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Quando mal-empregada, a “ciência” — entre aspas mesmo — pode ser prejudicial à saúde. Em sua edição de fevereiro de 2025, a Revista Fapesp (nº 348) noticiou: “Estudo que deu base ao tratamento com hidroxicloroquina contra a covid-19 sofre retratação”. A nota se referia a um trabalho publicado em 20 de março de 2020, pelo periódico International Journal of Antimicrobial Agents, que sustentava de forma inconsistente que a hidroxicloroquina reduzia a carga do vírus Sars-CoV-2, sendo ainda mais eficaz se combinada com azitromicina. Somente em janeiro de 2025, cinco anos depois, a revista publicou uma retratação em relação ao estudo.

Produzido de forma apressada e publicado no início da pandemia, o artigo causou empolgação e contribuiu para a adoção de uma estratégia que, mais tarde, mostrou-se ineficaz. Naquele momento, recomendações como distanciamento social, higienização das mãos e uso de máscaras eram as principais formas de prevenção recomendadas por autoridades sanitárias. Mas até ser retratado, o estudo já havia sido utilizado inclusive para sustentar discursos contrários à vacinação — que, comprovadamente, salvou milhões de vidas — em nome do suposto “tratamento precoce”.

O autor principal da publicação foi Didier Raoult, então chefe do Instituto de Infectologia do Hospital Universitário de Marselha (IHU), na França. O estudo, que analisou apenas 36 pacientes, gerou críticas por sua baixa amostragem e metodologia questionável. Trabalhos posteriores, com amostras e critérios mais consistentes, refutaram a eficácia do medicamento contra o coronavírus.

A nota de retratação, segundo a Revista Fapesp, apontou que “não foi possível comprovar que os participantes deram aprovação ética para o estudo e houve problemas na forma como os grupos de pacientes de controle e de tratamento foram selecionados, tornando questionáveis os resultados”. A controvérsia também revelou inconsistências em outras publicações do grupo de Raoult. Ainda segundo a nota, esse foi o 28º artigo de sua autoria a ser retratado.

Este caso demonstra uma realidade que deve ser encarada no meio acadêmico: a proliferação de revistas científicas com critérios frágeis de revisão e interesses comerciais, aliada à pressão produtivista nas universidades, tem comprometido a confiança no conhecimento científico. E isso pode contribuir com a indústria de notícias falsas e desinformação, causando danos de diversas naturezas, inclusive à saúde.

“Penso que houve uma apropriação do prestígio da ciência”

“A palavra ciência tomou uma dimensão tão grande que até quem faz má ciência passou a usá-la”

Para Marilia Sá Carvalho, uma das três coeditoras-chefe da revista Cadernos de Saúde Pública (CSP), com quem Radis conversou, é preciso falar sobre apropriação do discurso científico por grupos com interesses diversos, como ideológicos, políticos ou econômicos: “A palavra ciência tomou uma dimensão tão grande que até quem prejudica a ciência, quem faz uma má ciência, passou a usá-la. Separar o que é ciência do que é pseudociência, hoje, não é fácil”, afirma.

Para ela, mais do que um ofício, ocupar esse lugar na edição de um período científico de renome se traduz em uma missão: “Nós, como cientistas, temos a obrigação de combater a má ciência no campo da ciência”, afirma. A publicação coeditada por Marilia — juntamente com Luciana Lima e Luciana Alves — é vinculada à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Está em circulação ininterrupta há mais de 40 anos (Radis 262), tem classificação diamante (ou seja, é gratuita para autores e leitores) e adota os princípios da ciência aberta.

Para a pesquisadora, retratações e erros sempre existiram no campo acadêmico e fazem parte do processo de construção do conhecimento. O que mudou foi o aumento deliberado do mau uso da linguagem científica, da “estética” da ciência, sem o devido compromisso com o rigor metodológico, o que ela chama de “má ciência”. “Houve uma apropriação de aspectos da forma. O cientista verdadeiro carrega dúvidas, mas quem faz má ciência costuma ter certezas absolutas”, provoca.

Outro apontamento feito por Marilia diz respeito a um comportamento adotado pela maioria dos pesquisadores, que descuidam de como sua pesquisa será apropriada pelo público e pela imprensa. Ela cita que por vezes a falha está na falta de uma boa divulgação científica, o que pode ser resolvido com medidas simples, como atenção a um resumo adequado. “Esse é um problema do cientista, de aprender a pensar no que vai acontecer com o artigo dele. Eu também sou cientista, mas olho primeiramente para o resumo pensando: ‘Como isso vai ser usado e por quem?’”, orienta.

A pesquisadora aponta ao menos três causas para a ocorrência de erros e retratações de trabalhos acadêmicos: falta de bons revisores e pareceristas, incentivo ao modelo produtivista nas publicações científicas e a atuação das revistas ditas predatórias.

