“Eu prometo solenemente consagrar minha vida ao serviço da humanidade”. Quando estudantes de medicina se formam, prometem usar todos os seus conhecimentos e esforços para salvar vidas, como médicos. E jamais o oposto disso. É o que prega o juramento de Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental, a quem se atribui a frase que abre esse texto. Porém, a ditadura civil-militar, iniciada há 60 anos, com o golpe de 1964, traz uma face nada honrosa de uma parte dessa categoria nos anos do regime.
Uma das profissões mais respeitadas, a medicina carrega consigo um compromisso inegociável com a ética. Ou pelo menos deveria ser assim. Em oposição completa à referência de Hipócrates, a atuação dos médicos no apoio à tortura não foi algo casual ou isolado, mas teve uma participação “ampla, sistemática e estratégica”, como constata o historiador e jornalista César Chevrand, com base em pesquisa de mestrado inédita desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (PPGHCS/Fiocruz).
O estudo demonstra que a ditadura colocou muitos médicos diante de dilemas pessoais. “Existe um código de ética de medicina, existe um juramento de Hipócrates em que os médicos se comprometem a fazer o bem, a cuidar e a preservar a vida e a saúde acima de tudo”, afirma o pesquisador. Intitulada Doutores da Ditadura: médicos, repressão política e violação de direitos humanos no Brasil (1964-1985), a pesquisa foi realizada entre 2019 e 2021 na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) — Radis abordou o assunto, em reportagem que analisou os reflexos dos 60 anos do Golpe para a saúde, e agora retorna ao tema, em uma conversa com César, para aprofundar as descobertas incômodas trazidas pela pesquisa.
Com base em informações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e de outras comissões instauradas no Brasil, além de materiais do projeto Brasil Nunca Mais, o pesquisador buscou desvelar a participação de médicos na repressão. Um dado que chamou a atenção foi justamente a presença significativa de profissionais dessa categoria na lista de agentes identificados e acusados de participação em torturas.
“Dos 377 agentes de Estado acusados por crimes no relatório, 51 denunciados eram médicos (quatro militares e 47 civis)”, afirma — portanto, 13,5% dos acusados. De acordo com César, há indícios de que esse número seja ainda maior, devido ao fato de que os médicos militares atuavam de forma clandestina e muitas vezes sem identificação de sua formação durante as sessões de tortura.
As suspeitas de que essas participações não teriam sido circunstanciais se confirmaram ao longo do estudo: “Ao mapear, reunir e analisar essas informações, torna-se possível identificar padrões para além das atuações individuais, compondo um quadro complexo das relações que os médicos brasileiros mantiveram com a repressão política durante a ditadura”, destaca um trecho da dissertação.
“Doutores” da ditadura
Segundo o pesquisador, havia um lugar e uma finalidade para esses profissionais na engrenagem do sistema repressor: “Na cadeia da repressão política engendrada e operada pelos militares durante os 21 anos de regime, havia quem investigasse, quem prendesse, quem torturasse, quem assistisse a tortura, quem matasse o inimigo e quem assinasse um laudo falso — o médico”. E completa: “Sem a ação coordenada de todos esses atores, não somente a guerra em nome da ‘segurança nacional’ poderia estar comprometida, mas o próprio regime, sustentado pela violência do poder do Estado”.
A autoridade médica tinha um papel fundamental nas torturas — “se o preso está sendo torturado e morre, ele não dá as informações que queriam”. “Para ‘preservar’ a vida de quem era torturado durante o interrogatório, o médico estava ali aferindo a pressão arterial e dando aval para continuar ou interromper as sessões de terror: ‘tá limpo, pode continuar… não, é melhor parar e deixar para amanhã’”, descreve.
O pesquisador ilustra essa realidade ao relatar um dos casos registrados no relatório da CNV, uma história que envolve dois ex-colegas de universidade: um chamado Luiz Roberto Tenório e o outro Ricardo Fayad. “Luís Roberto Tenório foi torturado pelos militares, teve o tímpano perfurado e foi atendido no cárcere por Ricardo Fayad, seu ex-colega de faculdade de medicina”. Mesmo tendo o reconhecido, Fayad autorizou que as torturas continuassem. “Isso dá uma dimensão da dramaticidade vivida naquele ambiente”, frisa o historiador.
O estudo demonstra ainda que o saber médico contribuiu para que as punições surtissem o efeito desejado pelos militares. “A sofisticação das técnicas de interrogatório e o seu uso massivo enquanto política de Estado fizeram da tortura um campo do saber que teve a contribuição fundamental de médicos e outros profissionais de saúde na construção de uma metodologia supostamente científica”, revela o texto.
