Em outubro de 2020, a publicação de um decreto presidencial que previa a privatização de Unidades Básicas de Saúde (UBS) gerou a pior reação negativa ao governo Bolsonaro desde o início do mandato. Com mensagens como o “SUS salva vidas” e em defesa das vacinas, internautas publicaram 98,5% de mensagens contrárias ao decreto e em defesa do SUS, segundo levantamento da consultoria Arquimedes. O episódio deixou uma lição sobre o papel da comunicação para a garantia e o fortalecimento do direito à saúde. Em meio à pandemia do novo coronavírus, quando um contexto de desinformação e de proliferação de notícias falsas dificulta ainda mais o controle da covid-19, o lugar central da comunicação não pode ser negligenciado. E então surge a pergunta: como o direito de comunicar se relaciona com a saúde?
Essa é a questão central do livro “Direito à comunicação e saúde”, lançado em julho pela Editora Fiocruz na coleção Temas em Saúde e escrito a quatro mãos pelos autores Luiz Felipe Stevanim e Rodrigo Murtinho. A obra aborda o papel do direito à comunicação na garantia de saúde e no exercício da cidadania. Ao longo do percurso para entender esse tema, outras perguntas surgem: Como assegurar o direito à voz dos trabalhadores e trabalhadoras do SUS? Como expressar as necessidades em saúde dos mais diversos grupos da sociedade brasileira — dos moradores de favelas aos povos indígenas? Como o acesso à internet, a liberdade de expressão nas redes e a proteção de dados pessoais se relacionam com o campo da saúde?
Algumas dessas questões foram abordadas pelos dois autores em um bate-papo proposto por Radis para refletir sobre a relação entre comunicação e saúde, sobretudo em um contexto em que os holofotes estão voltados para as políticas de saúde e o SUS. Com trajetórias de pesquisa e atuação vinculadas à Fiocruz, ambos ressaltam o papel da comunicação pública para a saúde: Luiz Felipe Stevanim é jornalista e editor da Radis, com doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Rodrigo Murtinho é pesquisador e diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), com doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). A conversa é também um convite para que você que lê este texto possa mergulhar nessa reflexão sobre a presença da comunicação em seu cotidiano — e como ela afeta o exercício da cidadania e de outros direitos, como a saúde.
Não há saúde sem comunicação
Luiz: Saúde e comunicação são direitos fundamentais para a garantia de cidadania. Na Constituição de 1988, saúde é definida como direito de todos e dever do Estado, mas a comunicação permaneceu com diversos vazios, devido à ausência de regulamentação. Esse é o nosso ponto de partida: Como esses dois direitos se relacionam? E por que é necessário debater o direito à comunicação no campo da saúde?
Rodrigo: Com a pandemia, as pessoas passaram a conhecer mais o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo contato com o que ele produz e promove e até mesmo com a sua própria existência. Pouca gente sabe que o SUS foi a materialização do direito à saúde, reconhecido e positivado na Constituição. Esse reconhecimento partiu da ideia de criar um sistema público e único de saúde, em que o setor privado existisse, mas de forma complementar. Isso é o que está na Constituição. Não é o que acontece necessariamente na realidade. Mas a comunicação, já na Constituição, foi tratada como se fosse formada por três sistemas distintos (o sistema privado, o público e o estatal), sendo que o privado é infinitamente maior do que os outros dois. Essa é uma contradição enorme, porque não há como separar as políticas de comunicação da atividade pública e estatal. O fato é que o direito à saúde está reconhecido na Constituição; e na comunicação, temos uma formulação dúbia, que precisaria de regulamentação para que alguns direitos de fato se tornassem realidade.
Afinal, o que é direito de comunicar?
Luiz: Seria interessante refletir sobre aquilo que definimos como direito de comunicar no livro. Enquanto a saúde parece ser algo muito concreto, a comunicação é difícil de definir: por exemplo, como ela influencia outros direitos e como está presente na nossa vida? A comunicação é difusa, é um bem imaterial e simbólico. No livro, fazemos um resgate da história do direito à comunicação e como ele se relaciona, no Brasil, com a consolidação da cidadania. O Brasil vivia uma ditadura civil-militar e havia a luta para redemocratizar o país nos anos 1980. Ali é que se forma o movimento da saúde, que tem na Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e no Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) alguns de seus atores importantes, até desembocar na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS). A 8ª é um marco, porque ela vai idealizar o SUS. O debate da comunicação estava incluído nesse contexto, porque não há saúde sem democracia, assim como não há democracia sem democratização da comunicação.
