uma tentativa de deixar viva a memória da pandemia. A consciência ativa das incertezas, do medo e da desordem nos desperta para o fato de que não somos cifras ou cálculos. E serve de lembrete para o que bem descreveu Albert Camus em A peste, obra que abre o filme: em momentos de grandes fatalidades, percebemos que “há nos seres humanos mais coisas a admirar do que a desprezar”.
Ficha Técnica
Quando falta o ar
Diretoras: Ana Petta e Helena Petta
Assista ao trailer:
* Estágio supervisionado