O sistema repressor praticava uma série de violações. Mulheres grávidas presas pelo regime, por exemplo, não recebiam atendimento médico devido. “Um preso sob custódia tem direito a médico e deve ter seus direitos preservados. Aquilo era absolutamente ilegal. Como é que um médico atende um preso político vendado?”, indaga o pesquisador.
César também aponta a importância de distinguir os tipos de alinhamento entre médicos conservadores e o regime militar. “A gente não pode dizer que todo médico conservador teve relação ou apoiou os crimes da ditadura. Não é isso. Existem médicos que foram até esse ponto [de participar das torturas] e outros que apoiavam as políticas de saúde mais conservadoras, mais privatistas. Esses estavam mais alinhados com outras questões”, explica.
Causa mortis censurada
Além de atuarem nas sessões de torturas em interrogatórios, outra colaboração fundamental dos médicos em apoio ao regime foi na função de legistas, acobertando os assassinatos com a falsificação de laudos, quando as barbaridades cometidas nos porões da ditadura resultaram na morte dos detentos. Além disso, esses médicos fizeram parte de esquemas para o desaparecimento de muitos dos corpos, ocasionando o sepultamento de opositores do regime como indigentes, o que aumentava o sofrimento de familiares das vítimas.
Uma reportagem especial da Revista Ser Médico (nº 72), do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), publicada em 2015, com o tema Os médicos e a ditadura militar, detalha um pouco mais esses vilipêndios de cadáveres. “Segundo relatos recolhidos pelo Grupo Tortura Nunca Mais, os corpos dos militantes chegavam ao IML assinalados com um T, de terrorista. Era um sinal para que o legista atribuísse a morte a qualquer outro evento, menos à tortura, e que as vítimas fossem enterradas como indigentes, sem tempo para que os sinais de violência fossem constatados por alguém”, relata o texto assinado pelo jornalista Aureliano Biancarelli.
César ressalta que ao esconder tais crimes — e resguardados pela censura da imprensa (Radis 123) —, os médicos protegiam o regime do desgaste que seria gerado junto à opinião pública pelas violações de direitos humanos frequentemente praticadas pelos militares. “Basicamente os médicos legistas atuavam nos institutos médicos legais (IMLs) subordinados às Secretarias de Segurança Pública. Eles agiam nessa lógica policial, acobertando os crimes na ditadura”, diz ele.
O pesquisador comenta ainda que as atrocidades cometidas pelos médicos denunciados não se limitavam à adulteração dos atestados de óbito e ocultação de cadáveres. “Houve denúncias de internação de presos políticos em clínicas psiquiátricas. Ou seja, com a participação de médicos assinando laudos e punindo presos políticos com internações psiquiátricas compulsórias e arbitrárias”, revela.
Ainda de acordo com o estudo, um dos principais legistas envolvidos nesse sistema, com várias acusações de falsificação de atestados de óbitos, foi Harry Shibata, que chegou a ser diretor do IML de São Paulo (1973-1986). Um dos casos mais emblemáticos envolvendo o legista foi o assassinato do jornalista e integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Vladimir Herzorg, na época diretor de jornalismo da TV Cultura, e que se tornou um símbolo na luta pela redemocratização após sua morte.
Em outubro de 1975, ao se apresentar voluntariamente à sede do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna], na Vila Mariana, em São Paulo, Herzorg foi torturado e assassinado pelos militares. Em seu laudo, assinado por Shibata, a causa da morte foi atestada como suicídio, posteriormente descoberta como falsa. Outras denúncias similares acumularam-se contra o legista.
A pesquisa de César enumera um total de 117 vítimas da ditadura oficialmente relacionadas à atuação dos médicos. Revela ainda a maior concentração desses casos durante os chamados Anos de Chumbo, do general Emílio Garrastazu Médici (1969 -1974), o período tido como o mais sangrento da ditadura, a partir da instauração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), por Artur da Costa e Silva, em dezembro de 1968.
Uma categoria dividida
Ao mesmo tempo em que médicos assessoravam as torturas nos cárceres, outros profissionais e estudantes de medicina sofreram com a repressão, reagiram e se articularam coletivamente, principalmente a partir da segunda metade da década de 1970, integrando-se aos comitês pela anistia e às lutas pela redemocratização do país — o que resultou, por exemplo, na Reforma Sanitária Brasileira (Radis 259).
