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Maria Helena Machado estava intrigada. Durante a execução da pesquisa “Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil” — cujos dados sobre a rotina de médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e fisioterapeutas na pandemia foram revelados em março —, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do estudo foi constantemente surpreendida por pessoas que lhe abordavam com uma dúvida sincera:

– “Também sou trabalhador da saúde, posso responder ao questionário?”

Eram maqueiros, motoristas de ambulância, técnicos de raio-X, analistas de laboratório, recepcionistas, pessoal das áreas de limpeza, recepção, segurança, agentes comunitários de saúde, um conjunto enorme de mais de 1,5 milhão de trabalhadores de nível técnico/auxiliar, que, apesar da enorme importância e de estarem na linha de frente do enfrentamento à covid, ficam muitas vezes fora de foco. Os anônimos. Os “invisíveis”. Não porque inexistam, mas porque não são percebidos de fato no cotidiano, como chama a atenção Maria Helena. “As pessoas não prestam atenção neles: sabem que eles existem, dão importância ao que fazem, mas não querem conhecer nada, não querem se envolver — o termo é esse”.

Era chegada a hora de ouvi-los. Intitulada “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil”, uma nova pesquisa foi lançada em janeiro deste ano, como um desdobramento da anterior. Por meio de um questionário respondido online e ainda de lives com os trabalhadores, além do apoio de entidades sindicais para chegar ao maior número possível de entrevistados, a pesquisa procurou conhecer a realidade desses profissionais, saber quem são, o que fazem, por que não são visíveis e por que se sentem abandonados. Parte das respostas, Maria Helena adianta aqui, nesta entrevista concedida à Radis por telefone.

Segundo a coordenadora, ao falar do dia a dia na pandemia, muitos revelaram os riscos de uma rotina pesada, as condições muitas vezes inadequadas de trabalho e um ritmo estressante, atravessado por medo, insegurança e ainda preconceito. “Eles chegam a ser considerados ‘carregadores dos vírus’ por trabalharem nos ambientes em que trabalham”. O estudo inédito entra agora na sua fase final. Com os dados preliminares em mãos, a equipe vai formatar um relatório com os resultados que deverão ser apresentados, inclusive, para aqueles que foram sujeitos da pesquisa. Maria Helena espera que, ao traçar o mais completo perfil desses trabalhadores, a pesquisa ajude a desvendar uma realidade pouco conhecida. “E que isso nos coloque pedagogicamente pensativos, reflexivos, críticos à forma e à postura como a gente vem tratando esses trabalhadores”, afirma, categórica. “Isso precisa mudar”.

[Inspirados pela pesquisa, também conversamos com alguns desses trabalhadores. Os perfis com os relatos você confere aqui no site e na reportagem completa da edição de setembro da Radis].

O que a pesquisa com o recorte nos “trabalhadores invisíveis” pode nos dizer sobre a saúde no Brasil?

Queremos analisar as condições de vida, o cotidiano do trabalho e a saúde mental desses trabalhadores, e as alterações que sofreram durante a pandemia, para melhor entendê-los. Ainda não temos os dados estatísticos, mas já é possível dizer muita coisa a partir das entrevistas e das lives realizadas com eles. Durante a pesquisa-mãe (“Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19”), vastos segmentos dos trabalhadores que não viam seus nomes constando na listagem das ocupações e das profissões, me diziam: “Também sou trabalhador da saúde”. E perguntavam: “Posso responder a pesquisa?”. Conversando, nossa equipe chegou à conclusão de que era necessário conhecer profundamente a realidade desse conjunto muito grande de trabalhadores.

Por que “invisíveis”?

Nós os denominamos trabalhadores “invisíveis”, não no sentido dos processos de trabalho e nem do quantitativo — eles são numericamente muitos e, do ponto de vista da atividade que exercem na estrutura, também são muito visíveis. Mas eles são invisíveis aos olhos da gestão, da chefia e inclusive dentro das próprias equipes, no dia a dia do trabalho. A sociedade de um modo geral e a população usuária dos serviços de saúde no Brasil não percebem esses trabalhadores. E mais, ao longo do tempo, venho percebendo que até nós, pesquisadores, temos dedicado muito pouca análise a esses trabalhadores. Os olhos estão sempre voltados para o médico ou o profissional de enfermagem. Então, nós entendemos que eles são invisíveis socialmente, mas extremamente importantes, necessários. Percebemos a necessidade absurda de focar nesses trabalhadores, conhecer a realidade deles, saber quem são, o que fazem, por que não são visíveis, por que se sentem invisíveis.

