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Garantir o acesso ao cuidado especializado é uma das maiores dificuldades em um sistema de saúde universal. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 75% da população brasileira utilizam exclusivamente os serviços do SUS. Em uma população superior a 200 milhões de habitantes, esse cenário resulta em desafios complexos — especialmente no chamado “gargalo” entre a atenção primária e a média e a alta complexidade, como consultas com especialistas, exames diagnósticos e cirurgias.

Atento a essa realidade, o Consórcio Intermunicipal de Saúde da Baixada Fluminense (Cisbaf), sediado em Nova Iguaçu (RJ), atua hoje como um instrumento estratégico de gestão em saúde pública e de integração entre os municípios da região. Maior consórcio intermunicipal de saúde do país, cobrindo uma área com 3,7 milhões de habitantes, o Cisbaf contribui para ampliar a oferta de consultas especializadas e procedimentos de média e alta complexidade pelo SUS na Baixada. Para isso, tem apoiado políticas do Ministério da Saúde criadas nos últimos anos, como o Programa Nacional de Redução de Filas (2023), o Programa Mais Acesso a Especialistas (2024) e o Agora Tem Especialistas (2025).

Consórcio Intermunicipal de Saúde da Baixada Fluminense (Cisbaf), sediado em Nova Iguaçu (RJ). Foto: Comunicação | Cisbaf

No fim de 2024, o consórcio teve papel fundamental na elaboração do Plano de Ação Regional (PAR) para a Região Metropolitana I do Rio de Janeiro, que inclui a Baixada Fluminense e a capital do estado. O plano pretende ampliar o acesso a especialistas, exames e cirurgias, possibilitando o aumento da captação de verbas federais pelos municípios. “A iniciativa busca garantir atendimento oportuno e qualificado, promovendo a regionalização e a integração interfederativa no SUS”, destaca o texto de apresentação da experiência “Cisbaf: Programa Mais Acesso a especialistas e o fortalecimento da regionalização do SUS”, na plataforma IdeiaSUS, da Fiocruz, que reúne práticas exitosas de saúde em todo o país [Saiba mais em https://bit.ly/ideiasuscisbafpmae].

Segundo Rosangela Bello, secretária-executiva do Cisbaf, existem hoje mais de 300 consórcios de saúde no Brasil. “O Cisbaf integra a Rede Nacional de Consórcios Públicos. Os consórcios surgem exatamente dessa necessidade de dar conta da questão da atenção especializada”, declara à Radis. A experiência mostra que a regionalização do SUS é mais do que uma diretriz administrativa: é um caminho para reduzir desigualdades e ampliar o acesso à saúde.

Rosangela Bello é secretária-executiva do Cisbaf desde sua inauguração em 2000. Foto: Comunicação | Cisbaf

O desafio de chegar ao especialista

Não é de hoje que o cuidado especializado mobiliza as autoridades sanitárias. A ampliação do acesso a consultas com especialistas e à marcação de exames vem sendo apontada como prioridade do Ministério da Saúde pelo menos desde 2023, quando a então ministra Nísia Trindade instituiu a Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde (PNAES), seguida pelo Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE), depois reformulado como Agora Tem Especialistas.

Na Baixada Fluminense, porém, esse movimento começou antes. Desde 2018, o Cisbaf já se articula para ampliar o acesso a consultas e exames por meio do Programa Marque Fácil, que uniu os municípios consorciados — Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados, São João de Meriti e Seropédica. Mais recentemente, Paracambi e Engenheiro Paulo de Frontin também passaram a integrar o consórcio [Saiba mais em https://bit.ly/ideiasuscisbafmarquefacil].

“Tradicionalmente os municípios cuidam da atenção básica; os estados e o governo federal focam na questão da atenção terciária — de leitos e hospitais — e sempre ficou um vazio na questão do diagnóstico”, avalia Rosangela. “Como em geral os municípios não têm capacidade operacional e assistencial para dar conta do diagnóstico, não têm serviços próprios ou contratados que possam fazer isso, virou uma atribuição regional”.

À frente do Cisbaf desde sua fundação, há 25 anos, ela explica que antes de 2018 o consórcio concentrava a atuação na regulação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) na Baixada [Saiba mais sobre o Samu na Radis 276] e em demandas específicas, como a gestão de leitos obstétricos na região. O vazio assistencial na atenção especializada, contudo, motivou a ampliação da atuação nos últimos sete anos.

“Foi um momento em que a nossa região estava totalmente sem acesso à tomografia computadorizada, ressonância magnética, biópsia de próstata e de mama e outros exames. Com isso, não conseguíamos dar conta do diagnóstico das doenças mais prevalentes, como câncer e questões cardiovasculares [pelo SUS]”, recorda.