Esses médicos contrários à ditadura também sofreram com perseguições. “Das 474 vítimas do relatório da CNV, identifiquei 16 estudantes de medicina e quatro médicos. Havia médicos na luta armada, na oposição consentida, na oposição parlamentar. A gente percebe que os médicos estavam muito envolvidos nas lutas políticas e que questões ideológicas estavam misturadas”, constata o pesquisador.
Os médicos progressistas incorporaram questões de direitos humanos à sua agenda corporativa e organizaram-se no chamado Movimento Médico. Essa mobilização era composta por residentes, jovens médicos que lutavam por direitos trabalhistas e integrantes da Renovação Médica, que eram profissionais progressistas interessados em ocupar a direção das entidades e associações médicas, instituições que estiveram por muito tempo na mão de pessoas alinhadas à ditadura. “No final dos anos 70, esses médicos se integraram às lutas pela redemocratização do país”, explica César.
Divididas entre um grupo conservador acomodado ao poder e uma oposição envolvida na luta pela democracia, as entidades médicas estavam no meio de uma disputa política que atravessaria a década de 1980. “O Movimento Médico, a partir da Renovação Médica, fez com que eles [os médicos progressistas] começassem a disputar os sindicatos e associações e conquistassem a direção dessas entidades, até chegar aos conselhos de medicina. Quando eles chegam aos conselhos, então conseguem pela primeira vez responsabilizar os médicos denunciados”, aponta o pesquisador.
Nesta trajetória, destacam-se dois processos emblemáticos: “Primeiro, a punição do médico-legista Harry Shibata no Cremesp, com a perda do registro profissional, em 1980 — recuperado posteriormente por meio de ação judicial; e depois, o julgamento do tenente-médico do DOI-Codi Amílcar Lobo, no Cremerj [Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro], em 1988”.
Uma das conclusões da pesquisa de César é que se os médicos participaram ativamente de violações de direitos humanos durante a ditadura, a categoria também foi crucial para as investigações, denúncias e punições de seus colegas na reabertura política. “Um ponto muito importante é que se a gente diz que os médicos tiveram esse papel estratégico na repressão, a gente também pode dizer que eles tiveram uma participação importante na denúncia dos seus próprios pares”, ressalta.
Democracia para sempre
César afirma ainda haver muito a se investigar e a ser debatido, não somente sobre as relações entre a classe médica e a repressão política, mas também a respeito de outras profissões da saúde — já que ex-presos políticos também testemunharam a presença de enfermeiros, dentistas e até psicólogos nos cárceres, colaborando ativamente nas sessões de tortura.
O pesquisador ressalta a necessidade de aprofundar esses estudos seis décadas após o golpe que culminou em uma ditadura de mais de 20 anos. Segundo ele, existem pesquisas semelhantes nos países do Cone Sul, como Argentina, Chile e Uruguai, mas em relação ao Brasil há muito a se desvendar. “Ainda existe muita coisa para a gente descobrir, mas também são muitas as dificuldades para obter essas informações. Acho que os próprios médicos e a sociedade como um todo conhecem pouco essa história”, reflete.
Leia a dissertação de mestrado de César Guerra Chevrand em https://bit.ly/doutoresdaditadura.
Memória, justiça e reparação
Em um país que concluiu a sua Comissão Nacional da Verdade somente 25 anos depois da anistia e jamais condenou os agentes públicos envolvidos com as violações de direitos, César define a atuação dos conselhos de medicina como notável. “O Brasil foi um país que não puniu os seus agentes. E os médicos, numa iniciativa até hoje inédita, conseguiram pelo menos uma tentativa de responsabilizar esses agentes”, avalia.
Ainda que não tenha ocorrido a responsabilização penal dos agentes da ditadura, o historiador ressalta que, ao acessarem os conselhos de medicina, os médicos que lutavam pela democracia buscaram pelo menos garantir a punição por infrações éticas, com a penalidade máxima de cassação do registro profissional, como chegou a ocorrer com Harry Shibata e Amílcar Lobo.
“Conversei com alguns médicos, que eram ameaçados nos anos 1980, já depois do fim da ditadura, quando aconteceu esse julgamento no Cremerj e no Cremesp. Eles sofreram todo tipo de ameaça. Era barra pesada: os militares cercavam, perseguiam, incomodavam. Esse processo não foi simples. Esse pessoal botou a cara e sua trajetória profissional em risco”, aponta.
Outra discussão da época era que os médicos militares não poderiam ser julgados pelos conselhos de medicina em razão de suas carreiras nas Forças Armadas. Apesar disso, todos os 51 médicos identificados pela pesquisa, incluindo legistas e militares, foram enquadrados por “responsabilidade pela autoria direta de condutas que ocasionaram graves violações de direitos humanos”, conforme relatório da CNV.
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