Quais as perguntas essenciais? O que a pesquisa quer saber?

A pesquisa é dividida em três grandes grupos de questões. A primeira, obviamente, diz respeito a quem ele é: idade, sexo, escolaridade, onde trabalha, em que estado vive, cor e raça. Tudo isso faz parte de um primeiro bloco que a gente chama de um perfil sociodemográfico. Depois, nós queremos saber onde eles trabalham, em que trabalham, qual ocupação, que condições de trabalho esses profissionais têm, se trabalham no setor privado, público, filantrópico, se trabalham na linha direta da covid e em que setor, qual a sua jornada de trabalho? Ou seja, é um conjunto de perguntas ligados ao mundo do trabalho. E um terceiro bloco diz respeito ao bloco da vida e das condições de trabalho e saúde mental. Nós queremos saber: como esses trabalhadores lidam com a pandemia no dia a dia? Como trabalham? Se teve covid-19 e se sente protegido em seu ambiente de trabalho contra o coronavírus? Se sofreu algum tipo de violência ou discriminação? O que mudou em sua rotina durante a pandemia e se houve alteração da carga horária? Se eles têm Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) disponíveis e se houve treinamento adequado para sua utilização? Se tiveram direito à vacina e se são considerados de um modo geral como trabalhadores da saúde? E ainda tem um ponto fundamental: se tinham alguma doença ou comorbidade antes da pandemia? Sofriam de ansiedade, depressão, mal-estar ou a adquiriram algo assim nos últimos tempos? Estão com sintomas que demonstrem uma situação-limite? Ou seja, a gente tem um conjunto de perguntas, não muitas, mas o suficiente. É um questionário conciso, com muitas variáveis que a gente pode escolher. São perguntas sensíveis que nós vamos comparar com os resultados dos profissionais de saúde. Há uma preocupação muito grande que esse questionário guarde absoluta semelhança com o dos profissionais de saúde de nível superior entrevistados na pesquisa-mãe.

Que relatos vocês têm ouvido sobre a rotina desses profissionais?

Por meio de entrevistas ou via sindicatos e associações, temos ouvido sepultadores, motoristas de ambulância, técnicos e auxiliares de enfermagem, de Raio X, de análise laboratorial, farmácia, maqueiros, recepcionistas, trabalhadores de limpeza, pessoal da recepção e segurança, agentes comunitários. E a tônica é sempre a mesma: “Nós não somos considerados profissionais de saúde. Não é nem que somos invisíveis, a gente muitas vezes não é nem considerado como profissionais de saúde”. Eles nos relatam as dificuldades profundas para conseguir máscara e EPIs e contam, por exemplo, ter ouvido da gestão que eles não eram da saúde. Tem ainda a discussão com os ACS e agentes de combate a endemias (ACE), que não foram contemplados inicialmente com a vacina, como deveriam, na cota dos trabalhadores de saúde. Isso nos foi apontado por eles e é muito grave. Eles apontam também uma profunda diferença nas condições de trabalho. São pessoas que não contam com uma infraestrutura adequada. E ainda têm a questão trabalhista. Há indícios de que uma parte significativa desse contingente é de terceirizados, são temporários, recebem de empresas e não tem nenhum vínculo formal e funcional com as instituições, sejam públicas, privadas ou filantrópicas. A gente supõe que esses trabalhadores não adquiriram ainda a cidadania profissional que deveria existir no sistema de saúde.

Qual o maior achado da pesquisa até aqui?