Rodrigo: Essa referência da 8ª CNS e da Constituinte é importante porque ali foi formulado o alicerce do SUS, a partir de uma ideia de saúde que não se define somente por oposição à doença, mas como condições de vida ligadas à cidadania ampla e ao exercício real da democracia. A comunicação como um dos pilares da democracia está embutida nesse conceito ampliado de saúde.
“Direito de comunicar é um direito amplo, um direito coletivo e não simplesmente individual.”
Luiz Felipe Stevanim
Luiz: Quando se fala em direito de comunicar, muitas pessoas o reduzem à liberdade de expressão. Ou até mesmo ao direito das empresas de mídia de veicular informação. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, durante a Revolução Francesa, define que liberdade de expressão é um direito individual. Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, traz no artigo 19 a ideia de livre expressão de ideias e opiniões. Para nós, esse conceito é fundamental, mas insuficiente para dar conta da complexidade da comunicação. Deixar “livre para falar” não garante que as pessoas terão condições de falar. Num país capitalista desigual como o Brasil, isso fica muito nítido. Por exemplo: em uma eleição, quando os candidatos têm peso econômico diferente, um sai na frente porque tem mais condições de comprar esquemas de difusão massiva de mensagens nas redes sociais. Há desequilíbrios econômicos, políticos, religiosos. O que nós entendemos como direito de comunicar é um direito amplo, muito mais do que liberdade de expressão ou acesso à informação. É um direito coletivo e não simplesmente individual.
Bem comum ou privado?
Rodrigo: No Brasil, é difícil visualizar a comunicação como um bem comum ou público. Nascemos, crescemos e aprendemos a vê-la como atividade eminentemente comercial. Seja na radiodifusão ou no jornalismo impresso, a maior parte dos veículos são entes privados. O que ocorre no Brasil é diferente de outras experiências internacionais, como na Europa, onde a radiodifusão foi fundada como um serviço público, como parte do direito de se informar e ser informado para além dos interesses econômicos. Para a gente, é quase natural entender a comunicação como bem privado. E não é. E ela não abrange só o direito de se informar: é o direito de comunicar, de ter acesso aos bens construídos socialmente. A capacidade que o ser humano tem de se comunicar é construção de uma sociedade. Mas só uma parcela da população tem acesso: durante a pandemia, vozes que seriam fundamentais para o debate público ficaram restritas a determinados territórios, porque o direito de comunicar é mediado por canais que só quem tem acesso são grandes empresas. Existem inúmeras realidades, como as favelas, que não ganham a repercussão necessária inclusive para subsidiar o debate público de saúde.
Rodrigo: E tem um ponto fundamental que a gente toca no livro que é entender que os direitos são construções históricas. Isso nos ajuda a perceber que um direito pode ser perdido ou retraído. É o cenário que vemos com as reformas trabalhista e da previdência e com a Emenda Constitucional 95, do Teto dos Gastos, que gerou um sufocamento no SUS. Os direitos não são dados ou naturais, são conquistas. No caso da comunicação, é um direito transversal. É necessário que haja comunicação para que se reivindique outros direitos — por exemplo, condições adequadas nas escolas para o retorno às aulas na pandemia. Para que aconteça o debate público, é preciso comunicação. A adesão da população às vacinas é fortemente atrelada à questão de comunicação. Essa foi uma fala de uma entrevistada da Radis, a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Domingues: A ausência de uma política de comunicação consistente foi determinante para que as pessoas deixassem de acreditar nas vacinas. Não há uma comunicação clara e o resultado disso é que muita gente está deixando de se vacinar ou de tomar a segunda dose.
Comunicação pública e saúde
Rodrigo: Há um conflito público x privado nítido nos interesses que estão por trás da comunicação. Da 8ª CNS até a última conferência, em 2019, o tema da comunicação foi abordado de alguma forma em todas elas. No conjunto dos debates e resoluções, percebemos nitidamente que uma das vertentes principais é a necessidade de resgatar a comunicação como bem público, dando voz a diferentes setores da sociedade ou a impedir a propaganda de produtos que coloquem em risco a vida dos cidadãos, como cigarros, agrotóxicos e alimentos ultraprocessados. Existe um debate enorme na sociedade e no campo da saúde sobre a necessidade de se restringir esse tipo de publicidade. Em outros países, o direito de antena prevê que instituições fundamentais da sociedade tenham acesso aos canais para poder discutir e colocar determinados debates para a população. Isso não acontece no Brasil e aparece de modo forte como reivindicação nas Conferências de Saúde. As conferências questionam esse monopólio e a ocupação de um espaço que deveria ser público somente por atores privados.
