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A comunicação pública na saúde pode ser um campo de julgamento? O cenário de forte desinformação científica aliado à hesitação vacinal, que desde 2016 se mostra um desafio global, foi uma das provocações centrais da minha pesquisa de mestrado. Defendida em maio de 2025, a dissertação analisou 15 postagens do Ministério da Saúde (MS) no Instagram e mais de 10 mil comentários de usuários. O objetivo: entender como as campanhas públicas de vacinação dialogam (ou não) com uma sociedade cada vez mais conectada, em que memórias circundam a todo momento o imaginário popular e informações rodam o mundo em segundos.

Longe da superficialidade de taxar aqueles mais temerosos com as vacinas como “negacionistas”, o estudo apontou que muitas críticas vinham de pessoas aflitas e confusas diante da profusão de informações, buscando ir além do que diziam as campanhas oficiais. E mais: a forma como as pessoas se apropriam das campanhas varia conforme os contextos e as memórias, alimentados por informações que chegam por diferentes canais, criando e recriando sentidos. Por isso, é arriscado reduzir a discussão a quem está “espalhando desinformação” ou apenas “alertando alguém” — ainda que com argumentos equivocados.

A tentativa de refutar argumentos sobre vacinas a partir de uma definição de “verdadeiro ou falso” tem se mostrado ineficaz. Mais do que nunca, percebe-se que não é a falta de informações corretas a razão desse cenário de forte recusa vacinal. Há, sim, falta de interlocução, de troca e de reconhecimento do lugar do outro para se pensar em novas estratégias de comunicação, que não recorram a um modelo transferencial e verticalizado, bastante utilizado no início do século 20.

Também é preciso considerar fatores que se mostram grandes produtores de sentidos sociais, capazes de impactar na decisão de se vacinar (ou não) — aspectos como a pandemia de covid-19, que reacendeu antigos receios; a reação à obrigatoriedade da vacina, já observada em 1904, durante a Revolta da Vacina; ou o impacto dos discursos de líderes políticos contrários à vacinação, fenômeno também presente no início do século 20. 

A própria imprensa tem sua importância nessa produção de sentidos, visto que as construções narrativas seguem perpetuando o medo de novos vírus, deixando a população em constante estado de alerta. Além disso, quando se pensa na mídia hegemônica, fica claro que seus interesses ideológicos e mercadológicos dificultam a confiança dos leitores, especialmente diante dos conflitos de informação. 

Talvez o que de mais notório emergiu dos milhares de comentários analisados foi a percepção de que os interlocutores do Ministério da Saúde (mesmo aqueles que traziam dúvidas e desconfiança às vacinas) não eram simplesmente um grupo negacionista, antivacina ou desinformado. Muitos, inclusive, argumentavam que buscavam informações em locais confiáveis — bem como não negavam a ciência, tampouco todas as vacinas. Este fato demonstrou que algumas ideias que embasam dúvidas ou decisões no âmbito da imunização podem também ter sido fundamentadas cientificamente, e que a ciência, com seu aspecto mutável, é um campo em constante construção, com narrativas em permanente disputa. 

Os tempos mudaram e as mídias sociais estão longe de ser murais eletrônicos de divulgação: são espaços de construção coletiva de sentido e que, por definição, demandam diálogo e sociabilidade. Há pessoas que param suas atividades para partilhar suas histórias e medos — deixar seus testemunhos. Ignorar esse aspecto é repetir estratégias da comunicação funcionalista do século 20, baseada em informar para educar. A ausência de escuta pode reforçar a sensação de abandono — criando dúvidas até nos mais favoráveis à vacinação, ou ainda, conduzindo indivíduos empurrados para “as margens” por suas convicções até personalidades contrárias à vacinação, muitas vezes da área da saúde, prontas a acolhê-los.

Como demonstram os comentários analisados, nos tempos atuais não basta informar. É preciso reconhecer o outro como legítimo interlocutor e compreender que o medo não se dissolve com uma hashtag otimista. Já diziam Inesita Araújo e Janine Cardoso no livro “Comunicação e Saúde” (Editora Fiocruz), “o que transforma um bem privado em bem público é sua circulação e possibilidade de apropriação”. Por isso a comunicação pública, especialmente quando se pensa no campo da Comunicação e Saúde, precisa ser relacional, política e estrategicamente construída. Não mais tendo o outro como um mero alvo a ser atingido, mas como ponto de partida de qualquer ação.

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Comentários para: Comunicação, desinformação e hesitação vacinal

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