Nas nossas lives eles demonstram um agradecimento por existir a pesquisa para que eles possam revelar, não em tom de acusação nem de denúncia, mas por ter onde falar: “Olha, nós existimos, nós estamos aqui”. E eu ouvi trabalhadores que diziam assim: “Por que nós fomos tão abandonados?”. Esse é um termo muito forte e muito duro de ouvir. É muito mais do que ser invisível. É o sentimento de abandono. Mas eu creio que nós vamos estar desvendando uma realidade pouco conhecida e que isso vai nos colocar pedagogicamente pensativos, reflexivos, críticos à forma e à postura como a gente vem tratando, nós todos, esses trabalhadores. Isso precisa mudar.

Por que, apesar de desempenhar papel essencial, muita gente não os enxerga?

São muitos os fatores. Primeiro, tem a questão social e a estratificação brutal no país. Nosso país tem mentalidade elitista. Prevalece uma certa ideia de que esse circuito aqui é dos pares, nós falamos de igual para igual, e aquele outro, dos que não têm escolaridade, não têm nível social igual ao meu, não merece a mesma importância. Não no sentido de desprezar um profissional. É pior do que isso. Muitos não conseguem perceber que esses profissionais existem na instituição. Uma vez, durante um debate, uma pessoa me disse: “Você tem toda razão. Quantas vezes, vocês entram em um ambiente de trabalho, um hospital, e sequer cumprimentam o porteiro? Ou quantas vezes nós, como usuários do sistema, entramos ali e sequer levantamos a vista para falar com o vigilante, o recepcionista, os técnicos?” A gente nem para. Se é o pessoal da limpeza, no máximo, se diz assim: “Dá licença para eu passar”. Ninguém sabe o nome de ninguém, porque aquele é apenas mais um que está ali “a serviço” e “para servir”. Então, essa pessoa me disse isso e completou: “A partir de agora, eu vou entrar nesses ambientes e lembrar da pesquisa”. Isso foi ótimo.

Que outros fatores contribuem para mantê-los invisibilizados?

Tem ainda uma outra coisa, que tem muito a ver com o lugar dele no processo de trabalho. Essa divisão do processo de trabalho na estrutura organizacional, seja de ambulatório, de UPA, seja na atenção primária, seja hospitalar, ela é muito hierarquizada e muito dividida. Até aqui ele vai, daqui para lá não interessa saber. A saúde é fortemente marcada pelo conhecimento e tende a não ouvir nem dar importância aquele que não tem capacidade de opinar sobre uma doença ou determinada situação. Além disso, há a correria. O dia a dia da instituição é fortemente marcado pela falta de tempo. E aqui eu falo de trabalhadores de um modo geral, inclusive os profissionais de saúde. Há um processo de trabalho extenuante, agressivo, que não dá a ele tempo de nada. A falta de comunicação, a falta de momentos e de espaços dialógicos dentro da instituição, também contribuem para esse distanciamento e essa invisibilidade. Ele se torna invisível. Se você olhar bem, a sociedade é cheia de trabalhadores absolutamente invisíveis. As pessoas não prestam atenção neles: sabem que eles existem, dão importância ao que fazem, mas não querem conhecer nada, não querem se envolver — o termo é esse. E, por fim, há ainda a gestão. Acho que os processos de gestão contribuem muito para essa hierarquização e manutenção do status quo. “Aqui é o meu terreno e ali é o seu”. Cada um no seu lugar.

Nas entrevistas que fiz para a reportagem a ser publicada na edição de setembro de Radis, muitos revelaram ter enfrentado preconceito durante a pandemia pelo fato de estarem na linha de frente de combate a um vírus do qual se sabia — e ainda se sabe — muito pouco. Como a pesquisa toca nesses pontos que são específicos desse momento?

