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O futuro é uma ficção, sentencia o escritor Ailton Krenak. Na conferência de abertura dos seminários sobre direitos humanos e saúde organizados pelo Departamento de Direitos Humanos e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Dihs/Ensp/Fiocruz), o ambientalista, jornalista do Núcleo de Cultura Indígena e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) ressalta a importância de se pensar o hoje para garantir um amanhã mais inclusivo: “A saúde é agora, é presente”, sustenta. 

Em sua fala, no auditório lotado da Ensp/Fiocruz, ele convoca os pesquisadores de saúde a irem além dos marcadores biológicos de imunidade e a pensar em índices sociais capazes de medir a “humanidade” das pessoas. “A saúde acontece na fricção entre o nosso corpo e a Terra”, declara o escritor, destacando a relevância de uma interação harmônica entre a espécie humana e o planeta.

Krenak considera que é o homem que deve se adaptar e aprender a conviver com as mudanças climáticas, que não cessarão. A Terra é um organismo vivo, salienta, que não vai ficar indiferente às agressões. “Ela pode nos surpreender, ocasionando o desaparecimento da maioria de nós”. Ele prevê ocorrências mais graves e adverte que as mudanças climáticas podem ameaçar todo o sucesso do Brasil na exportação de grãos: “Isso não é uma maldição, é uma previsão”, declara.

Para o líder indígena, os impactos do clima poderão ter cada vez mais consequências trágicas e desafiadoras, colocando à prova nosso repertório sobre saúde e afetando principalmente os mais vulneráveis: “Se os bilionários podem correr e montar os seus refúgios em alguns lugares inacessíveis, serão então só os bilionários”. 

DSEIs climáticos

Um dos participantes, ao lado de Sergio Arouca, da formulação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) — durante a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, quando o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) foi gestado — Krenak propõe transformar os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) em dispositivos do SUS que também possam atuar no campo das mudanças climáticas. 

Ele defende o potencial mobilizador dos Dseis nas comunidades indígenas — “Nós deveríamos valorizar muito mais esses endereços e fortalecer a relação com eles. Eles podem ser pontos de foco para pensar a mudança climática na perspectiva da saúde coletiva” — e convoca a uma conscientização sobre a exploração dos recursos do planeta, alegando não ser possível esperar o arrefecimento dos desastres climáticos enquanto continuarem o uso de combustíveis fósseis e o que chama de “fúria consumista” do capitalismo. 

É preciso romper com a ideia antropocêntrica de que o homem é o centro do planeta e compreender que a Terra é soberana no que diz respeito à vida, declara, defendendo a ideia de um biocentrismo. “A Terra é nossa mãe”, reverencia Krenak, advertindo: “O Planeta Terra é tão maravilhoso na capacidade de produzir vida que se todos nós desaparecêssemos hoje, ao meio-dia, a vida continuaria”.

Solidariedade seletiva

O imortal da ABL, enaltece, neste contexto, a força dos povos indígenas. Ele lembra que, durante a ditadura militar, os indígenas foram alijados de direitos; e que o intuito dos que estavam no poder, naquele período, era que a população indígena (cerca de 300 mil pessoas) desaparecesse nos censos demográficos. 

Segundo ele, o que o governo militar nomeava “integração” era, na verdade, uma estratégia de emancipação compulsória, que buscava impor a tutela do Estado sobre a vida dos povos indígenas e apagar suas identidades. Ao contrário do que pretendiam, a população indígena cresceu, observa, indicando que hoje são mais de 1,7 milhão de pessoas. 

Essa expansão, porém, ocorreu nas periferias e às margens do Brasil. “Nós crescemos em lugares sem estrutura, na faixa da pobreza. O Estado não conseguiu emancipar os povos indígenas, mas conseguiu transformá-los em pobres. Existe uma deliberada política de fazer esse povo ficar pobre: é envenenando os territórios, estragando nossos rios, destruindo nossa floresta, já que não podem tirá-la da gente”.

Em denúncia ao sofrimento dos parentes indígenas, Krenak cita frase do também escritor e jornalista Millôr Fernandes: “Direitos humanos são universais, mas alguns humanos o são mais do que outros”. Ele lamenta a recente catástrofe ambiental vivida em Porto Alegre (Radis 260), no primeiro semestre de 2024, mas critica o fato do socorro nem sempre ser democrático. Os recursos de ajuda financeira e humanitária escoam sem reservas para o Sul do país, ao mesmo tempo em que à região Nordeste “deseja-se boa sorte”. 

A solidariedade do brasileiro é seletiva, afirma. E os povos originários são preteridos nessa distinção: “A gente sempre distribui generosidade conforme nossas afinidades e os povos indígenas não construíram afinidades com o Brasil”, opina. 

O autor de obras como Ideias para adiar o fim do mundo (2019) cita como exemplo a emergência Yanomami (Radis 247) — e toda a dificuldade em expulsar de vez garimpeiros e grileiros, que comprometem a vida de indígenas e destroem a naturez: “Seja pela lama da mineração, pelo mercúrio do garimpo ou pela predação do agronegócio”. Ao mesmo tempo, relembra a política de meio ambiente vigente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, pautada no desmonte de órgãos de vigilância e preservação ambiental. 

Sociedade da mercadoria

O escritor constata, como mostram as conclusões do Boletim Saúde, Raça e Clima 2024, as condições precárias e muitas vezes indignas em que vivem indígenas e negros no Brasil. Ele associa catástrofes climáticas às constantes negações de direitos a esses atores sociais. 

“Junto com os povos indígenas sempre são invocados os povos da diáspora, os nossos irmãos que vieram ‘agarrados’ [de África] para viver na condição de escravizados aqui, no continente americano”, diz Krenak. Ele aponta ainda que os negros, descendentes de pessoas escravizadas, e os povos indígenas formam os dois maiores contingentes de gente abandonada no Brasil: “São os que vivem sem saneamento, sem infraestrutura nenhuma”. 

Neste sentido, o ativista ambiental pondera a forma como o Brasil tem pensado saneamento para os povos indígenas, deixando claro que sanear não é tirá-los das florestas ou intervir em seus modos de vida de forma arbitrária e colonialista. “Podemos estar sendo muito influenciados pela ideia europeia de saneamento, assim como nós somos influenciados por eles acerca do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano]. A gente diz, por exemplo, que determinada comunidade é pobre porque ela não tem geladeira, luz elétrica e outros aparatos do mercado”, pontua.

Krenak cita que seu amigo e líder Yanomami, Davi Kopenawa, nos classifica como a sociedade da mercadoria. “Eu achei genial. Ele, um pensador que vive na floresta, nos atribuir a condição de sociedade da mercadoria. Ele só consegue fazer isso porque ele vive em um lugar onde a floresta supre tudo. Tem medicina, tem comida, tem perfumaria, tem tudo”. 

E acrescenta: “Eles olham para esse povo encaixotado no cimento, dizendo: ‘Coitados, são mesmo miseráveis’. É assim que o povo da floresta olha para essa gente que vive encaixotada, fica pensando: ‘Eles vivem nessas caixas de concreto, se acontecer alguma coisa, como eles vão sobreviver?’ Então, nós [indígenas] estamos preocupados com vocês”, brinca em tom de alerta.

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