Reunião da Comissão Intergestores Regional da Metropolitana I, com os gestores municipais de saúde, na sede do Cisbaf, em Nova Iguaçu (RJ), no dia 25/9/2025. Foto: Comunicação | Cisbaf

Do Marque Fácil ao Agora Tem Especialistas

Rosangela explica que o Marque Fácil foi uma estratégia desenvolvida pelo Cisbaf para enfrentar a crise na atenção especializada na Baixada. De acordo com informações cadastradas na Plataforma IdeiaSUS, “ao utilizar a rede privada de forma complementar ao SUS, o Marque Fácil busca garantir o acesso oportuno e eficaz, respeitando os princípios do sistema público de saúde”.

O Cisbaf realizou um estudo técnico junto aos municípios sobre as necessidades de exames e procedimentos de média complexidade e abriu chamamentos públicos para que prestadores privados e filantrópicos participassem desse processo, apresentando seus valores que passaram a integrar uma tabela regional formada por valores da tabela SIGTAP (SUS), remunerada com recursos federais e uma complementação que é paga com recursos próprios municipais.

A secretária-executiva destaca ainda a importância da cooperação entre os municípios para ampliar a oferta, o que traduz o espírito de um consórcio: “Pode ser que Seropédica sozinha consiga fazer pouca coisa, mas, se tiver ajuda de Duque de Caxias ou talvez de Itaguaí, é possível avançar em alguma área. Essa lógica da parceria surge na criação dos consórcios, para ser esse elo”, diz. 

Ao atuar dessa forma, ela ressalta que o Cisbaf vai ao encontro de um importante princípio organizativo do SUS: “A Lei 8.080/1990 fala que a regionalização é fundamental para que a saúde como direito de todos e dever do Estado se cumpra”.

Márcia Ribeiro, diretora técnica do Cisbaf, destaca que o consórcio apoia a gestão dos municípios da Baixada, mas não os substitui em suas atribuições: “A gente amplia o território, amplia a oferta, mas a gestão é deles”, explica. Segundo informações cadastradas na IdeiaSUS, entre 2018 e 2024 foram realizados mais de 270 mil procedimentos pelo Marque Fácil. Em 2024, a média foi de 6 mil por mês. No mesmo ano, o programa recebeu um investimento de R$ 9 milhões e, no início de 2025, contabilizava 80 clínicas credenciadas.

Rosangela comenta também os resultados de uma emenda parlamentar no valor de R$ 2 milhões, obtida pelo Cisbaf em 2024, que permitiu acelerar a fila de cirurgias pediátricas eletivas na região, composta até então por 1.650 crianças. “Em quatro ou cinco meses, conseguimos realizar 349 cirurgias eletivas pediátricas e dar conta de 25% dessa fila”, celebra.

Regionalização amplia acesso a exames para diagnóstico e consultas com especialistas no SUS. Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Organização e financiamento

Outra novidade, trazida pelo PMAE, foi a criação das Ofertas de Cuidado Integrado (OCIs) — uma espécie de “pacote” de atendimento em que o paciente passa a ter um conjunto de procedimentos de saúde previstos e agendados ao mesmo tempo, incluindo consultas, exames e outros serviços complementares. “É uma mudança de modelo que oportuniza a aceleração desses diagnósticos”, ressalta Rosangela. Um dos principais objetivos da nova implementação é que doenças mais prevalentes sejam diagnosticadas e tenham seus tratamentos iniciados entre 30 e 60 dias na rede pública [cumprindo o que preconizam, por exemplo, as leis nº 13.896/2019 e nº 12.732/2012].

As OCIs inicialmente contemplavam as especialidades de cardiologia, oftalmologia, oncologia, ortopedia e otorrinolaringologia, definidas como prioritárias pela pasta da Saúde. Em 2025, o Agora Tem Especialistas incluiu ginecologia no rol de modalidades habilitadas. Como incentivo à adesão, o Ministério da Saúde repassa aos municípios valores maiores por OCIs do que a tabela SUS pagaria se os procedimentos fossem realizados separadamente.

A medida vem surtindo efeito. Rosangela afirma que a nova possibilidade despertou o interesse dos gestores municipais para organizarem suas demandas de saúde de forma mais planejada. Segundo ela, procedimentos que, pela tabela Sigtap, renderiam cerca de R$ 48 se feitos isoladamente, podem gerar R$ 250, quando organizados como OCIs, por exemplo. “Todos os secretários de saúde querem isso”, constata.