Essa discriminação é comum a todos. A gente viu que ela é real e isso também acontece com os médicos, com os enfermeiros, os farmacêuticos, todos. Imagino que, para os “trabalhadores invisíveis”, essa discriminação seja muito grande. Aqui no Brasil, essa conversa de que esses trabalhadores são heróis é uma farsa. Eu não acredito e nem os trabalhadores acreditam nisso. Porque na verdade o que há é muito preconceito. Eles usaram até uma expressão: “carregadores do vírus”. Eles são considerados “carregadores do vírus” justamente por trabalharem no ambiente em que trabalham. Perceba que o fato de trabalharem no ambiente já é discriminatório. Se você parar para pensar bem, a discriminação está dada. Há áreas que a sociedade reconhece, mas não quer chegar perto. Fico imaginando como é a vida de um sepultador em um momento como este. Ou de um técnico auxiliar de enfermagem, que trabalha na linha de frente pesada. São trabalhadores que prestam um serviço essencial, mas com um risco tão grande de contaminação, que eles próprios tendem a achar que, sim, são portadores do vírus.

Você já disse, em entrevista: “Não se produz saúde sem assegurar condições adequadas de salário e jornada de trabalho”. O quão longe estamos de alcançar essas condições no país?

Olhe, eu sou uma pessoa super otimista e acredito na mudança do país. Nós passamos um pouco mais de uma década buscando corrigir essas situações de precarização, quando foi criado o comitê de precarização, a mesa nacional de negociação, plano de carreira, valorização do trabalhador, toda uma política voltada para garantia de melhores condições de trabalho para os trabalhadores da saúde… Bem, isso foi abortado, e hoje a gente vê políticas perigosas querendo rever direitos trabalhistas e previdenciários, por exemplo. Mas eu sempre acredito que a gente pode reverter o quadro. A pandemia está nos trazendo reflexões. E eu espero que a arrogância da elite brasileira se dobre um pouco para perceber que esses trabalhadores da saúde são essenciais ao sistema e que essa estrutura de calamidade em que hoje se encontram os trabalhadores, com uma parte significativa deles com condições de trabalho muito ruins e salários absurdamente indignos, pode ser modificada. Com salários e condições melhores de trabalho, eu tendo a acreditar que nós poderíamos ter passado por essa pandemia com o trabalhador mais protegido. Em vez disso, o que a gente percebe é muito trabalhador que foi para o trabalho, nesse período, mesmo adoecido. E há todo um adoecimento desses trabalhadores. Há um volume enorme de trabalhadores que foram para a linha de frente com pouquíssimo ou nenhum treinamento. Isso adoece, isso contamina, produz contaminação e produz muita insegurança e muitos problemas psíquicos por conta do medo de se contaminar e de morrer. Há inclusive denúncias de que só permitem ao trabalhador usar EPI depois de comprovar se está ou não com a doença. Isso é uma calamidade. Então, eu creio que num futuro próximo, nós tenhamos que voltar a essa velha ideia de que trabalhador é um bem público, precisa estar bem equipado, com um processo de trabalho digno, capaz de não adoecê-lo, mas dar a ele espírito de trabalho em equipe, prazer no que faz, com salários adequados e, principalmente, uma redução da carga semanal em que ele possa inclusive ter tempo para o lazer e para dividir essa carga de trabalho com o estudo, para rever e atualizar o conhecimento. Já disse e gostaria de repetir: educação permanente salva vidas.

De que forma pesquisas científicas como essa podem contribuir para a formulação de políticas públicas?

Nossa equipe tem feito muitas pesquisas de extrema importância, ao longo das últimas décadas, sobre o mundo dos trabalhadores [Além da já citada “Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da covid-19 no Brasil” e da atual “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil”, Maria Helena coordenou ainda uma relevante pesquisa sobre o Perfil da Enfermagem no Brasil]. O governo, o país, a gestão do SUS, o movimento sindical e a própria corporação, de modo geral, precisam conhecer essa realidade. Dados científicos iluminam e dão suporte para reivindicar e ajudar na formulação de políticas públicas. A função do pesquisador ou da produção científica na nossa área é produzir conhecimento e achados técnico-científicos que deem seriedade à luta e veracidade às reivindicações. E se a gente consegue isso, e esse é o foco das nossas pesquisas atuais, isso ajuda porque esclarece a ciência, esclarece o gestor, esclarece o movimento e esclarece os conselhos nacional, estadual e municipal de saúde, por exemplo. É isso. Essa é a função da Fundação Oswaldo Cruz. Quem mexe com pesquisa social tem essa função: de ajudar no crescimento evolutivo da sociedade.

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