Rodrigo: Quando falamos em comunicação pública, não é apenas comunicação estatal ou governamental. O Estado pode também fazer comunicação pública. Porém, de acordo com a definição do termo, ela visa o fortalecimento da cidadania e dos direitos. Pode ser desenvolvida por universidades, instituições de pesquisa como a Fiocruz, movimentos sociais, sindicatos, organizações não governamentais e outras instituições da sociedade. Nenhuma comunicação é desinteressada. No caso da comunicação pública em saúde, o interesse é fortalecer os princípios do SUS, como a universalidade e a equidade.
“A informação é fundamental para a transparência do Sistema Único de Saúde.”
Rodrigo Murtinho
Rodrigo: Outro dado importante é que a informação é fundamental para a transparência do Sistema Único de Saúde. As pessoas precisam ter acesso à informação sobre o dia a dia do SUS, mas não existe uma política de comunicação do SUS que dê condições ao cidadão de se apropriar dos serviços de saúde de maneira ampla. Não é à toa que muitos cidadãos conheceram o SUS somente agora na pandemia. Até então a gente assistia ao SUS ser noticiado como um sistema que não funciona, que não tem médico e as pessoas não conseguem ser atendidas. Uma comunicação pública seria fundamental para balizar esse momento em que estamos vivendo.
Luiz: Exato. Como no Brasil há o predomínio da iniciativa privada e de interesses particulares (comerciais, políticos e religiosos), a política de comunicação do governo federal, durante a pandemia, foi pautada de acordo com os interesses do governante e não segundo os interesses do bem público. Quando a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom/PR) faz a opção por divulgar o “Placar da Vida”, com aqueles que se curaram da covid, e o Ministério da Saúde atrasa a divulgação de casos e mortes, o que está se fazendo é uma maquiagem dos dados. Há uma opção por divulgar determinada informação em detrimento de outra, em uma doença em que não existem “curados”, por conta das reinfecções e variantes. Que interesses estão por trás desse tipo de comunicação que deixa de ser pública? Há uma opção política pela desinformação.
Rodrigo: Você ressaltou muito bem que comunicação é um sinônimo de participação. Na pandemia, vemos isso nitidamente, com o surgimento de coletivos, principalmente em territórios vulneráveis como as favelas. São iniciativas sensacionais, um misto de solidariedade e comunicação. O coletivo que ajuda a informar numa linguagem que funciona nesses territórios é o mesmo que tem buscado donativos, que está distribuindo alimentos, que monta painéis com informações epidemiológicos sobre contágios e mortes dentro desses territórios. Para a Fiocruz, isso é fundamental, porque a comunicação pública é o principal pilar da nossa política de comunicação. Essas ações articuladas, como a campanha Se liga no Corona!, são produzidas com os comunicadores populares. Ninguém está dizendo como a comunicação deve ser. Estamos fazendo juntos.
Desinformação e ciência
Rodrigo: Muita gente coloca na conta da comunicação os problemas vividos com a pandemia. Mas a comunicação está dentro do contexto de disputa de versões e narrativas. Existem diretrizes governamentais em diferentes esferas trabalhando com sinais totalmente contrários. A própria mídia comercial, que tem cumprido um papel importante de informar a sociedade, em determinados momentos noticia eventos como se a pandemia não existisse, porque tem por trás os interesses do anunciante. Cloroquina e ivermectina não funcionam para a covid-19, mas muitos meios de comunicação aceitaram a publicidade que defendia o chamado “tratamento precoce”.
Luiz: Hoje já se sabe que a desinformação é parte de um contexto maior do que simplesmente a difusão de fake news, que são as notícias falsas que chegam no WhatsApp ou outros aplicativos dizendo que a tal vacinaé ineficaz. É um processo sistemático e muito bem financiado de difusão de mentiras, preconceitos e discursos de ódio, com o uso de algoritmos e ferramentas de análise de dados. E com muitos impactos sobre a saúde e a cidadania.
Internet e saúde
Luiz: A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece, desde 2011, que o acesso à internet é um direito humano fundamental. Mas, de um lado, vemos um cenário de exclusão digital de uma parcela da população; de outro, a comunicação em rede também passa a ser concentrada em poucas plataformas digitais, como Google e Facebook. São empresas internacionais que passam a definir as regras do debate público e o alcance das publicações de acordo com algoritmos. Aí temos uma questão: como pensar uma política de saúde nesse cenário da internet? Podemos falar em cidadania digital?