“Os guardiões da boa ciência são os revisores e editores”

Procura-se (bons) revisores e pareceristas! A frase em forma de anúncio poderia figurar tranquilamente nas páginas impressas e eletrônicas de revistas científicas do Brasil e do mundo. Para Marilia, pesquisadores que realizam essas tarefas são fundamentais para qualificar as publicações de periódicos sérios, aqueles que estão preocupados com a qualidade do conhecimento disseminado.

“Hoje, os guardiões da boa ciência são os revisores e os editores. Mas muitos editores de empresas comerciais estão mais preocupados com o lucro do que com a qualidade do que publicam”, afirma. Ela destaca que o interesse comercial é algo comum no meio editorial acadêmico — embora CSP não atue dessa forma — mas afirma haver um largo “espectro” que separa revistas sérias das assumidamente predatórias.

Marilia observa que até mesmo periódicos renomados, como Nature, Science e The Lancet, apesar dos exigentes critérios editoriais, operam sob interesses comerciais. Ela reforça que a indústria da publicação científica é uma das mais lucrativas do mundo. Já nas chamadas revistas predatórias, o lucro se impõe de maneira explícita e, segundo ela, editores podem até ser demitidos se recusarem muitos artigos. Nesses periódicos, muitas vezes nem há uma revisão criteriosa — basicamente, o artigo entra se o autor pagar.

Além disso, a falta de reconhecimento do trabalho de revisão por pares contribui para a superficialidade nas avaliações. “Revisar de verdade é quase refazer o estudo. Para isso, é preciso ter acesso aos dados. E aí entra a importância da ciência aberta”, destaca a pesquisadora. “Quando o dado não é público, não se pode refazer. Então nós temos um problema de reprodutibilidade, com um aumento na quantidade de invenção de dados e de fraudes”.

As três peneiras

Marilia explica como funcionam os critérios para seleção de textos em Cadernos de Saúde Pública, que consiste em três etapas de filtragem, chamadas por ela de “três peneiras”. A primeira, e maior, é a análise mais geral — peneira grande — feita pelas editoras-chefes para avaliação de fatores como pertinência, viabilidade e ineditismo da proposta. Essa etapa define se o artigo entra ou não no sistema de avaliação da revista.

Em seguida, a peneira média são os editores associados, que já possuem mais conhecimentos na área específica daquele trabalho submetido. Por fim, ao passar por mais esse crivo, o texto chega ao parecerista, que é quem realmente irá analisá-lo com esmero e profundidade, para emissão da análise — seja para aceite, ajustes ou recusa.

“Não posso ler com atenção os 50 artigos que chegam por semana. O editor associado lê, mas é o segundo crivo. O crivo fininho, que vai ter uma peneira mais estreita, é o parecerista”, resume. Ainda assim, mesmo com todo rigor, seriedade e boa intenção, cientistas podem cometer equívocos, que devem ser tratados quando identificados.

Marilia argumenta que esses erros ocorrem, também, por conta da pressão imposta pelo produtivismo que permeia a academia, um segundo fator capaz de influenciar a baixa qualidade das publicações científicas.

“Quantidade não é o objetivo da ciência”

Publish or perish. O jargão científico, que pode ser traduzido literalmente como “publique ou pereça”, reflete uma cultura que domina o ambiente acadêmico e valoriza mais a quantidade de produções científicas do que a qualidade. Essa lógica é criticada por Marilia: “Para mim, não é ‘ou’, é publish and perish, publique e morra do mesmo jeito. Você ‘mata’ a ciência e o autor que está sempre correndo atrás de números”, afirma.

Para ela, essa necessidade contínua de novas publicações alimenta outros fatores dessa engrenagem de produção: “Repare que ainda não estou falando das revistas predatórias. Elas são o último elo da cadeia. Estou falando de um modelo de ciência que faz com que o cientista, mesmo aquele que está focado — mas está cansado — gere má ciência”.

“Publicar muito não é sinônimo de gerar informação”

Marilia defende uma limitação de publicações por autor, visando à qualidade de materiais que servirão como fonte de conhecimento para outras pessoas. Ela compreende que o formato e a dinâmica dos grupos de pesquisas possibilitam a alguns pesquisadores, em especial orientadores de mestrado e doutorado, gerarem um número maior de publicações. Ainda assim, faz ressalvas relevantes: “Publicar muito não é sinônimo de gerar informação. Pode significar ruído e desinformação”, alerta.

A pesquisadora acompanha com atenção as propostas de reformulação nos critérios de avaliação da produção científica e dos programas de pós-graduação stricto sensu pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), previstas para o ciclo 2025-2028. Para ela, o novo modelo — que propõe avaliar mais a qualidade do artigo do que o fator de impacto do periódico — representa um avanço. “Ainda não resolve tudo, mas já é um passo importante”, avalia.

