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Vejamos os fatos. Há 60 anos, o Brasil sofria um golpe de Estado, destituindo o governo constitucional de João Goulart e passaria os próximos 20 anos num regime militar ditatorial. Dessas atividades golpistas, nasceu e cresceu todo um aparato jurídico, institucional e ideológico baseado em graves violações de direitos humanos. Censura, cassações, tortura, assassinatos, prisões arbitrárias, desaparecimentos, ocultação de cadáveres, entre outras ações de repressão, violência e vigilância, tornaram o cotidiano brasileiro uma arena de confrontos e abusos de poder. 

Durante dois anos e meio, reunir essas e outras verdades incômodas fez parte dos esforços da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Iniciada em 2012 a partir da Lei nº 12.528, a CNV contou com Grupos de Trabalho e Comissões da Verdade municipais, estaduais, sindicais, universitárias e camponesas, empenhados em reconstituir os passos da história ditatorial e garantir que a memória se tornasse presente. 

“Foi um trabalho bastante voluntarista que fizemos”, relata o advogado, professor e ativista Renan Quinalha sobre a organização, em conjunto com o historiador brasilianista James Green, do capítulo temático “Ditadura e Homossexualidades” do relatório da CNV. O livro organizado em 2014 por James e Renan chamado Ditadura e Homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade e a articulação entre James e Paulo Sérgio Pinheiro, um dos conselheiros da Comissão, garantiram que o assunto não ficasse esquecido no relatório.

“Não foi um Grupo de Trabalho institucionalizado de assessores como em outras frentes, tal qual o GT de gênero, o GT dos trabalhadores, ou dos indígenas. Foi um grupo mais externo que esteve à frente e redigiu”, completa Renan, que também participou como assessor jurídico na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e como consultor na CNV e para assuntos de gênero e sexualidade. Dos artigos publicados na coletânea, foi possível organizar o relatório na direção de tornar explícitas as diferentes manifestações repressivas da ditadura contra a população LGBT. 

Por meio de um trabalho meticuloso e empírico em cima de fontes jornalísticas e arquivos dos setores da censura e da polícia, Renan descreve, construiu-se um panorama das políticas de coerção contra esse grupo social. Para ele, essa parece ser a principal contribuição do documento: deixar claro que, por trás da repressão, existia uma ideologia também homofóbica. “Elas [as pessoas LGBTQIA+] também foram alvos e vítimas das políticas repressivas. Nós contrariamos uma tese que era muito difundida de que a ditadura teria sido branda do ponto de vista moral, de que era uma dita branda”.

Justificava-se o golpe e o autoritarismo em nome de valores tradicionais conservadores cuja preservação conservaria também a segurança nacional. Os “subversivos”, segundo a visão do regime, ameaçavam a ordem social. Eram contrários aos “bons costumes” e à doutrina da família. Por isso, seriam assumidos como “perigosos” e “nocivos”, figuras prejudiciais para o país cujo comportamento “antagonista” legitimaria a perseguição, a detenção e a tortura. 

A população LGBT esteve no centro desse discurso tanto reacionário quanto homofóbico. Segundo as pesquisas do relatório, as forças da repressão, ao associar a homossexualidade à ideia de subversão, viam na visibilidade e na afirmação da identidade sexual uma faceta do movimento comunista que buscaria convulsionar o país. Diante de toda essa visão conspiracionista do regime, gays, lésbicas e travestis foram diretamente violentados, privados do seu direito de trabalhar, impedidos de socializar e de se organizar politicamente e censurados nas artes e nas ideias. 

“Ela [a ditadura] não funda a LGBTFobia, nem inaugura esse processo de perseguição aos gêneros e sexos dissidentes, que vem de muito antes, podemos dizer desde a colonização pelo menos. A ditadura condensou e institucionalizou isso ao concentrar o poder político de modo muito marcante. Todas as agências de governo e de Estado trabalhavam na perspectiva da LGBTfobia. Isso deixa marcas muito profundas e presentes em várias áreas”, sustenta Renan.