Para aderir a essa nova forma de organização dos serviços, os municípios precisaram integrar um Plano de Ação Regional (PAR). O Cisbaf teve papel essencial na realização do estudo técnico e formatação do plano, obtendo aprovação de quase R$ 120 milhões em recursos para os municípios consorciados, além do Rio de Janeiro, que pertence à mesma macrorregião. O Cisbaf também atua como Núcleo de Apoio à Gestão (NAG) da região e teve seu PAR aprovado em 31 de dezembro de 2024.

O Agora Tem Especialistas manteve o modelo de OCIs em seis especialidades médicas e ampliou a possibilidade de oferta no setor privado conveniado ao SUS, permitindo a troca de dívidas fiscais de instituições e planos de saúde por serviços prestados — o que o Cisbaf vê como avanço: “A gente tem muitas clínicas e hospitais que não conseguem participar do processo de contratualização pública hoje porque devem ao município, porque não têm certidão. Então, essa Medida Provisória traz essa inovação: elas poderão trocar dívidas por serviços — seja cirurgia, seja oferta de exames”, observa Rosangela.

Fiscalização e investimento na rede própria devem estar no horizonte

Radis conversou também com Heleno Rodrigues Corrêa Filho, médico sanitarista, doutor em saúde pública, professor aposentado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A entrevista buscou compreender sua visão, a partir do campo da saúde coletiva, sobre a integração do SUS com o setor privado em programas voltados à ampliação da atenção especializada.

Heleno explica que o Agora Tem Especialistas não se enquadra na definição legal de uma parceria público-privada (PPP), pois, nessa modalidade, o poder público é financiador parcial de um empreendimento privado. “A essência do Agora Tem é a troca de dívidas e créditos futuros por serviços. A gestão disso caberá a um Instituto Social Autônomo (a AgSUS) e será operacionalizada pelo Grupo Hospitalar Conceição, uma empresa pública subordinada ao SUS, no papel de contratador”, detalha.

Ao reconhecer a escassez de recursos da rede pública na atenção especializada, o sanitarista destaca que a dependência histórica do SUS em relação ao setor privado nessa modalidade de atendimento é consequência de interesses orquestrados e subfinanciamento crônico. “O SUS teria de superar o bloqueio dos lobbies privados no Congresso e nas agências reguladoras, bem como a atuação histórica da maioria dos parlamentares que negam financiamento público para saúde e educação”, aponta.

Para ele, diante desse cenário de desmonte programado, a integração com o setor privado se torna necessária, em favor da população que precisa de assistência. “Pessoas gravemente doentes não podem ser confrontadas com desculpas e alegações financeiras. Esperam atendimento”, afirma.

Ainda assim, Heleno ressalta a importância do controle social e da fiscalização dos serviços prestados. A seu ver, é nesse ponto que os consórcios de saúde, como o Cisbaf, podem desempenhar papel decisivo: “Se a prestação de serviços for desregulada, será impossível verificar se o que foi prometido foi de fato realizado. Os consórcios intermunicipais de saúde podem ser a chave para criar grupos de acompanhamento constituídos pelos Conselhos Municipais de Saúde”, sugere.

Ele fez um paralelo com a educação, citando o caso dos programas Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e Prouni (Programa Universidade para Todos), para exemplificar os riscos de conversão de dívidas em serviços — alertando que, até hoje, muitas bolsas de estudo são falsas, menores ou incompatíveis com o tamanho das dívidas. E que o mesmo pode acontecer na saúde, se não houver controle adequado. 

Heleno reforça ainda a necessidade de fortalecer a rede pública para romper o ciclo de dependência do setor privado: “Seria necessário quantificar e declarar o volume dos recursos que fazem falta na rede pública e que deveriam significar investimentos para estruturar, ampliar e aperfeiçoar a rede própria do SUS. O objetivo deve ser fortalecer o SUS, e não beneficiar seus concorrentes privados, delegando sempre os serviços, ações e força de trabalho especializada”.

E, por fim, reafirma suas preocupações em relação às estratégias de ampliação de acesso ao cuidado especializado, mas sem negar sua importância e urgência: “Não estamos nos expressando contrários à emergência sanitária de encaminhar pessoas para instituições devedoras. Estamos questionando o controle, a tabela de preços, a conferência e a colocação de barreiras para evitar que seja prática comum sonegar para depois fingir que paga”, conclui.

Reunião na sede do Cisbaf, em Nova Iguaçu (RJ). Foto: Foto: Comunicação | Cisbaf
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