“A pandemia mostrou na prática o quanto populações estão excluídas da sociedade por não terem acesso a um bem público como a internet.”
Rodrigo Murtinho
Rodrigo: Esse é um tema que temos refletido muito e também tentamos ações práticas em relação a isso. Movimentos e organizações da sociedade civil se mobilizaram pedindo à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) que as empresas liberassem as franquias para que as pessoas pudessem se comunicar naquela fase inicial da pandemia. Pregava-se o distanciamento físico, mas só quem conseguiu fazer de fato foram aqueles que tinham meios de se comunicar, para trabalhar em casa. Passamos os dias fazendo reuniões e trabalhos virtuais, acesso ao banco e serviços públicos, consultas online, acesso a informações gerais sobre saúde, comunicação com amigos e familiares, tudo isso só pode ser feito com acesso à internet. E quem mais precisa não tem. A maior parte do acesso à internet no Brasil é feito por aparelhos móveis e por contas pré-pagas. É uma situação muito desigual que foi sublinhada durante a pandemia. Um exemplo é a educação. Uma parcela significativa de crianças e adolescentes foi totalmente excluída durante meses do processo de ensino e aprendizagem. Enquanto a ONU declarou a internet como um direito, a pandemia mostrou na prática o quanto essas populações e grupos sociais estão excluídos da sociedade por não terem acesso a um bem público.
Luiz: O acesso à internet é somente um dos aspectos da comunicação que acontece em rede. Há 20 anos, quando a internet começou a se popularizar, havia a esperança de que ela pudesse democratizar o conhecimento, de que seria o advento da chamada “sociedade da informação”. Existem as potencialidades do meio, mas muitas delas são capturadas por empresas. Outro tema que tem muitos impactos sobre a saúde é a questão da proteção de dados: a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrou em vigor em 2020, prevê que os dados de saúde são considerados sensíveis, porque impactam diretamente na vida das pessoas, tanto no consumo de serviços privados quanto em sua própria autonomia. Vemos, por exemplo, o uso crescente de tecnologias de reconhecimento facial pelo poder público como instrumento que reforça o racismo — negros que foram presos porque foram “confundidos” com criminosos por esse tipo de tecnologia da informação.
Rodrigo: A proteção de dados é ainda um tema pouco compreendido, uma dimensão da cidadania pouco materializada. Vemos empresas se apropriando dos dados dos cidadãos — e é bom que as pessoas entendam que não são apenas os dados estáticos, como nome, endereço, CPF ou tipo sanguíneo. Não são esses os dados que essas empresas querem. Elas querem saber o seu consumo, que horas você dorme ou acorda, por onde você se transporta, como você pensa, quais são os seus valores. São milhões de dados que são processados para gerar lucros e podem ocasionar prejuízos para a democracia, além de discriminar parcelas importantes da sociedade. Esse é um debate que a saúde precisa se apropriar nos próximos anos. Apesar de termos uma LGPD, ainda existe um abismo muito grande para que tenhamos a garantia desse direito.
Outra comunicação é possível?
Rodrigo: O livro reflete um pouco sobre todas essas questões e reforça o quanto o exercício do direito à comunicação é estratégico para que possamos efetivar outros direitos, entre eles a saúde.
“A comunicação pode sim ser um canal para fortalecer a pluralidade, a diversidade e as vozes do SUS.”
Luiz Felipe Stevanim
Luiz: Podemos dizer que ele é uma porta de entrada para todas essas discussões. Saúde depende de uma comunicação democrática para ser efetivada — saúde entendida como um conceito amplo, como bem-estar físico, social, mental e até mesmo espiritual. Como jornalista da Radis, um aprendizado que tive durante essa pandemia é perceber que a comunicação só faz sentido se ela desperta a nossa empatia. O propósito da comunicação é tornar comum. A gente vive um cenário de tanto embrutecimento, de discursos de ódio, de descaso com a vida humana e de necropolítica mesmo, de uma política da morte. Por isso, precisamos recuperar essa ética da comunicação do tornar comum, da solidariedade no sentido forte da palavra, da mobilização e participação, de entender o outro e de estímulo ao diálogo. A comunicação pode sim ser um canal para fortalecer a pluralidade, a diversidade e as vozes do SUS.
Direito de comunicar
■ participação
■ informação
■ cultura e desenvolvimento pleno do indivíduo
■ (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura — Unesco, Relatório MacBride, 1980)
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