A mais visível dessas heranças, esclarece, seria a violência policial. Para o advogado, tem-se o mesmo modus operandi coercitivo e autoritário. Outros indícios de sobrevivência da ditadura também estão na educação moralmente conservadora e nos estigmas homofóbicos, implementados por meio de “mecanismos de propaganda oficial, na educação básica, e através do controle que exerceu sobre a sociedade com a censura moral à música, às artes e à imprensa. Isso formatou uma sociedade conservadora que ainda naturaliza a violência contra pessoas LGBTQIA+”. 

No capítulo do relatório, documentos oficiais e casos importantes e emblemáticos foram revelados e ilustram o que relata Renan. Como a cassação de diplomatas do Itamaraty por “práticas de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”. Das 15 solicitações de expulsão, sete falavam nesses termos e outras utilizavam como justificativa condutas como “embriaguez”, “insanidade” e “instabilidade emocional” para cassar membros da diplomacia brasileira. 

Além disso, a censura e a apreensão dos livros sobre lesbianidade da escritora Cassandra Rios, os inquéritos policiais contra colunistas como Celso Curi e editores da imprensa LGBT, como o jornal Lampião da Esquina, e as batidas, rondas e operações policiais adotadas para “limpar” as ruas e os estabelecimentos comerciais da “vadiagem” das travestis e homossexuais, são outros exemplos da aparelhagem estruturada pela ditadura em torno de violar o direito de expressão e a liberdade de ir e vir.

No tópico da saúde das pessoas LGBTQIA+, a atuação repressiva e a educação conservadora apontada por Quinalha repercutiram, por exemplo, nas discussões sobre a epidemia de HIV/aids nos anos 80. Segundo o professor, o governo demorou a agir sobre a doença logo nos primeiros casos. “A ditadura educou a sociedade de modo muito conservador, muito LGBTfóbico, o que afastou as possibilidades de diálogo com as agências de saúde, ministério, secretarias etc. Isso ajudou a atrasar uma resposta institucional mais adequada. Demoramos a reagir, o que só ocorre no fim dos anos 80, começo dos 90, no contexto da redemocratização”, explica.

Da denúncia de tantas violações até colocar em prática ações de reparação, ainda há um longo caminho. O relatório chegou a incluir uma lista de orientações, porém, Renan afirma, “foram poucas recomendações implementadas, pois vivemos um processo de desdemocratização logo em seguida, que culminou com a eleição de Bolsonaro, mas que vem desde o golpe de 2016, com uma série de processos políticos que deram menos espaço para essa agenda de memória e verdade no Brasil”.

Duas das recomendações, entretanto, ocorreram e se destacam, diz o professor: a reescritura do parágrafo 235 do Código Penal Militar, que falava de pederastia nas Forças Armadas, feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015; e a criminalização da homolesbotransfobia, que foi oficializada em 2019 também pelo STF.

Outra repercussão do trabalho da Comissão aconteceu recentemente, em julho de 2023: a criação do Grupo de Trabalho de Memória e Verdade LGBTQIA+, presidido por Quinalha e atrelado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). “Esse grupo não se debruça só sobre a ditadura, mas sobre toda a história brasileira”, ressalta Renan. “Estamos vindo desde a colonização até hoje para recontar a história brasileira na perspectiva LGBTQIAP+; para nomear, ressaltar e analisar essas violências, recomendar políticas públicas e tratar de reparação com o Estado, que é a dimensão mais importante e ainda precisamos avançar”.

Preconceito militar

Em 2015, o STF decidiu pela retirada da expressão “homossexual ou não” e da palavra “pederastia” do artigo 235 do Código Penal Militar pela carga pejorativa, discriminatória e homofóbica. De acordo com o antigo texto do artigo 235, instituído em 1969, período marcado pela ditadura militar, é considerado crime sexual nas Forças Armadas “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. Antes, o título do artigo era “Pederastia ou outro ato de libertinagem”. Hoje é apenas nomeado “Ato de libertinagem”. Pederastia é uma forma depreciativa de denominar a prática sexual entre dois homens.

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