“Pagou, passou”

Quem já teve algum trabalho acadêmico publicado, provavelmente deve ter recebido e-mails com ofertas de revistas que prometem publicação rápida — mediante taxa. Segundo Marilia, esse modelo “pagou, publicou” é o que sustenta o negócio lucrativo das revistas predatórias, caracterizadas por privilegiarem o lucro financeiro em detrimento do rigor científico em suas publicações.

Essas revistas geralmente operam com nomes estrangeiros, estrutura visual sofisticada e promessa de prestígio — sobretudo para quem busca pontuar no currículo com publicações internacionais. “Então a pessoa pensa: ‘Publicar na Cadernos? Ah, legal, Cadernos. Mas publicar na ‘Frontiers’ é prestígio, conta ponto’. Porque dependendo do modelo de avaliação, publicar em revista estrangeira pontua”, frisa.

Marilia destaca outro atrativo das revistas predatórias: o tempo entre o envio e a publicação de cada texto. Segundo ela, algumas dessas revistas conseguem publicar um artigo apenas 30 dias após sua submissão, o que deixa claro como elas operam: “Pagou, passou. Elas fingem que dão parecer, e aí conseguem esses prazos”. O problema é que os critérios de avaliação são frágeis — e os danos, duradouros. “Mesmo após serem desmascaradas, essas revistas já lucraram o suficiente. Muitas apenas trocam de nome e seguem operando com a mesma lógica predatória”.

Com isso, maus trabalhos vão sendo aceitos e reproduzidos e ganham o mundo. “Eu falei de pressa, de avaliação da ciência e prestígio de publicação fora do país. As três coisas andam juntas”, enumera. Para enfrentar esse ciclo e diminuir o espaço para a desinformação, Marilia aposta na literacia científica: “Quanto mais a população entender como se faz ciência, melhor. Seu uso fica mais democrático, mais igualitário. Em especial na saúde pública, onde a divulgação científica é uma necessidade”, constata.

O tripé da má ciência

1. Escassez de bons revisores e pareceristas: avaliações superficiais, sem checagem real dos dados

2. Pressão produtivista: “publicar muito” vira mais importante que “publicar bem”

3. Proliferação de revistas predatórias: pagamento garante publicação, mesmo sem qualidade

O tripé da má ciência

  1. Escassez de bons revisores e pareceristas: avaliações superficiais, sem checagem real dos dados
  2. Pressão produtivista: “publicar muito” vira mais importante que “publicar bem”
  3. Proliferação de revistas predatórias: pagamento garante publicação, mesmo sem qualidade

Casos recentes revelam falhas na divulgação e na validação científica

Durante conversa com Radis, Marilia Sá Carvalho, coeditora-chefe da revista Cadernos de Saúde Pública, citou dois episódios que exemplificam desafios distintos da produção e circulação do conhecimento científico.

O primeiro envolve um estudo publicado na The Lancet, em 2022, com o título Estimating the impact of implementation and timing of the covid-19 vaccination programme in Brazil [Estimativa do impacto da implementação e do momento do programa de vacinação contra a covid-19 no Brasil: uma análise contrafactual]. A pesquisa mostrou que, se o governo brasileiro tivesse iniciado mais cedo a vacinação contra a doença, 47 mil mortes e 104 mil hospitalizações poderiam ter sido evitadas.

Apesar da relevância da conclusão, o resumo do artigo deu maior ênfase aos benefícios da imunização entre os vacinados — o que acabou direcionando a cobertura da imprensa. Como resultado, uma reportagem da Agência Brasil destacou apenas o lado positivo do estudo. A manchete publicada em 21/11/2022 dizia: “Vacinação contra covid-19 no Brasil salvou 63 mil idosos em 2021”. Embora não contenha erro factual, a reportagem ilustra como a hierarquização das informações pelo próprio pesquisador pode afetar a percepção pública dos dados.

Já o segundo caso, mais grave, ocorreu no início de 2025, após a publicação de um artigo controverso na revista Frontiers in Medicine, com o título Evaluation of post-covid mortality risk in cases classified as severe acute respiratory syndrome in Brazil: a longitudinal study for medium and long term [Avaliação do risco de mortalidade pós-covid em casos classificados como síndrome respiratória aguda grave no Brasil: um estudo longitudinal de médio e longo prazo].

O estudo foi rapidamente apropriado por páginas antivacina, como o site Médicos pela Vida, que o publicizou em tom sensacionalista, com a chamada: “Fiocruz: após um ano, vacinados contra a covid-19 tiveram mais chances de morrer, mostra estudo”. Apesar de uma das autoras estar vinculada à Fiocruz, o conteúdo apresentava erros metodológicos graves. A instituição foi usada indevidamente como chancela de credibilidade.

Em resposta, pesquisadores do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos (Demeq/Ensp/Fiocruz) refizeram o estudo, identificando ao menos 18 falhas metodológicas e refutando as conclusões em uma carta. O Ministério da Saúde também se posicionou e a revista foi notificada sobre os erros. Para Marilia, o episódio reforça a importância de cientistas atuarem em defesa da boa ciência e atentarem para esse desafio.

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